Topo

Em acordo inédito no país, PM de Goiás aceita ter suas ações gravadas

Orcélio Silvério Júnior, advogado agredido pela PM de Goiás - Cristiano Borges/UOL
Orcélio Silvério Júnior, advogado agredido pela PM de Goiás Imagem: Cristiano Borges/UOL

Théo Mariano

Colaboração para o TAB, de Goiânia

03/12/2022 04h00

Na manhã de 21 de julho de 2021, o advogado Orcélio Ferreira Silvério Júnior, 33, resolvia questões do trabalho, em Goiânia, quando recebeu uma ligação de seu pai, dono de um centro comercial em frente ao terminal da Praça da Bíblia, no Setor Leste Vila Nova.

Apressado, ele pedia a presença do filho no local, pois cinco agentes do Giro (Grupo de Intervenção Rápida Ostensiva) estavam agredindo um flanelinha, identificado como Pedro Ernesto, alegando que ele estava extorquindo e ameaçando quem estacionava na porta.

Ao chegar ali, Silvério Júnior decidiu gravar a abordagem ao flanelinha. Identificou-se como advogado a um dos agentes e afirmou ser representante da defesa do funcionário. "Pedro trabalhava conosco havia muito tempo. Nunca tivemos qualquer problema com ele", conta Orcélio Júnior. No entanto, três minutos após iniciar a gravação, aproximou-se do advogado o primeiro-tenente da PM Gilberto Borges da Costa, pedindo para parar a gravação. "Respondi perguntando a identificação dele, como pede o POP (procedimento operacional padrão). Depois disso, ele me deu uma gravata e começaram as agressões."

Segundo lojistas do centro comercial, os socos, tapas e pontapés no advogado duraram cerca de 30 minutos. "Silvério Júnior sempre foi um rapaz muito respeitoso, ninguém entendeu o motivo daquilo. Os tapas eram tão fortes que estalavam, faziam eco", relembra uma comerciante que preferiu não se identificar. A grande maioria dos vendedores não quis falar com a reportagem.

O advogado Orcélio Júnior, no local da agressão - Cristiano Borges/UOL - Cristiano Borges/UOL
O advogado Orcélio Júnior, no local da agressão
Imagem: Cristiano Borges/UOL

'Fui torturado por cinco horas'

Na sequência, Silvério Júnior foi levado para a Central Geral de Flagrantes, no setor Cidade Jardim, em Goiânia, junto do flanelinha. Ao chegar lá, a violência continuou. "Fui torturado por pelo menos cinco horas. Eu estava transtornado. Eles me davam socos, torciam meus dedos, puxavam minha orelha, falavam que iam matar a mim e a toda a minha família", disse o advogado, que chorou ao lembrar da cena. "Antigamente, até acreditava nessa história de moral, bons costumes, mas olha isso. Fui destruído dessa maneira por quem deveria me defender."

Enquanto estava na delegacia, Silvério Júnior acionou a OAB-GO (Ordem dos Advogados do Brasil de Goiás) para relatar o caso, que ganhou repercussão imediata. Alexandre Pimentel, presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas do órgão, chegou a ir ao local para averiguar. Júnior entrou com um processo criminal, representado pelo Ministério Público de Goiás. A OAB-GO é assistente de acusação.

O advogado passou por dois exames de corpo de delito. O primeiro foi feito três horas após sua entrada na delegacia; o outro foi feito no final do dia, às 18h, após falar com o delegado.

À época, os policiais alegaram que foi necessário conter o advogado porque ele teria partido para cima dos agentes, desferindo socos e mordendo o dedo de um dos policiais. A versão é contestada por lojistas ouvidos pela reportagem e por Silvério Júnior, que ainda questiona o porquê de os agentes terem apagado o vídeo que ele havia gravado inicialmente.

"Muitas pessoas dizem que essa história teve um lado positivo, porque me trouxe certa publicidade. Nada disso. Acabou com a minha família e hoje vivemos todos à base de remédios. Se eu durmo, são no máximo três horas por noite", desabafou Silvério Júnior. "Às vezes, quando vou comer, só consigo ver as lágrimas da minha mãe, que está definhando por tudo isso. Perco a fome."

