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Palco negro, plateia branca: 'Drag Brunch' exibe drags à família brasileira

Alesha Bruke trabalha como empregada doméstica durante o dia e à noite se apresenta em casas noturnas - Pryscilla K./UOL
Alesha Bruke trabalha como empregada doméstica durante o dia e à noite se apresenta em casas noturnas
Imagem: Pryscilla K./UOL

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

23/11/2022 04h00

Apesar do calor de 30°C marcado num relógio de rua na Vila Nova Conceição, na zona oeste de São Paulo, Alesha Bruke, 34, estava preparada para a montação. Apareceria pouco depois no espaço onde funciona o Sky Hall Terrace Bar com cabelo castanho ondulado, vestido amarelo e preto, além de maquiagem marcada no rosto.

Eram 11h20 do último domingo (20) e ela faria uma apresentação às 13h, em plena luz do dia. No cronograma, ela teria duas entradas, uma em cada bloco. Na primeira, interpretaria Beyoncé; na segunda, Whitney Houston. "É a realização de um sonho", comentou a artista, que de segunda à sexta trabalha como doméstica e de noite se apresenta em casas noturnas.

O evento onde Alesha faria suas performances se chama "Drag Brunch", que realiza sua 5ª edição em São Paulo. Enquanto os garçons mantêm as mesas bem abastecidas de vinho, pães artesanais e refeições frugais, o público aprecia um show de drag queens.

'Que abafado'

Se no camarim o calor não incomodava, do lado de fora a temperatura visivelmente atrapalhou alguns convidados. Às 11h05, quando a entrada foi liberada, teve gente que franziu o cenho. Outros usaram as mãos para se abanar. Parte do público pediu mesa onde o sol estava menos forte.

Os ventiladores não foram tão eficientes para aliviar o suor e a quentura das mesas e cadeiras. "Mas que abafado!", comentou uma convidada, logo que chegou. Nos minutos seguintes, com a chegada de bebidas, o incômodo sumiu dos rostos. A cobertura do local foi útil, já que perto das 13h30, uma chuva fina começou a cair.

Público na 5ª edição do Drag Brunch, em São Paulo - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Público na 5ª edição do Drag Brunch, em São Paulo
Imagem: Pryscilla K./UOL

Com ingressos individuais entre R$ 85 e R$ 125, o espaço é dividido por mesas que variavam de 2 até 8 cadeiras. A faixa etária do público era variada — a reportagem encontrou desde crianças de 6 anos até adultos mais maduros, com 71. Levar cachorros não era uma questão: ao menos três foram vistos circulando. Os valores pagos incluem a permanência no local e assistir às apresentações. Comidas e bebidas são cobradas à parte.

No cardápio, a cerveja mais barata custava R$ 19,90. Para comer, um shawarma de frango, curry e coalhada seca valia R$ 38.

Alyssah Hernandes circula no meio do público do Drag Brunch  - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Alyssah Hernandes circula no meio do público do Drag Brunch
Imagem: Pryscilla K./UOL

Palco negro, plateia branca

A quinta edição, realizada no Dia da Consciência Negra, teve apresentações só com drags negras. Já na plateia, a maioria do público — cerca de 80 pessoas — era branca.

Perto das 13h, o jornalista, apresentador e um dos criadores do evento Ikaro Kadoshi, 42, avisou a plateia que, em minutos, as atrações entrariam em cena, mas antes disso, um vídeo com orientações foi exibido. Nele, Kadoshi lembrava que as artistas também podiam receber doações do público.

O "Drag Brunch" existe em vários lugares do mundo. Na última viagem aos EUA, o jornalista conversou com seu empresário e negociou trazer o evento ao Brasil. Kadoshi e os proprietários do Sky Hall são os sócios do projeto. Há planos de expansão para outras cidades.

Silvetty Montilla apresentou o evento e arrancou gargalhadas dos presentes - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Silvetty Montilla apresentou o evento e arrancou gargalhadas dos presentes
Imagem: Pryscilla K./UOL

Não vai ter Copa

Apesar de amar futebol, e de ter sido goleiro quando mais novo, Kadoshi justificou porque eles decidiram não exibir o jogo durante o evento: a homofobia do país asiático.

Com o microfone em mãos, Kadoshi falou isso de forma incisiva. "Depois que você se divertir com o jogo, vai se divertir vendo homossexuais sendo enforcados, porque é o que eles fazem por lá." A fala forte chamou atenção do público, que entendeu a mensagem — o Qatar proíbe, sob pena de apedrejamento, "atividades homossexuais".

Em seguida, abriu o palco para Silvetty Montilla, 55, uma das principais drags do país e referência para o público LGBTQIA+. Foi dela a condução do espetáculo.

