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'Não vão nos calar': público volta a bar de esquerda atacado em Brasília

"Tentaram nos calar com os disparos, mas não conseguiram", diz Ana Júlia Melo, 33, uma das sócias do Mimo Bar, na quadra 205 Norte -  Jéssica Lima/UOL
'Tentaram nos calar com os disparos, mas não conseguiram', diz Ana Júlia Melo, 33, uma das sócias do Mimo Bar, na quadra 205 Norte Imagem: Jéssica Lima/UOL

Jéssica Lima

Colaboração para o TAB, de Brasília

04/12/2022 04h01

Na entrada, um Lula de papelão, de pouco mais de 1,5 metro de altura, recepciona os clientes, que não dispensam uma selfie com o político. No computador instalado no caixa, frases pedem a saída de Jair Bolsonaro do governo. Onde quer que se olhe, o Mimo Bar, localizado na Quadra 205 Norte, em Brasília, deixa clara a visão política de proprietários e frequentadores: progressista e de apoio ao público LGBTQIA+.

No último domingo (27), porém, o badalado reduto esquerdista estampou as capas de jornais por uma razão nada festiva. O bar sofreu um ataque de madrugada, enquanto estava fechado. Vizinhos testemunharam quando, por volta de 3h, um carro parou, duas pessoas desceram e atiraram na fachada do estabelecimento. Pelo menos quatro disparos atingiram barris utilizados como mesa para clientes em espera.

Mimo Bar sofre atentado em Brasília - Jéssica Lima/UOL - Jéssica Lima/UOL
Os tiros atingiram os barris utilizados como mesas de espera do bar
Imagem: Jéssica Lima/UOL

'Tentaram nos calar'

Os três sócios da casa localizada em uma das quadras mais famosas de Brasília, conhecida como Babilônia, só tomaram conhecimento do atentado na tarde de domingo (27), quando chegaram para abrir o estabelecimento. O bar se preparava pra receber uma grande quantidade de clientes na segunda-feira, estreia da seleção brasileira na Copa do Qatar — mas eles tiveram que passar o dia anterior ao jogo na delegacia.

"Tentaram nos calar com os disparos, mas não conseguiram", diz Ana Júlia Melo, 33, uma das proprietárias. "Abrimos normalmente e informamos nosso público o que tinha acontecido. Nos comentários, chegaram a dizer que fizemos isso pra conseguir mídia. Quem em sã consciência iria metralhar o próprio bar?".

O impacto foi sentido no dia do jogo do Brasil, quando o Mimo, que tem cerca de 30 mil seguidores nas redes sociais, não recebeu a quantidade de público esperada. Mas o movimento voltou ao normal ao longo dos dias e o bar vem sendo visitado pelos clientes.

Ao lado dos barris perfurados, uma parede foi decorada com mensagens pelos próprios frequentadores, como "Marielle vive" e "fora genocida." Durante a campanha presidencial, o bar já havia recebido xingamentos nas redes e ameaças de grupos bolsonaristas, mas ninguém esperava que o ódio se transformasse em crime.

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Com posições políticas progressistas, o Mimo acolhe um público diverso e apoia a causa LGBTQIA+
Imagem: Jéssica Lima/UOL

Lugar de acolhimento

"Sempre deixamos claro o nosso posicionamento político, tanto presencialmente no bar, quanto na internet", conta Ana Júlia. "Muita gente se sentiu acolhida aqui, pretos, gays, lésbicas, héteros, já que Brasília é uma cidade de maioria bolsonarista." No segundo turno das eleições no Distrito Federal, Bolsonaro teve 58,81% dos votos, contra 41,19% de Lula.

Outro dos sócios, o empresário Lucas Tobias da Fonseca, 31, conta que em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, quando o bar promoveu um desfile de pessoas pretas, um ciclista passou e começou a xingar os participantes. "Isso nos assustou", diz Lucas. "Depois dos tiros, estamos nos sentindo na música 'Faroeste Caboclo', aliás, lembrando que estamos próximos aos acampamentos golpistas. É muito triste trabalhar com medo. E pedimos rondas e reforço para a polícia."

A reportagem, que permaneceu no local das 17h às 21h de quarta-feira (29), não avistou nenhuma viatura da Polícia Militar na quadra.

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O turista norte-americano Stuart Clarke veio com um amigo brasileiro: 'Estou encantado com tudo'
Imagem: Jéssica Lima/UOL

Clientela diversa

Stuart Clarke, 25, visitava o bar pela primeira vez. Morador de Boston, nos EUA, o consultor está fazendo um mochilão pelo Brasil. Quando chegou ao espaço, pediu ao amigo brasileiro Pedro Reino, 23, tirar sua foto com o display de Lula, e não dispensou o "L" na mão.

"Estou há dois dias em Brasília e apaixonado por essa cidade. Esse é o bar mais diferente que conheci e estou encantado com tudo", disse Stuart. O colega Pedro relata que ficou chateado com os ataques, mas que mantém a confiança na segurança do comércio. "Aqui é maravilhoso, não poderia deixar de trazer o Stuart pra cá."

Os amigos Matheus Morais, 23, Renata Albernaz, 25, e Marina Velozo, 24, assíduos da casa há pelo menos três anos, acreditam que o ataque tem relação direta com a posição política do bar e de quem o frequenta.

"Ficamos extremamente chateados com a notícia. Afinal, estamos no centro de Brasília, uma região de alto padrão", espanta-se a turismóloga Marina. "Mas nunca deixaríamos de frequentar o Mimo por causa dessa aversão política que foi criada na cabeça das pessoas."

Para Matheus e Renata, o Mimo Bar ficou ainda mais forte depois dos ataques. "Temos certeza que a força e o engajamento do Mimo ficarão ainda maiores. Ninguém solta a mão de ninguém por aqui", afirma Matheus.

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Os habitués Matheus Morais, Renata Albernaz e Marina Velozo: 'Aversão política criada na cabeça das pessoas'
Imagem: Jéssica Lima/UOL

Ocupação cultural

O Mimo nasceu em maio de 2017, como um bar contêiner itinerante. O primeiro endereço foi em um terreno abandonado na 105 Norte. Em 2019, foi a vez da Piscina de Ondas, localizada no Parque da Cidade e desativada há mais de 20 anos, ser ocupada pelos sócios.

"Essa grande ocupação cultural recebeu mais de 120 mil pessoas em quase quatro meses. Depois do hiato da pandemia, abrimos aqui em maio de 2021, agora em espaço fixo", explica o terceiro sócio, Sandro Biondo, 47. Sobre o "preço" do posicionamento político do bar, ele não hesita: "Eu não quero toda a clientela do mundo, mas os que me interessam."

O atentado segue sendo investigado pela 2ª Delegacia de Polícia, na Asa Norte. Até o momento, os autores dos disparos não haviam sido identificados. De acordo com a Polícia Civil, os agentes estão em busca de imagens de câmeras de segurança que possam ajudar na apuração.

Para o deputado distrital Fábio Félix (PSOL), presidente da comissão de direitos humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal, é preciso urgência. "Não é coincidência que o estabelecimento tenha sido alvo de tiros semanas depois de aparecer numa lista da extrema-direita, como um dos locais do DF a serem boicotados. O fascismo e a barbárie não vão nos calar nem silenciar a alegria, a diversidade, a liberdade e as diferenças."