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Pelé, que em 1969 foi ator de novela, só não podia ter par romântico

Regina Duarte e Pelé contracenam em "Os Estranhos", novela da TV Excelsior de 1969 - Reprodução
Regina Duarte e Pelé contracenam em 'Os Estranhos', novela da TV Excelsior de 1969 Imagem: Reprodução

Luciana Bugni

Colaboração para o TAB, de São Paulo

29/12/2022 04h00

Um escritor vivia recluso em uma ilha comprada com o dinheiro da venda de seus livros. Ali, recebeu a visita de alienígenas amarelos e brilhantes que queriam ajudar os terráqueos a disseminar o amor. Os ETs haviam vindo do planeta Gama Y-12, um lugar onde a paz era absoluta, e queriam ajudar a resolver os problemas humanos como a raiva, o ciúme e outros sentimentos nada nobres. O ator que mediava a relação entre extraterrestres e humanos era alguém que você conhece como Pelé.

"Os Estranhos" estreou na TV Excelsior em 1969. A ideia de convidar o maior jogador de futebol do mundo para o elenco partiu do locutor esportivo Edson Leite, que percebeu que Pelé tinha um contrato com a emissora desde 1961. Na época, ele dividia a apresentação do esportivo "Ultra Gol" com o narrador Pedro Luís - o programa era de entrevistas sobre esporte e música e tinha como redator Manoel Carlos, futuro autor de novelas globais.

Desde então, Pelé não havia mais entrado nos estúdios da Excelsior, mas havia feito um sucesso tremendo como convidado da "Família Trapo", na Record, em 1967 - um episódio icônico em que Jô Soares chama o camisa 10 para fazer uma pegadinha com Ronald Golias, que não o reconhece e critica suas habilidades boleiras.

A estratégia de marketing para a novela era excelente: ele havia sido campeão do mundo pelo Brasil duas vezes, em 1958 e 1962, brilhava no Santos, e estava às vésperas de marcar o milésimo gol. Mas como caberia nesse currículo uma novela, que exige dedicação diária?

"Pelé tinha vontade de atuar, mas precisavam adaptar o papel para que ele conseguisse fazer as cenas sem problemas nos treinos", conta o roteirista Magalhães Junior, que assistiu "Os Estranhos" na época. O cuidado da produção foi não envolvê-lo romanticamente com ninguém — se precisasse se ausentar, seria mais fácil resolver as cenas.

O Santos Futebol Clube, naturalmente, tinha interesse em cooperar: na gravação de "Família Trapo", que quase derrubou o teatro Record de tantos aplausos, Pelé surgia no palco com a camisa do time e ficava 25 minutos exibindo o escudo em cena. Em 1969, o Peixe foi tricampeão paulista e Pelé foi o artilheiro do campeonato, com 26 gols. A novela terminou em agosto e em novembro acontecia a festa pelo gol número 1.000. Só dava ele.

"Pelé tinha uma força midiática muito grande. A Excelsior quis explorar esse carisma junto à imprensa. Ele sempre soube dialogar, se comunicar bem com a mídia - algo que era raro entre os jogadores da época. Isso reforçava o craque como um grande mito, que se dedicava bastante em todas as áreas", conta Elmo Francfort, pesquisador da história da TV brasileira, diretor do Museu da TV e coordenador do Centro de Memória e Estudos da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão).

Da esq. para a dir., Rosamaria Murtinho, Pelé e Regina Duarte em 'Os Estranhos', novela de TV Excelsior de 1969 - TV Excelsior/Reprodução - TV Excelsior/Reprodução
Da esq. para a dir., Rosamaria Murtinho, Pelé e Regina Duarte em 'Os Estranhos', novela de TV Excelsior de 1969
Imagem: TV Excelsior/Reprodução

Os Estranhos e a Excelsior

Escrita por Ivani Ribeiro, autora de sucessos como "Mulheres de Areia" e "A Viagem", "Os Estranhos" trazia a temática extraterrena em momento oportuno: o mundo se voltava à possibilidade de o homem pisar na Lua, o que de fato aconteceu em julho daquele ano. Além disso, os jovens se encantavam com a saga da série "Perdidos no Espaço". "Barbarella", o clássico da heroína futurista de Jane Fonda, havia sido lançado no ano anterior.

