Dividida como no 1º turno, Belém vira desfile de 'Ls' e bandeiras no Círio

Após dois anos sem procissões oficiais nas ruas, o Círio de Nazaré voltou cercado de expectativas de devotos e não devotos de "Nazinha", como a padroeira dos paraenses é chamada. O que ninguém esperava é que a presença do presidente Jair Bolsonaro (PL) na maior celebração mariana do mundo seria o assunto do fim de semana.
Candidato à reeleição, Bolsonaro participou da romaria fluvial que reuniu mais de 250 barcos na baía do Guajará, na orla de Belém, na manhã deste sábado (8). O ato é uma espécie de prévia das duas principais procissões do Círio, realizadas no sábado à noite e no domingo pela manhã, onde são esperados cerca de três milhões de devotos.
"Ele vai querer fazer da motorromaria uma motociata. Primeiro porque ele adora uma moto. Segundo porque vai ficar bom pra ele na propaganda de TV, né?, esse mar de gente como se fosse apoiador dele. Mas também pode pegar mal. Pode ser visto como desrespeito", disse George Melo, 44, eleitor de Bolsonaro e motorista de aplicativo que aguardava a chegada de Nossa Senhora de Nazaré à Estação das Docas.
Muito se especulou também se Bolsonaro traria a imagem nas mãos antes da transição entre a romaria fluvial, que durou cerca de duas horas, e a motorromaria. A ideia original era que ele entregasse Nossa Senhora nas mãos do prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues (PSOL), para depois a imagem seguir caminho pelas ruas da cidade nas mãos de motoqueiros e ciclistas. O cerimonial envolvendo o presidente, contudo, não ocorreu.
A campanha também esperava um mar de romeiros com a camisa da seleção brasileira, mas as expectativas foram frustradas. A participação de Bolsonaro foi discreta: ele permaneceu ao lado de deputados federais aliados, como Carla Zambelli (PL-SP), dentro da Corveta da Marinha Garnier Sampaio, até que ela atracasse no cais, mas não desceu junto com a imagem da santa. A rede social do presidente foi, aliás, vitrine de uma gafe: Círio foi escrito com S, o que rapidamente virou piada nas redes sociais.
Diversos devotos abordados pela reportagem do TAB preferiam não se manifestar sobre política em meio ao Círio, mas era questão de oportunidade: muitos bradaram os nomes de Lula e Bolsonaro durante a entrevista. Os irmãos Alberto e Messias Igreja, de 52 e 48 anos, respectivamente, faziam o número 22 com os dedos toda vez que alguém passava com a bandeira do Brasil. Eles frequentam o Círio juntos desde que eram jovens. Segundo Alberto, a vinda do presidente é importante, pois é sinônimo de prestígio.
"O povo paraense precisa da presença do presidente para poder garantir a soberania e a unidade do país. Ele é um cara fantástico e tem que ter liberdade para fazer o trabalho dele. Tudo agora é levado para esse lado da propaganda eleitoral, mas isso é oportunismo da oposição. Eles têm o direito de falarem o que quiser, claro, mas acredita quem quer. Ele tem que prestigiar os eventos. Ninguém é superior à santa. Nem padres, nem presidentes, nem ex-presidiários", disse o médico.
Messias é técnico em segurança e lembrou que, independentemente das eleições, Bolsonaro ainda é o presidente do Brasil e pode estar onde quiser. "Ele está aqui como autoridade. O Círio sempre foi usado como palanque político por todo mundo, seja governador ou presidente. Não é porque ele está na presidência que não pode. Todos somos filhos Dela e todos os paraenses são irmãos, independente da preferência ideológica", destacou.
Oposição marcou presença
"Nossa Senhora livrai-nos da fome: Lula Presidente." A faixa, na avenida Almirante Barroso, era uma das muitas espalhadas pela cidade, que teve votação apertada no 1º turno (Lula com 45,74%, Bolsonaro com 43,21%).
