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Fã 'cabula' trabalho e passa tarde tentando prestar última homenagem ao Rei

Rui Santos e filha, na frente do estádio da Vila Belmiro durante velório de Pelé - Luciana Bugni/UOL
Rui Santos e filha, na frente do estádio da Vila Belmiro durante velório de Pelé Imagem: Luciana Bugni/UOL

Luciana Bugni

Colaboração para o TAB, de Santos (SP)

02/01/2023 18h08

Em São Paulo, as ruas costumam ficar vazias no dia 2 de janeiro. Há uma migração da população para o litoral, onde acontecem as festas de virada do ano mais disputadas. O trajeto era quase deserto até a rodoviária do Jabaquara, localizada na capital, a mais próxima das estradas que levam à Baixada Santista.

No terminal de ônibus de segunda-feira (2), porém, o movimento era intenso. Além da quantidade de gente que chegava do Réveillon na manhã de segunda para voltar ao trabalho, era possível ver filas longas de gente que tentava sair de São Paulo para ir velório de Pelé. A cerimônia acontece desde 8h da manhã na Vila Belmiro, estádio do Santos Futebol Clube, e deve virar a madrugada de terça (3) até o funeral, previsto para as 10h.

Os fãs de Pelé se reconheciam pelo uniforme do clube. "Você vai só para o velório?", perguntavam. "Comprou a passagem de volta para que horas?".

A gestora de projetos Maria Luiza dos Santos, 34, decidiu viajar para fazer a última homenagem. "Comprei a volta para as 17h. Acho que vai dar tempo de pegar a fila, entrar lá e voltar. Estou emocionada só de pensar", contou, vestida com o uniforme do clube. Maria contou que não costuma descer a serra para ver os jogos do Santos sozinha, mas essa era uma ocasião especial. "Histórico", ela disse, antes de embarcar no ônibus.

No trajeto de descida pela Imigrantes, era possível ver o trânsito de turistas voltando a São Paulo. A rodoviária de Santos estava apinhada de gente tentando voltar para casa após as festas. Esse problema não alarmava, no entanto, quem ainda tinha um longo trajeto até a Vila Belmiro para prestar a última homenagem ao Rei. Uma coisa de cada vez.

Torcedor que desceu de São Paulo para Santos para ver o velório de Pelé na Vila Belmiro - Luciana Bugni/UOL - Luciana Bugni/UOL
Torcedor caminha pelas ruas de Santos, a caminho da Vila Belmiro, para prestar última homenagem a Pelé
Imagem: Luciana Bugni/UOL

Cabulou o trabalho

"É por ali que vai ao estádio?", me perguntou um homem na saída da rodoviária. Apontei o túnel e afirmei que estava indo para aqueles lados também. "Vou te seguir", ele decidiu, dizendo que a cidade é pequena e não é necessário pegar ônibus circular. Eu concordei. A distância é de menos de 2km até a porta da Vila Belmiro e o Google afirmava que é possível fazer o trajeto a pé em 27 minutos. Em dias de jogos importantes do Santos, é comum ver um volume grande de torcedores caminhando pelas ruas que separam o centro da cidade e o pacato bairro do Jabaquara (esse santista) das imediações da Vila Belmiro.

Dentro do túnel, caminhamos apressados. Faz 29°C na cidade, mas a sensação térmica, sem vento, é de 35°C. Me apresento como jornalista e pergunto se posso entrevistá-lo. Ele recusa: "Sou corintiano, se você me colocar na matéria vão achar que sou santista."

Andamos mais algumas quadras e cruzamos torcedores do Santos que vêm na direção oposta com camisas e bandeiras. Pergunto se eles já haviam entrado no velório e me informam que chegaram por volta das 9h da manhã nos arredores do Canal 2, mas só conseguiram entrar na passarela montada no gramado por volta de meio-dia. Olho no relógio, são 12h45. "É rapidinho, vai lá, sim", uma torcedora me diz antes de seguir seu caminho.

