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Do alto-falante à FM, os trinta anos da rádio comunitária Heliópolis

Fabinho é um dos locutores e operadores de áudio, todos voluntários, que trabalham na emissora e moram em Heliópolis - Gabriela Di Bella/UOL
Fabinho é um dos locutores e operadores de áudio, todos voluntários, que trabalham na emissora e moram em Heliópolis
Imagem: Gabriela Di Bella/UOL

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

25/09/2022 04h01

Antes das 6h15 da manhã de uma segunda-feira, Fábio Silva de Oliveira, 39, mais conhecido por Fabinho, já mandou 13 'bom dias', além de beijos, abraços e 'uma ótima semana'. Entre os destinos das saudações estão cidades como Barreiras, na Bahia, Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, além de Buenos Aires, capital da Argentina. Sentado em uma mesa triangular numa sala com isolamento acústico, cercado de microfones, um computador e uma mesa de som está o locutor da Rádio Comunitária Heliópolis FM 87,5.

Os cumprimentos se repetem diariamente há mais de 9 anos, já que Fabinho é o responsável pelo Alvorada Sertaneja, programa que toca e apresenta canções antigas deste estilo musical. A atração começa às 6h da manhã e vai até às 8h. Entre uma música e outra, o locutor abre o microfone e repete a frequência da rádio, agradece a atenção dos ouvintes e repete a frase: "Sua rádio, verdadeiramente comunitária. É a nossa princesinha da comunidade de Heliópolis".

Para além de locutor, Fabinho é um 'faz tudo' por ali. Com um curso de radialista que fez por volta de 2002, época que começou a atuar na rádio, ele é o responsável técnico do veículo. Morador da favela, a proximidade da casa faz com que ele seja chamado para resolver problemas eventuais que acontecem ali, como um microfone que não liga ou um botão que parou de funcionar.

Apesar de voluntário, Fabinho cumpre uma jornada fiel de segunda a sexta-feira. De manhã, apresenta seu programa e volta para casa, retorna ao meio-dia e estende o turno até por volta das 17h. "Fico aqui também para ajudar alguns locutores que têm dificuldades com a mesa, ou que não sabem ler", pontua. "Tem gente que não sabe as palavras, aí boto a música, depois falo o que tocou para ser anunciado".

Rádio Heliópolis completa 30 anos na maior favela de SP - Reprodução: TV Cultura - Reprodução: TV Cultura
Na década de 90, a rádio funcionava com alto-falantes instalados nas ruas da favela
Imagem: Reprodução: TV Cultura

Procura-se papagaio

Quem conversa com o locutor percebe nas poucas palavras a sua timidez — ele garante que a rádio o ajudou a se relacionar melhor com as pessoas. Até trabalhar lá, falava bem menos e quase não olhava para quem estava ao seu redor. O encontro com o público ali o deixou mais 'solto'.

"Agora tô craque. Acostumei com tudo aqui", diz Fabinho. Um dos voluntários mais antigos da rádio, ele conta que a infraestrutura melhorou ali com as novas tecnologias que aumentaram a qualidade do som transmitido aos ouvintes. "Essa mesa mesmo é nova. Reformaram o estúdio", aponta, orgulhoso.

No dia a dia, além de receber áudios com pedidos de música e saudações, o locutor conta que é comum ouvintes anunciarem animais perdidos, como papagaio, cachorros e gatos. E lembra que até crianças perdidas e documentos foram encontrados depois que a Heliópolis pôs avisos no ar.

Das histórias memoráveis ou divertidas dessas três décadas, os funcionários citam áudios enviados pelos ouvintes que não puderam ser levados ao ar por conterem palavrões ou expressões de baixo calão e pedidos de músicas com letras pornográficas — que também não são atendidos pela rádio.

Um ano sempre lembrado é o de 2007, quando, após a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) determinar o fechamento de rádios piratas e comunitárias do Brasil, o Ministro da Cultura veio pessoalmente entregar uma permissão provisória para a Heliópolis: o cantor e compositor Gilberto Gil. Uma grande cerimônia foi preparada para recebê-lo.

Fabinho também não se esquece das visitas de famosos aos estúdios, como a apresentadora Sabrina Sato, que esteve no programa feito pela mãe do locutor, Cida Lourenço. "Tirei fotos", gaba-se ele. Além de Sabrina, os grupos Sampa Crew, Bonde dos Playboys, Negritude Júnior e Adriana e a Rapaziada também levaram filas de fãs à porta da rádio.

Rádio Heliópolis completa 30 anos na maior favela de SP - Gabriela Di Bella/UOL - Gabriela Di Bella/UOL
Drica apresenta um programa sobre violência contra mulheres: 'Muita coisa que falo na rádio eu já presenciei'
Imagem: Gabriela Di Bella/UOL

Do alto-falante à frequência modulada

Com uma população estimada em 200 mil habitantes, de acordo com o último Censo, de 2010, Heliópolis é a maior favela da capital paulista. A rádio sediada lá é parte essencial de sua história e um dos veículos comunitários mais antigos da cidade.