"Eu tinha 16 anos e já havia visto 'Perdidos', 'Flash Gordon' e 'Nacional Kid'. A temática futurista não era novidade, mas fiquei ansioso para ver Pelé em uma novela. O que me incomodava nessa época era que não havia luta, nenhum confronto. Os ETs vinham em paz, eram do bem. Isso era muito frustrante para a molecada que queria ver cenas de ação", conta Magalhães.

Outra coisa que intrigava o público era o visual do personagem Daniel, interpretado por Stênio Garcia. "Parecia ter tido uma educação europeia, lembrava muito o costureiro Denner. A possibilidade desse personagem ser gay, o que não era mencionado na trama, chocava mais que os alienígenas", lembra.

Além de Stênio, o elenco tinha estrelas como Regina Duarte e Rosamaria Murtinho. Todos ganhavam salários astronômicos. "A emissora produzia grandes novelas, mesmo às vésperas de seu fechamento. Tanto a Excelsior quanto a Tupi foram emissoras que caíram em pé", afirma Elmo Francfort.

'Os Estranhos', novela protagonizada por Pelé em 1969 - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

O ator que era Rei

O elenco viu a chegada de Pelé aos estúdios da Excelsior, em Itapevi (SP), com extrema amabilidade. "Era uma pessoa mundialmente famosa", conta Stênio Garcia, que ajudava o jogador a memorizar seus textos. O novelista Silvio de Abreu, que era ator na época, fala sobre a experiência com entusiasmo. "Via e vejo até hoje como um dos grandes privilégios que a vida me proporcionou."

"Havia muita tietagem. Apesar de Pelé sempre se colocar como um de nós, era inegável a admiração à sua volta. Jamais o vi perder a paciência com as inúmeras pessoas que o procuravam para fotos e autógrafos", conta o escritor, que atuou com ele também no filme "A Marcha", de 1972, em que Pelé interpretava uma pessoa escravizada que libertava outras. "Tinha muitas cenas de ação, o que para ele, que foi um atleta maravilhoso, era um presente", diz Silvio.

Segundo as revistas de 1969, Stênio era "professor de arte dramática" de Pelé. O jogador levava a alcunha a sério e chamava o colega de mestre. "Imagina só, me chamar de mestre. Mestre é ele", afirmou o ator ao TAB. No CT do Santos, localizado à época na Chácara Nicolau Mouran, em São Bernardo do Campo, Stênio e Pelé passavam textos enquanto pescavam à beira da represa Billings. "Ele se esforçava muito para decorar todas as falas e chegar ao estúdio pronto. Havia vezes em que eu chegava a dormir no CT para ajudá-lo. Uma honra", conta Stênio.

Em publicação da época, Regina Duarte afirmava que, no começo, não conseguia imaginá-lo como ator: "Para mim, ele era o craque mais famoso do mundo. Mas já acostumei. Ele tem muita força de vontade e isso contrabalança com seu pouco tempo como ator".

O maior do mundo pensava seriamente em fazer uma transição de carreira. Stênio afirma: "Eu queria mostrar pra ele que não mudava nada: ele tinha contato com as pessoas, era popular, lidava com multidões. É a mesma coisa".

Nas revistas da época, o jogador deu entrevistas em que parecia empolgado de fato. "Acho que vai ser divertido, sabem, eu sempre quis me meter nesse ambiente de televisão. Aqui pra nós, quando o futebol acabar, já tenho outra carreira", disse em uma das publicações apuradas pela reportagem. O plano acabou frustrado com o fechamento da emissora, em 1970.