Logo nos primeiros momentos, em interação com a plateia, Silvetty arrancou risos do público ao fazer piadas com as roupas dos convidados, com o que estava sendo servido e com a fisionomia de algumas pessoas que estavam trabalhando por ali. "Tá solteiro?", foi uma das perguntas mais feitas por ela no evento, além de insinuações de beijos.

Leyllah Diva Black, durante apresentação ao som de Whitney Houston - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Leyllah Diva Black, durante apresentação ao som de Whitney Houston
Imagem: Pryscilla K./UOL

Mais espaço para drags

Na plateia cheia de fãs do reality RuPaul's Drag Race estava o auxiliar de produção Robson Vicente, 39, que também é a drag Casey Holliday. Não era sua primeira vez ali, mas ele se disse ansioso para ver as atrações. Um dos motivos que o faz voltar ao brunch é a falta de ações que deem visibilidade à arte drag. "Por mais que as queens sejam o carro-chefe do mundo LGBTQIA+, falta expandir o espaço."

Ao som de "Pretty hurts" da Beyoncé, Alyssah Hernandes, 36, foi a primeira a se apresentar no evento. Com cabelo loiro, espartilho de pluma preta, luva dourada, colar e bota da mesma cor, subiu ao palco sob aplausos. Nos minutos em que durou a música, beijou a mão de algumas pessoas, rebolou e exibiu-se. Alguns ofereciam notas de R$ 20 e R$ 50.

Na sequência, com vestido laranja e desenhos étnicos, Leyllah Diva Black encarnou Whitney Houston na música "Didn't we almost have it all", Alesha Bruke escolheu "Cuff it", de Beyoncé, enquanto Ravena Creole decidiu que a cantora trans Majur, com a letra "Africanei", seria a música-tema de sua performance.

Com cabelo black, roupa laranja de mangas largas e uma apresentação em que rodou dezenas de vezes na frente do público, a drag foi aplaudida várias vezes enquanto os versos "Sou angolano, africano / Índio, riquenho, mexicano / Preto, amarelo, pardo / Sou mistura, brasileiro nato / Isso não vem do branco" ecoavam pelas caixas de som.

Marcinha do Corintho, de vestido de lantejoulas douradas, fez uma apresentação mais intimista, diferente do discurso após a performance.

"No colégio me batiam. Me tiraram de lá. Na adolescência, fui para Europa e conheci Milão, Paris, Espanha. Fiz muita coisa", lembrou. "Aqui, a expectativa de vida para nós, trans, é de 30 anos, mas estou com 55. Estou feliz." Apesar de rápida, a fala emocionou. Foi aplaudida de pé.

Natasha Princess foi a última a se apresentar no primeiro bloco do evento. A drag vestia uma roupa toda vermelha e levantou o público com uma apresentação cheia de bate-cabelo. O público gostou mesmo; terminada a apresentação, ela ainda estava recolhendo cédulas entregues pela plateia.

Emocionada com a performance, respirou um pouco e emendou um discurso em prol da classe. "Sou uma travesti viva no país que mais nos mata. Sou periférica do Capão Redondo [periferia da zona sul de São Paulo] e arte é muito importante. As drags do Brasil precisam ser exaltadas."

Ikaro Kadoshi abraça Maria Venâncio, fã que saiu de Itaquera para ver a apresentação  - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Ikaro Kadoshi abraça Maria Venâncio, fã que saiu de Itaquera para ver a apresentação
Imagem: Pryscilla K./UOL

Tem criança

No vai e vem, Ikaro foi abordado pela manicure Maria Venâncio, 28. Moradora de Itaquera, zona leste de São Paulo, ela acompanha o mundo drag por influência da tia e da mãe.

Fã do reality "Drag me as a queen", apresentado por Penelopy Jean, Rita von Hunty e pelo próprio Ikaro no canal E!, começou a chorar ao contar o quanto se emociona ao ouvir e entender algumas histórias que vê no reality. "Hoje, aqui, é minha criança de 8 anos que tem os olhos brilhando. Me sinto acolhida, muito amada. Paixão", comentou.

Moradora da periferia, Maria diz que sente falta de atividades como essa onde mora e em bairros mais afastados do centro. Ela cita que se tivesse um evento parecido no bairro em que mora, e nas redondezas, como Guaianases e na cidade de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, poderia mudar a visão das pessoas sobre a arte drag e popularizar o movimento. "Acho que muitas drags se escondem nestes lugares pela própria segurança", cita.

O empresário Luan Bueno, 29, ficou sabendo do evento pelas redes sociais. No caso dele, o que chamou atenção foi o conceito de tirar as drags queen da noite e trazê-las para o dia. "Elas não ficam só numa casa noturna voltada para o público da noite. Aqui tem outro público também. Olha as crianças, isso é um diferencial, né?"