Sob a direção da UNAS (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região) e com 30 anos de existência completados em maio, esta que foi a primeira rádio comunitária a ser legalizada no município nasceu para falar com os moradores sobre seus problemas e demandas. Hoje, o veículo pode dizer que entende seu público e traz assuntos que dialogam diretamente com a comunidade.

Em um dos dias em que o TAB visitou o estúdio para acompanhar o trabalho, a rádio recebeu a visita de duas comunicadoras que foram conhecer o espaço e entender como funciona uma grande rádio comunitária. A índigena Juliana Albuquerque Samores, da etnia Baré, veio de São Gabriel da Cachoeira (AM) fazer um intercâmbio de comunicação.

Juliana faz parte da Rede Wayuri, criada em novembro de 2017, composta por comunicadores indígenas de ao menos oito etnias: Baré, Tariana, Tuyuka, Tukano, Desana, Wanano, Yanomami e Baniwa. Com ela, estava a jornalista Bianca Pedrina, uma das gestoras do Nós, Mulheres da Periferia, site de jornalismo com recorte de gênero.

Assim que a dupla chegou, o coordenador da emissora, Reginaldo José não perdeu tempo e as convidou para entrar ao vivo na programação. Em sua fala, a indígena parabenizou o trabalho feito na favela e trocou experiências sobre o ofício. "Com a nossa comunicação, a gente quer dizer que, se não cuidarmos, não vai ter rio, peixe, floresta e ar, para nós, e para todo mundo também", disse Juliana.

Reginaldo conta que, quando foi criada, a Heliópolis seguia o formato "rádio corneta". Alto-falantes eram espalhados pelas principais ruas da comunidade para transmitir diretamente a sua programação. Cinco anos depois, um grupo de padres católicos alemães visitou o local, gostou da iniciativa e ofereceu financiamento para que se criasse uma rádio com potência suficiente para alcançar toda a comunidade.

Bianca Pedrina e Juliana Baré, durante entrevista na rádio Heliópolis - Gabriela Di Bella/UOL - Gabriela Di Bella/UOL
A indígena Juliana Baré e a jornalista Bianca Pedrina nos estúdios: troca de experiências
Imagem: Gabriela Di Bella/UOL

Em busca da profissionalização

Três décadas depois, a rádio conta com financiamentos pontuais usados para manutenção do espaço e equipamentos. Mas o trabalho de todos os envolvidos no veículo permanece voluntário. Um dos desafios abraçados pela atual direção é que, em alguns anos, essa dedicação seja remunerada, para valorizar o empenho dos locutores e não perder talentos. "Já passou muita gente boa por aqui, mas precisam pagar contas e acabam deixando a gente", lamenta Reginaldo.

Contando hoje com cerca de 20 locutores que se revezam em programas de diferentes segmentos de interesse público, a Heliópolis traz na grade entrevistas com artistas locais, campanhas de conscientização contra o descarte irregular do lixo, problema crônico ali, além de um programa dedicado a desmentir fake news que circulam entre os becos e vielas da comunidade.

Exemplo de projeto desenvolvido ali é o 'Helipa na Ciência', pelo qual, após uma formação técnica, jovens moradores da comunidade vão produzir um programa para explicar questões científicas e comentar pautas relacionadas ao mundo da ciência que dialogam com o dia a dia dos moradores, como as mudanças climáticas.

Reginaldo Gonçalves, diretor da rádio Heliópolis, em São Paulo - Gabriela Di Bella/UOL - Gabriela Di Bella/UOL
O diretor Reginaldo busca a profissionalização da equipe: 'Passou muita gente boa por aqui'
Imagem: Gabriela Di Bella/UOL

A auxiliar administrativa Adriana Nascimento dos Santos, 38, mais conhecida como Drica, mora a cerca de 200 metros da emissora. Às sextas-feiras, quando sai de casa para apresentar o programa, nem precisa trocar de calçada para chegar na rádio. O primeiro envolvimento dela com a Heliópolis foi em 2013, quando fez parte do programa "Fala Jovem". Hoje, apresenta o 'Enfrentamento à Violência contra as Mulheres', uma iniciativa em parceria com o SESC.

Semanalmente, Drica traz especialistas, moradoras e outros personagens para falar sobre feminicídio e pautas que envolvem acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica. "É importante a gente falar disso, né? Isso acontece dentro de casa, nem sempre um vizinho ouve ou vê", diz a locutora.

Em paralelo à sua atuação na rádio, Drica atua diretamente com o acolhimento de mulheres. Ela trabalha em um CDCM (Centro de Defesa e de Convivência da Mulher) administrado pela UNAS. Espalhados por São Paulo, esses espaços foram criados para receber as mulheres em situação de violência, com apoio psicossocial, encaminhamento jurídico e informações que orientem as beneficiadas. "Muita coisa que falo na rádio é coisa que eu vejo, já presenciei", diz ela. "Isso é o mais interessante aqui".