Não foram poucos os gritos de "Fora Bolsonaro" ao final da romaria fluvial. Mesmo debaixo do sol escaldante, amenizado com água, cerveja e leques, alguém sempre recuperava o fôlego para reiniciar o canto. A estudante Thaís Farias, 19, estava bastante emocionada e cercada de amigos. Toda vez que algum romeiro bolsonarista passava de moto, provocando ou gritando o nome do presidente, ela e os colegas respondiam gritando o nome de Lula.
"Minha família é muito católica e desde que eu me entendo como gente acompanho o Círio. É muita emoção essa volta depois da pandemia, é a época em que Belém fica mais linda. Política não se deve misturar com religião. Fiquei triste de ver essa tentativa de uso eleitoral. Ele ter perdido no primeiro turno e vir para cá é indício de que ele quer voto. Não acho certo porque o Círio é uma festa religiosa", afirma.
Lula chegou a ser convidado pelo governador Helder Barbalho (MDB) para acompanhar a festa, mas recusou o convite. O ex-presidente usou o sábado para cumprir agendas em Minas Gerais, segundo maior colégio eleitoral do país.
A socióloga Janja da Silva, esposa de Lula, veio a Belém para pagar uma promessa que fez a Nossa Senhora, pedindo saúde e proteção ao ex-presidente nesse período eleitoral. A primeira-dama Michelle Bolsonaro não participou da festa católica — segundo a equipe de campanha de Bolsonaro, ela bateu o pé e se recusou. Entretanto, ela deve ficar na cidade para um evento com Damares Alves na segunda-feira (10), em Belém, só para mulheres.
"Muito ruim isso. Também sou evangélica e o Círio é de todos, é cultura, é fé. É o Natal do paraense. Vários evangélicos participam, distribuem água, até da Assembleia de Deus. Tenho certeza que ela iria sair daqui emocionada, tocada", disse a contadora Luciene Gonçalves, 46, enquanto se abanava esperando a berlinda passar.
O economista baiano José Soares, 37, ficou encantado pelo clima da cidade que visitava pela primeira vez. "Estou impressionado, mas é um absurdo completo esse cara [Bolsonaro] fazer um movimento religioso para se aproveitar politicamente. Agora mais do que nunca é Lula 13", disse à reportagem.
A potiguar Recilene Lopes, 40, também era estreante na festa e se programou ao longo de dois meses para curtir cada momento do Círio. Na opinião dela, o ideal seria que política e religião não se misturassem. "É ruim quando ficam desviando a fé para a política. Não é momento disso."
Em meio aos gritos a favor de um ou outro, a carioca Marilídia Alves, 42, disse estar feliz de ver que a maioria dos paraenses focava os pedidos em outra direção: "Vi muita gente rezando pelo país, pela nação, para quem precisa, para os mais pobres. Estão entregando as eleições nas mãos de Nazinha e pedindo que ela ilumine a mente do próximo presidente e que Deus escolha a melhor opção para colocar ordem e restaurar a paz no país", avalia.
Religiosidade peculiar
O historiador e cientista da religião Márcio Neco lembra que basta olhar para o passado para ver que política e religião sempre estiveram de mãos dadas. Com o Círio não é diferente.
"O Círio mexe com as massas e vários segmentos podem fazer apropriação dele para fins comerciais, culturais e políticos. Ao longo da história, vários presidentes estiveram no Círio, mas sempre muito sintonizados com a Igreja [Católica]. Não foi o que aconteceu dessa vez. A arquidiocese de Belém até emitiu nota, afirmando que não convidou Bolsonaro formalmente, mas que ele era bem-vindo, assim como qualquer um", afirma.
Somou-se a isso o fato de o Círio estar bem distante de ser uma festa conservadora. A celebração carrega um lado pagão forte, inclusive com a realização de festas LGBTQIA+ dedicadas a homenagear Nossa Senhora e shows de lambada e tecnobrega que varam a madrugada.
"Isso extrapola o planejamento da Arquidiocese. É o principal símbolo de religiosidade na Amazônia, com muita pluralidade e diversidade. Talvez não tenham tido tempo de planejar uma recepção mais institucional ao presidente. No fim das contas, ele encontrou somente espaço como o de romeiro. Se ele tinha planos de tirar algum proveito eleitoral disso, não foi possível, porque o Círio agrega todos de maneira igual."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.