Topo

OPINIÃO

Chuva, cerveja e radinho na espera pelo corpo de Pelé em Santos

29.12.22 | Torcedores na Vila Belmiro fazem vigília por Pelé - Marcello Zambrana/AGIF
29.12.22 | Torcedores na Vila Belmiro fazem vigília por Pelé Imagem: Marcello Zambrana/AGIF

João Paulo Charleaux

Colaboração para o TAB, de Santos (SP)

31/12/2022 10h28

Tem alguém falando a palavra "magia" no rádio. Minha avó está com 98 anos. Ela mora sozinha, numa casinha antiga e sobreposta, no bairro da Ponta da Praia, em Santos. A rua em que ela vive era uma porção de chácaras de japoneses que plantavam chuchu.

Com a idade que tem agora, vó Maria já não ouve bem. Ela coloca o volume do radinho no talo e é por isso que eu ouço alguém dizendo a palavra "magia" para se referir ao Rei Pelé. O som metálico do aparelhinho sai de dentro do quarto dela, onde, há dois dias, ecoam notícias repetitivas sobre a morte do Rei. Ele tinha uma casa aqui perto, no mesmo bairro da minha avó, saindo um pouco mais à esquerda, na direção da balsa. À direita, fica ainda hoje a casa da mãe dele, dona Celeste. Ela mora no canal 6.

Tudo segue aqui, no mesmo lugar, parado, enquanto os comentaristas que falam no rádio da minha avó evocam um Pelé mágico, místico, mítico, quimérico. Eles desenham um ser mitológico, um deus inalcançável pelos meros mortais. Volta e meia alguém fala "magia".

Quando o Rei foi internado pela última vez em São Paulo, no Hospital Albert Einstein, eu também estava aqui em Santos, na casa da minha avó. Tenho buscado estar perto dela tanto quanto possível, à medida que os cem anos se aproximam. "Vai lá, filho", ela me disse, um mês atrás, dando um beijo na minha testa, quando vesti minha camisa do Santos e peguei a estrada para São Paulo. Fui acender uma vela na porta do Einstein, no bairro do Morumbi. A Torcida Jovem, do Santos Futebol Clube, tinha organizado uma vigília para o Rei. Minha avó achou bom que eu fosse junto. "Dá um beijo nele", ela me disse. A gente achava que o Pelé pudesse voltar a ficar bom. Não deu.

Pelé no dia de sua chegada à Vila Belmiro, em Santos, em 8 de agosto de 1956 - José Dias Herrera/ Divulgação/Centro de Memória e Estatística/SantosFC - José Dias Herrera/ Divulgação/Centro de Memória e Estatística/SantosFC
Pelé no dia de sua chegada à Vila Belmiro, em Santos, em 8 de agosto de 1956
Imagem: José Dias Herrera/ Divulgação/Centro de Memória e Estatística/SantosFC

O rádio da vó Maria diz que o corpo dele vai descer para Santos na segunda-feira (2). Vai ser velado na Vila até terça de manhã. Aí saem em cortejo pela orla da praia e entram na rua da dona Celeste, antes de dar meia-volta e seguir para o cemitério, que é quase do lado do campo do Santos, mais perto do pé do morro. Vão passar pertinho aqui da casa da vó.

Enquanto o corpo do Pelé não chega, não tem muito o que fazer. Então a gente vai à Vila Belmiro para não fazer nada lá, todo mundo junto. Fomos eu e meu filho na quinta-feira em que ele morreu. Ficamos de pé, na chuva, um tempo. O pessoal da Torcida Jovem e da Sangue Jovem estava lá com dois ou três bandeirões muito bonitos, com desenhos do Rei. Ficamos à toa do lado das bilheterias que dão para a Rua Princesa Isabel. Quando a chuva apertou, passamos para baixo da marquise. O estádio estava um breu. Mais tarde vi na TV que era de propósito -- apagaram as luzes para realçar o efeito do telão que, do lado de dentro, mostrava a imagem de uma coroa alusiva ao Rei, mesmo que não tivesse ninguém para ver. Acho que estão ensaiando. Na rua, do lado de fora da Vila, demos entrevistas para emissoras de TV que enviaram plantonistas. Depois atravessamos a rua e, no bar do Alemão, detrás da estátua do capitão Zito, tomamos uma cerveja em homenagem ao Rei, comemos uma coxinha e cumprimentamos o velho Cosme, com quem eu tinha estado na vigília do Einstein, um mês atrás. O Cosme fundou a Jovem. Ele não me conhece, mas eu quis muito agradecê-lo por ter mobilizado a moçada quando Pelé estava internado em São Paulo. Foi bonito, aquilo.

