'Quem tem tudo é Deus': Museu dos Azulejos reúne 60 mil peças em Salvador
![Leonel Rodrigues, comerciante e curador do Museu dos Azulejos: "Arquitetos de lá [São Paulo] já me disseram que não tem a variedade que tem aqui" - Rafael Martins/UOL](https://conteudo.imguol.com.br/c/tab/0c/2022/10/11/museu-dos-azulejos-em-salvador-1665507527989_v2_900x506.jpg)
Da janela de um antigo casarão do Centro Histórico de Salvador, Leonel Rodrigues, 70, olha em direção à Baía de Todos os Santos e desfruta de uma paisagem de beleza e harmonia. Ao virar-se para trás, no entanto, o que ele vê é caos. O caos mais bem organizado que você vai conhecer na vida, mas, ainda assim, caos. É lá que este comerciante pernambucano guarda cerca de 60 mil tipos cerâmicos.
"Tenho todos os tipos de azulejos e cerâmicas", afirma Rodrigues com orgulho, para se emendar na sequência: "Ou quase todos. Quem tem tudo é Deus."
Sabe aquela máxima do Chico Science que diz "eu desorganizando posso me organizar"? Eis um preceito que define bem o Museu dos Azulejos, fundado por Rodrigues em 1997 nas proximidades dos turísticos Elevador Lacerda e Mercado Modelo e ao lado da Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, uma das mais tradicionais da capital baiana.
O ambiente é ao mesmo tempo caótico e cheio de regras — como a exposta numa placa na parede: "Atenção: este museu é bagunçado, mas organizado. Não arrume para não desorganizar." Prateleiras amontoam-se umas sobre as outras em três andares tomados pelas peças. "Nem em São Paulo você acha um acervo desse. Arquitetos de lá já me disseram que você acha estoques até maiores, mas não com a variedade que tem aqui."
Tudo disposto conforme a lógica peculiar de seu proprietário. Os estampados ficam no alto, para que se possa localizá-los à distância. "Os lisos ficam na altura dos olhos, onde posso avaliar com mais cuidado", explica. O comerciante diz que utiliza uma técnica que aprendeu com os museus do sudeste, que chama de paginação. Os azulejos podem literalmente ser folheados e assim se tornam mais fáceis de achar.
Quadrados raros
Um dos cinco funcionários do Museu, Adilson Aragão, 37, explica que os fundos das pedras definem o tipo cerâmica a ser encontrada e seu tamanho sugere em que área do museu ela pode estar. "Você vê uma imensidão dessa e pergunta: 'como achar uma cerâmica específica no meio disso tudo?' É fácil", sorri Aragão, que tem 15 anos de casa e adora a função: "É satisfatório demais. Trabalha com a mente e lida com pessoas. Gosto das duas coisas."
Um cliente que esteve no Museu durante a visita do TAB procurava uma cerâmica que havia saído de linha. "Tive que quebrar a parede da cozinha por causa de um vazamento. Isso aqui é um revestimento Eliene 29,5 x 29,5, que não é mais fabricado. Mas achei as peças aqui", comemorou o aposentado Giovani Donofrio, 67.
O Museu tem também vasos sanitários, pias e saboneteiras clássicas, de todos os formatos, cores e tipos. "Tive um antigo hotel com vasos e pias coloridos. Se quebrasse qualquer coisa, eu vinha logo aqui", lembra Donofrio.
Rodrigues conta que guarda a sete chaves algumas porcelanas e louças raras, além de azulejos autênticos portugueses. E que tem em estoque, inclusive, o azulejo que reveste a tradicional Casa da Música da Bahia, recentemente reformada e que conta a história da música baiana. "São peças mais caras, né? Eu só mostro para clientes de referência e que estão procurando esse tipo de produto."
Tino comercial
Rodrigues nasceu em Goiana, Pernambuco, e veio para a Bahia em 1971, transferido junto com uma empresa em que trabalhava. Nunca mais voltou. Casou-se com uma prima com quem teve cinco filhos, todos doutores, como faz questão de dizer. "Dois advogados, um juiz federal, uma pastora pianista e uma enfermeira PhD em administração", gaba-se. Ele próprio estudou administração, mas não se formou.
Nas décadas de 70 e 80, lembra Rodrigues, a região da Igreja da Conceição da Praia tinha um comércio fortíssimo. No início dos anos 90 ele comprou o espaço, onde funcionava uma um grande centro de materiais de construção. Comercializou esses materiais por um tempo, mas o negócio quebrou. Foi quando, em vez de fechar as portas, ele decidiu apostar nas peças de cerâmica mais velhas que tinha na loja, muito procuradas por clientes.
Assim nasceu o Museu, onde além de trabalhar ele também mora sozinho. "Fecharam todas as lojas da região. Ficaram só eu, Deus, as muriçocas e as pedras [azulejos]", lamenta. Apesar da crise econômica, a exclusividade manteve seu negócio vivo. "Vem gente do Brasil e do mundo inteiro, da Alemanha, Espanha, Itália."
Só Jota Cristo salva
Apesar de atencioso, o comerciante tem suas excentricidades, como não fazer questão de vender para "chatos". Essa impaciência chegou ao ponto de ser registrada num cartaz: "Atenção, pessoas chatas não são bem-vindas nesse local". Rodrigues confeccionou crachás que cola no peito dos compradores ou visitantes que o incomodem com sua chatice.
Certa vez, uma amiga insistiu em comprar uma réplica do quadro da Monalisa que ele tem exposta na entrada da loja. O comerciante finalmente disse que dava o quadro de presente, mas com uma condição. Imprimiu numa folha de papel o nome "Dona Elga" e colou na reprodução. "Pronto, o quadro é seu, só não pode levar da loja."
Evangélico, Rodrigues se refere ao filho de Deus como "Jota Cristo" — em quem confia para a continuidade do seu negócio. Tanto em relação à confusa propriedade do prédio do museu, no qual diz que vai ficando "até quando o governo deixar", quanto sobre o improviso de suas instalações.
"Tenho fé em Jota Cristo de que nunca vai acontecer um incêndio, né? Deus ama essa casa." O risco de desabamento de algumas das prateleiras também é suspenso pelo poder divino, acredita ele. "Jota Cristo segura. Pode subir aqui, rapaz", garante ao fotógrafo do TAB, Rafael Martins.
De uns tempos para cá, seu Leonel Rodrigues diversificou o acervo do Museu dos Azulejos. Estão à venda lá de ursinhos de pelúcia a porta-retratos, passando por troféus, uma máquina de datilografar, um violão preto, uma gaiola para hamster e uma coleção completa dos livros de Jorge Amado. Só não vale se arrepender: "Não trocamos", avisa, antes que o cliente seja chato.
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