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Fome de bola: Clube Laguna, do RN, renuncia à carne pelo veganismo

Atletas vão ao ataque no refeitório do Laguna: churrasco, aqui, não tem vez - Mateus Barros/Divulgação
Atletas vão ao ataque no refeitório do Laguna: churrasco, aqui, não tem vez Imagem: Mateus Barros/Divulgação

Valcidney Soares

Colaboração para o TAB, de Tibau do Sul (RN)

17/09/2022 04h01

São 11h50 quando o almoço fica pronto e os jogadores partem para se servir. O cardápio do dia dos boleiros inclui quibe de forno com soja como proteína principal, cebola caramelizada, ricota de tofu, arroz com lentilha e saladinha, acompanhados de suco.

Mais de 30 pessoas, entre jogadores e membros da comissão técnica, espalham-se pela área externa da casa. A atenção dos convivas se divide entre os pratos verdinhos e um programa esportivo que passa na TV. "Ô tia, tá bom isso aí", elogia o zagueiro Márcio Júnior. "Vou virar vegano já", diz ele na mesa.

O banquete inusual para atletas profissionais de futebol é rotina para os jogadores do Clube Laguna, primeiro clube vegano das Américas, criado em maio. Dentro do alojamento, nada de carne para comer. A ideia é também evitar ao máximo qualquer coisa de origem animal. Os produtos de limpeza usados na casa que faz às vezes de alojamento, por exemplo, são veganos. As camisas do time, ao contrário de lã, são produzidas com garrafas PET recicladas. A única exceção fica para a bola.

"Muitas vezes elas usam cola derivada de animal, e é a bola da competição, não é nossa bola. Se a gente pudesse escolher, não seria essa aí", afirma Rafael Eschiavi, um dos três fundadores do time, um clube-empresa criado como SAF (Sociedade Anônima do Futebol) que se propõe a levar a gestão empresarial para as quatro linhas. "Tem coisas que ainda não são totalmente veganas, mas estamos a uns 90%".

Clube Laguna, primeiro time vegano das Américas - Mateus Barros/Divulgação - Mateus Barros/Divulgação
De bandeja: alimentação saudável para jogar em alto nível
Imagem: Mateus Barros/Divulgação

'Eu não gostava de berinjela, cara'

Jean Mangabeira, 25, é um volante natural de Anápolis (GO), com passagens por clubes como o Criciúma, onde jogou a Série B do Brasileirão, e até pela Europa, onde integrou o plantel do MFK Karviná, da República Tcheca. Na cozinha da nova equipe, diz que se surpreendeu com a berinjela.

"Eu não gostava de berinjela, cara. E fizeram uma berinjela como se fosse uma quiche folheada, eu gostei bastante", afirma. Mangabeira conta que ele e a mulher já tinham vontade de conhecer melhor a alimentação sem origem animal. E que, sendo jogador, também faz o que for preciso para avançar na carreira.

"Somos atletas profissionais, a gente quer jogar em alto nível. Se for necessário virar vegano para atingir um nível maior, assim será", veste a camisa.

O lateral-esquerdo Murilo Santos, 21, teve passagens pela base do Grêmio, em Porto Alegre, e pelo Fluminense, na capital carioca. De acordo com o atleta, o hábito da alimentação com carne vinha desde a infância. "Quando fiquei sabendo que era um clube vegano e que essa seria a nossa alimentação, me assustou no começo. Mas, chegando aqui, vi que é parecido, o sabor da comida é o mesmo, só muda o fato de que não tem carne", afirma.

Ao ser perguntado se acontecem "fugidinhas" dentro das instalações da equipe para comer carne, Murilo ri. "Dá, mas tem que manter o foco aqui dentro. Como a ideia do clube é essa, a gente tem que manter aqui e segui-la".

Clube Laguna, primeiro clube vegano das Américas - Valcidney Soares/UOL - Valcidney Soares/UOL
No CT, os atletas vestem a camisa do veganismo; em casa, nem tanto
Imagem: Valcidney Soares/UOL

Valores do veganismo

A fome dos jogadores e a vontade de repetir o prato eram justificadas pela rotina do dia. Logo cedo eles haviam se levantado para comer tapioca com pasta de grão de bico e pudim de chia com leite de coco antes de entrar no campo às 7h50 para o treinamento do dia. O primeiro a cruzar o portão do estádio foi Gustavo Nabinger, 38, parceiro de Eschiavi e treinador do time.