Alexandre Pimentel, da OAB (de paletó bege), Orcélio Ferreira Silvério Júnior (no centro) e a irmã do advogado agredido, Roberta Ferreira  - Cristiano Borges/UOL - Cristiano Borges/UOL
Alexandre Pimentel, da OAB (à esq.), Orcélio Ferreira Silvério Júnior (no centro) e a irmã do advogado agredido, Roberta Ferreira
Imagem: Cristiano Borges/UOL

Condenado por tortura

Na ação, estavam envolvidos cinco agentes: o primeiro-tenente Gilberto Borges da Costa, o cabo Robert Wagner Gonçalves de Menezes e os soldados Idelfonso Malvino Filho, Diogenys Debran Siqueira e Wisley Liberal. Dos cinco, apenas o primeiro-tenente foi condenado a dois anos e oito meses de prisão pelo crime de tortura. Ele foi exonerado do cargo — e a pena pode ser cumprida em regime aberto. Os outros agentes foram absolvidos.

Alexandre Pimentel disse ao TAB que a entidade recorreu dessa decisão para aumentar a pena do policial condenado e rever as outras absolvições. "Os vídeos mostram, em dado momento, os quatro agentes segurando Orcélio, pelos braços e pernas, enquanto o primeiro-tenente desferia os socos. Além disso, eles foram omissos ao não intervir nas agressões", afirmou Pimentel.

Após a agressão do advogado, a Polícia Militar de Goiás assinou acordo inédito que garante que qualquer testemunha possa filmar ações policiais sem interrupção por parte dos agentes. Assinaram o termo, além da PM-GO, a Polícia Civil (PC-GO), a Procuradoria-Geral do Estado (PGE), o Tribunal de Justiça (TJ-GO), o Ministério Público (MP-GO), o Conselho Federal da OAB e a Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP-GO).

O termo foi firmado no dia 22 de novembro, na Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Administração Estadual. O acordo havia sido proposto em 28 de julho de 2021, uma semana após a agressão cometida contra o advogado Silvério Júnior.

Pimentel, contudo, afirma que, mesmo sendo benéfico, o acordo basicamente "faz chover no molhado": a população sempre pode filmar abordagens policiais, pois eles são servidores públicos a trabalho pelo Estado. "O agente que não permitir a filmagem da ação já incorre em crime de abuso de autoridade", acrescentou. Ainda assim, o presidente concorda com a necessidade do termo, que fortalece a manutenção dos direitos dos cidadãos.

O acordo é inédito no País. A informação foi confirmada ao TAB pelo procurador nacional de defesas das prerrogativas do Conselho Federal da OAB, Alex Sarkis. Segundo ele, todo e qualquer cidadão, "especialmente os advogados", "podem filmar as abordagens". "As filmagens têm a finalidade de legitimar a atuação das forças policiais e, ao mesmo tempo, registrar eventuais excessos daqueles policiais que abusarem e transgredirem [da lei]."

Em relação ao acordo, o tenente-coronel da PM de Goiás, Dalbian Guimarães Rodrigues, afirmou, em vídeo divulgado no Instagram, "nunca ter havido qualquer instrução para que filmagens fossem proibidas durante abordagens policiais". "Informamos que qualquer pessoa que queira filmar uma abordagem policial deverá respeitar o perímetro de segurança do local, pois a violação desse perímetro coloca em risco a integridade física dos policiais", prossegue o tenente-coronel. Dalbian diz que a corporação sempre atuou em prol da garantia dos direitos fundamentais e pelo "total respeito" ao Estado Democrático de Direito. O policial ainda chamou de "notícias incompletas e distorcidas" aquelas publicações que citam a dificuldade de gravar abordagens policiais.

Em nova etapa, o advogado agredido agora é vice-presidente da comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-GO e coordena o grupo responsável por apurar casos de agressão. Silvério Júnior agora diz se sentir revigorado para lutar. "É uma honra estar nessa posição e quero levá-la como uma verdadeira missão de combater toda essa imoralidade, que também me fez vítima."

A reportagem tentou contato com os advogados dos policiais envolvidos, sem sucesso.