Meu colega de caminhada se anima. Me conta que a mãe de Pelé está viva, apesar de ter mais de 100 anos. Diz que Pelé perdeu uma filha [refere-se à Sandra Regina, que teve câncer]. Afirma que os mais novos são os gêmeos e eles já têm 24 anos. Frisa outra vez que não é santista, é corintiano. Insisto que seria legal entrevistá-lo, tirar uma foto dele perto do estádio, mas ele fecha a cara outra vez e diz, ríspido: "O pessoal do trabalho não pode saber que eu vim", explica baixinho. Sorrio cúmplice: parece que alguém enforcou o trabalho para se despedir do Rei. Pergunto se ele já havia comprado a passagem de volta, mas ele diz que isso é um problema para depois. Pelé primeiro. Indico o caminho até a fila para entrar no gramado e nos despedimos.

Arquibancada lotada de jornalistas cobrindo o velório de Pelé na Vila Belmiro, e Santos - Luciana Bugni/UOL - Luciana Bugni/UOL
Arquibancada lotada de jornalistas cobrindo o velório de Pelé
Imagem: Luciana Bugni/UOL

Vende que nem água

Carros se aglomeram em volta do estádio com placas de Jundiaí, São Paulo, cidades do ABC. A grande maioria está vestida com a camisa do clube, mas não conhece os arredores da Vila. "Ninguém vai esperar! Porque o Pelé fez uma guerra acabar!", se ouvia como um canto de torcida na fila próxima à portaria principal. Todo mundo esperou, na verdade. Os fãs enfrentavam pelo menos 2 horas embaixo de um sol muito forte. No ambulatório, dentro do estádio, eram atendidas pessoas que desmaiavam por desidratação. Em comércios nas redondezas, garrafas de 1,5 litro custavam R$ 5. "Já repus o estoque duas vezes, não paro de vender", me disse uma vendedora.

Do lado de fora, o consultor de seguros Rui Santos, 66, contou que havia saído de São Bernardo do Campo às 13h e esperava a vez de entrar, por volta das 15h20. "Já vi o Pelé aqui, no Morumbi, no Pacaembu. Vim prestar a última homenagem. Fico triste pelo astro, mas feliz pelo reconhecimento que estou vendo no mundo inteiro. Outros times têm ídolos, nós temos a história", disse ele, antes de completar que está preocupado com o trânsito da volta. O Waze diz que o trajeto pode levar duas horas a mais do que o normal.

Às 15h30, já haviam entrado 9 mil pessoas para homenagear o ídolo. O credenciamento de imprensa ultrapassava mil jornalistas de 22 países — a equipe de comunicação do Santos estimava receber mais de 2.000 profissionais. Na lateral do campo, diversas coroas de flores cobriam as cadeiras brancas. Nas cadeiras cativas do clube, onde ficava quem trabalhava na cobertura, era possível ouvir diversos idiomas. Alguns deles afirmavam ter vindo direto de Brasília, onde aconteceu a posse do presidente Lula, no domingo (1º).

O sol era uma reclamação constante — pouquíssimas nuvens no céu davam breves momentos de sombra. Nada intimidou os fãs, que seguiam esperando para caminhar por menos de dois minutos ao lado do caixão do Rei. Seguranças berravam ordens: "Sem parar para fazer vídeo! Circulando". Um momento histórico, sem dúvida, mas tamanha aglomeração cortava a emoção do momento.

De saída, a duas quadras da entrada principal, encontro meu amigo que fugiu do trabalho. "Deu certo?", pergunto. "Deu, deu. Obrigado pela ajuda", ele responde, afastando-se. É hora de encarar a segunda fase do "projeto despedida" do Pelé, comprar uma passagem e voltar para casa, antes que a jornalista insistente entregue a fuga para o chefe dele. Ou escreva alguma coisa dizendo que ele não torce para o Corinthians. Melhor evitar.

Torcedor com criança na costas, nos arredores da Vila Belmiro, durante velório de Pelé - Luciana Bugni/UOL - Luciana Bugni/UOL
Imagem: Luciana Bugni/UOL