"O cabeça pensante é o Gustavo. É o cara que passou por clubes, que jogou", diz Rafael, que tem mais experiência como vendedor do que com a bola no pé. Segundo o técnico, o Laguna nasceu como um clube de futebol com a proposta de fazer algo diferente do que outros times fazem. A equipe está sediada em Tibau do Sul (RN), cidade famosa pela Praia de Pipa.

"A questão do veganismo, de outros valores, são intrínsecos à empresa. Não dissemos: 'ah, vamos fazer um clube vegano'. Não, vamos fazer um clube de futebol, que entende o esporte como entretenimento, quer que as pessoas se divirtam indo ao estádio e que os atletas se divirtam dentro de campo", explica Nabinger.

Carregando uma caixa de papelão repleta de bolas, Gustavo vai até a lateral do campo e começa a preparação para o treino de logo mais. Junto com ele, entram os atuais 25 jogadores do plantel do Laguna - seis ainda por chegar -, mais os membros da comissão técnica. Os futebolistas já chegam com o uniforme, faltando apenas calçar as chuteiras. Aos poucos, colocam o GPS - um aparelho para aferir os batimentos cardíacos -, preparam as garrafas de água e deixam os sprays anestésicos à volta.

Clube Laguna, primeiro clube vegano das Américas - Valcidney Soares/UOL - Valcidney Soares/UOL
No refeitório do clube, o zagueiro Márcio Júnior elogia: 'Ô tia, tá bom isso aí'
Imagem: Valcidney Soares/UOL

Com os pés na cova

Feito o aquecimento, os atletas se dividem em três grupos. Um é focado no uso da força e potência. O segundo, de raciocínio rápido, ocupa um espaço reduzido e aposta na troca de passes. "Muita movimentação, muita", resume Andriewerton Lagrega, roupeiro que assiste ao treinamento ao lado do travessão, em meio às andanças no campo para buscar uma bola ou outra, fazendo as vezes de gandula.

O mais enérgico da comissão é Rodrigo Aragonez, auxiliar de Gustavo, que comanda um dos grupos. Com voz alta, repete: "Na origem da bola, na origem da bola!". Quando os jogadores acertam, ele elogia, sem deixar de cobrar. "Isso, isso! Mais rápido o movimento pra passe".

Finalizada a primeira parte, é hora do treino com todos os jogadores juntos e maior espaço de campo. Em determinado momento, o chutão de um jogador vai parar no cemitério atrás do campo. A tarefa inglória de ir buscar a bola fica com Lagrega. "Acho que ele pisou mesmo nas covas", se diverte Jean Natal, meia ofensivo e veterano de 30 anos que naquele dia descansa conta de um incômodo na perna. Lagrega confessa que às vezes entra em casa sem os calçados por superstição, de tanto que pisa nos túmulos em busca de bolas perdidas.

Jean aproveita a sombra da lateral para observar os colegas. Um argentino da vizinhança, morador há mais de 20 anos de Tibau do Sul, chega para passar o tempo e conversar com quem estiver por ali. Como não poderia deixar de ser, o assunto "alimentação" entra em pauta rapidamente. "Mesmo vegana, é boa", conta Jean. "Pensei que ia ser difícil, mas é tranquilo. Fazem de tudo com soja", diz o meia que já conheceu os refeitórios da base do Corinthians e profissional da Portuguesa, América (RN), River (PI), entre outros clubes em que atuou.

"Quem não conhece alimentação vegana, imagina que é só folha, comida sem sabor. Mas a verdade é que a gente tem muitas opções de comida", elogia. Fora do clube, os jogadores têm liberdade para comer o que quiserem, inclusive o brasileiríssimo churrasco. "Não tenho saído tanto, mas acho que nenhum deles [jogadores] virou vegano ainda", comenta.

Enquanto o treino segue, dois jogadores se empolgam e se chocam no gramado. Os atletas se contorcem de dor. O fisioterapeuta entra em campo para ajudá-los. Quando os dois se levantam, um sai contundido, mancando. Já não há dúvida de que o primeiro time vegano das Américas chegou para dar o sangue pelo nobre esporte bretão.