Médicos bolsonaristas x 'doutores vermelhos': como a classe se divide em SP
Quinze médicos se reuniram para realizar um ato de apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na última quarta-feira (19), em frente à Famerp (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto). Eles são poucos (e sabem disso), e suas visões políticas e ideológicas destoam da maioria dos colegas de faculdade e de trabalho.
Em São José do Rio Preto, cidade de 470 mil habitantes no interior de São Paulo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) obteve o apoio de 156.389 eleitores, o que equivale a 60% dos votos válidos no primeiro turno. Lula, por sua vez, alcançou pouco mais de 75 mil, ou 29% do total. O percentual petista pode ser considerado pequeno, mas seria ainda menor se só fossem contados os votos dos médicos — nesse caso, com muita sorte Lula passaria dos 10%, eles estimam.
Na cidade, que concentra alguns dos principais serviços de saúde do estado e conta 2.394 médicos (uma média de cinco profissionais para cada mil moradores), a medicina é uma fortaleza da direita. Entre os que se manifestam publicamente, a maioria é bolsonarista. Não que não existam "doutores vermelhos".
Um dos participantes do ato pró-Lula foi o especialista em saúde pública e professor da Famerp José Carlos Cacau Lopes, que já foi vereador pelo PT na cidade.
"O movimento médico no Brasil, desde o surgimento das primeiras faculdades na Bahia e no Rio de Janeiro, sempre teve um viés conservador. Isso porque os profissionais eram oriundos da elite", diz. "O único momento em que a esquerda conseguiu alguma predominância foi no fim do regime militar, quando o grupo ligado ao Sindicato dos Médicos de São Paulo conquistou o CRM (Conselho Regional de Medicina). Mas isso foi um momento muito breve, em termos históricos."
Mais Médicos
Muitos médicos ouvidos pela reportagem não engolem até hoje o Mais Médicos, criado no governo Dilma Rousseff (PT), em 2013. O programa ampliou as vagas nos cursos de medicina, autorizou a abertura de novas faculdades na área e permitiu a vinda de profissionais de outros países, especialmente de Cuba, para atuar no Brasil.
"Foi tudo feito goela abaixo, sem consultar os órgãos de classe", opina o médico Roberto Cacciari Filho, 36, que presta atendimento de emergência em cidades da região de Rio Preto. Neste ano, Cacciari se candidatou a deputado federal pelo PL paulista, alcançando 19.751 votos, sem conseguir se eleger.
O programa é o principal ponto de discórdia, mas não é o único. O médico Guilherme Pinto Camargo, 38, se considera admirador de Bolsonaro. Formado desde 2011 e atuando em áreas como gestão de saúde e radiologia na região de Rio Preto, ele se opõe a "princípios da esquerda" — para ele, o Mais Médicos seria uma forma de "financiar ditaduras".
Camargo votou pela primeira vez em 2002, quando apoiou José Serra (PSDB), derrotado por Lula no segundo turno — na época, já era crítico ao líder sindical. "Sou uma pessoa que preza pelo técnico. Sempre vi Lula como um populista, que nunca quis estudar a fundo a economia e a gestão. Além disso, o socialismo nunca deu certo em lugar nenhum do mundo", diz.
Marcos Daniel Arroyo Monteiro, 42, que atua na área de emergência, também tem críticas à abertura de novos cursos durante os governos do PT. Segundo ele, isso teria levado a uma deterioração da medicina.
"Criaram mais de 200 faculdades, mas não conseguiram dar o devido suporte aos estudantes, que chegam ao mercado com uma dívida enorme de financiamento estudantil e sem o devido preparo para atenderem à população, que, no fim das contas, acaba sendo a grande prejudicada", diz ele, que é professor de uma instituição particular, a Unilago (União das Faculdades dos Grandes Lagos), de Rio Preto.
Já Lopes, que coordena o programa Mais Médicos nas regiões de Rio Preto e Araçatuba, considera que a postura reativa em relação à criação de novos cursos representa, na verdade, a defesa de uma reserva de mercado. "Eles perceberam que, com o aumento de vagas nos cursos e a chegada dos alunos de outros estratos sociais, a concorrência está aumentando."
Profissão de elite?
Depois de participar do ato em frente à Famerp, Lopes recebeu em sua casa Guilherme Boulos, eleito deputado federal por São Paulo, e Ediane Maria, eleita deputada estadual, ambos do PSOL e do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).
À noite, os três participaram de um segundo ato pró-Lula. Além de militantes e filiados de partidos como PT, PSOL, PC do B, PV e PDT, a plenária contou com outros dois médicos, além de Lopes, na plateia.
Gabriela Gouvea Silva, 29, e Carlos Dario da Silva Costa, 43, se consideram figuras raras na medicina atual devido a seu posicionamento mais à esquerda. "O conservadorismo da profissão é reflexo do fato de grande parte dos médicos ser da elite", acredita Silva. "Sem contar que é curso em que, para você ser aprovado, é necessário muito investimento. Então, quem tem dinheiro acaba tendo mais chances de entrar", afirma Costa.
Os médicos petistas dizem que são cuidadosos ao abordar política em conversas com colegas de trabalho. "Nos meios em que convivo, alguns são tolerantes, outros nem tanto", diz Silva, que afirma já ter sido "mandada para Cuba" algumas vezes.
Apesar dos ânimos acirrados às vésperas do segundo turno, os médicos bolsonaristas ouvidos pelo TAB afirmam adotar uma postura respeitosa em relação aos adversários políticos e que nunca tiveram discussões mais acaloradas por eleições. "A democracia se faz com diálogo e debate de ideias. Sem contar que a eleição passa e a convivência precisa permanecer", diz Cacciari.
Há discussões quando o assunto é pandemia da covid-19. Os médicos petistas questionam a adesão dos colegas a Bolsonaro: "É totalmente paradoxal. Escolhem fechar os olhos para a saúde, em nome da pauta de costumes", acusa Silva. "A gestão da pandemia teve erros e acertos, até porque era uma doença desconhecida. Mas muitas das críticas feitas a ele [Bolsonaro] se baseiam em inverdades", rebate Camargo.
Entretanto, eles concordam num ponto: a importância da vacinação. "Sou a favor da vacina, fui vacinado e sei o quanto ela foi importante para que pudéssemos superar a fase crítica da pandemia", avalia Monteiro. A CPI da Covid apontou atraso deliberado na compra de vacinas pelo governo federal — na visão do médico, elas foram disponibilizadas "em tempo muito hábil" no Brasil.
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