Desde que o Pelé morreu, meu telefone apita. Alguns jornalistas de outros países nos quais morei e trabalhei como correspondente me pedem comentários sobre ele. O pessoal da France24, de Paris, estava intrigado com o fato de não haver uma mobilização popular massiva em Santos, dada a magnitude do fato. A apresentadora da Radio Cooperativa, de Santiago do Chile, a Paula Molina, achou curioso o comportamento provinciano dos santistas. Eles acham que tem pouca gente. Era eu, meu filho, o Cosme, o Alemão. Tinha mais umas pessoas por lá na quinta. O barbeiro Didi, famoso por cortar sempre o cabelo do Pelé, abriu na sexta. A barbearia dele fica de quina pra Vila, do lado do bar do Alemão (O pessoal de TV acha esquisito que o Alemão tenha um escudo do Santos tatuado entre os olhos, bem no meio da testa).

Pelé e Clodoaldo comemoram gol do Santos, em 1971 - Folhapress - Folhapress
Pelé e Clodoaldo comemoram gol do Santos, em 1971
Imagem: Folhapress

A morte aumentou um pouco o movimento na barbearia do Didi. Ele apareceu bastante na televisão. Mas, de resto, é isso: tem quase mais jornalistas que fãs do Rei na frente da Vila. Acho que, quando o corpo chegar, a coisa muda. Mas, por enquanto, não tem "magia".

O mundo não entende muito bem o time do Santos e os santistas. E a recíproca é verdadeira, com a diferença de que Santos e os santistas não ligam muito para o mundo. A gente, aqui em Santos, vê os moços falando na TV e no rádio sobre "magia", mas esses seres mitológicos andam no meio de nós. Na noite em que o Pelé morreu, minha mãe me mandou um zap. Disse que o Clodoaldo estava na padaria. Acho que o filho do Pepe estava junto. Essas pessoas todas, que jogaram com o Pelé, são gente como a gente aqui no Santos. Quantas vezes cruzei o Zito na frente da Vila vazia, em dia de semana. Meu melhor amigo estava me dizendo que o Mengálvio compra ração de gato não sei onde. O Manoel Maria treinou o Penha, meu amigo de infância, na base do Santos. O Edu jogava futebol de praia no fim de ano aqui na frente do Aquário. A gente topa Chulapa no calçadão ou na pizzaria.

A gente não se apercebe muito da "magia". Só sai na chuva com um par de havaianas e uma camisa do Santos e vai até a Vila porque o Pelé morreu. A gente fica ali, na frente das casinhas germinadas, papeando. As bolas chutadas contra o gol que dá para a Rua José de Alencar passavam por cima da arquibancada e caíam no quintal dessas casinhas, quando eu era mais garoto. Depois subiram um pouco mais a arquibancada, ali. A Vila está com capacidade para 16 mil pessoas, se não me engano. Num dia de jogo -- o Santos estreia contra o Mirassol no Paulista, dia 14, e eu já estou à espera do início da venda de ingressos --, se você grita da arquibancada, o juiz ouve no campo. Parece um tamanho de estádio bom o bastante para mim. Nenhum time visitante gosta de vir para cá. Dá para entender.

Acho que, quando o corpo do Pelé chegar aqui, deve vir muita gente importante para a Vila Belmiro. Aí talvez a coisa engrosse. Mas, por enquanto, a notícia honesta do plantão é que estamos por aqui. Só nós, mesmo. A gente segue ouvindo falar em "magia" no rádio da vó, sempre que volta para casa, tira o chinelo e enxuga o pé, depois de ver os amigos na Vila, depois de cruzar com todos esses seres lendários do futebol quando vamos na padaria, na pizzaria ou na praia. Agora perdemos um. O maior de todos.

Com o pessoal envelhecendo, não serão fáceis os anos por vir. Há toda uma geração indo embora aos poucos. Não sei quem vai sobrar para ligar o rádio e ouvir o povo da capital falando na "magia" que a gente bebe com café e pão de cara a cada manhã em Santos.

*

João Paulo Charleaux - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

João Paulo Charleaux é jornalista, santista e viúva do Pelé. Trabalhou para os veículos Folha de S.Paulo, Estadão, O Globo, Vice Brasil, Nexo e piauí. Foi correspondente internacional em Santiago (Chile) e Paris, além de enviado especial ao Haiti. É autor do livro 'Ser Estrangeiro. Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História' (Cia. das Letras).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL