Topo

'Vivo como se fosse um cachorro': por dentro de uma festa de 'pet play'

May e o Sr. Castilho, casal que pratica o pet play, na Dominatrix, em São Paulo - André Nery/UOL
May e o Sr. Castilho, casal que pratica o pet play, na Dominatrix, em São Paulo Imagem: André Nery/UOL

Paola Churchill

Colaboração para o TAB, de São Paulo

06/01/2023 04h00

Na última sexta-feira de dezembro, Lino Camara, 27, pulava e brincava em volta de seu dono, Chronos, querendo atenção. Com toda a paciência do mundo, o tutor pedia calma para seu bichinho de estimação, enquanto preparava os brinquedos para a diversão favorita deles: shibari.

"Pronto?", exclamou ele, mostrando as cordas. Lino não tinha um rabo para se abanar, mas colocou seu brinquedo preferido na boca, um ursinho rosa com um mordedor na ponta. O cão falou com alegria: "vamos, vamos!".

Os dois chegaram à estrutura de madeira própria para a prática do shibari, que "requer paciência e intimidade", explicou Chronos ao TAB, enquanto amarrava Lino pelas costas e peito.

A confiança era perceptível. Lino se mantinha quieto e obediente, quase em transe, de olhos fechados, deixando guiar-se pelo dono, que ficava de joelhos para prender bem a corda entre as coxas e pernas dele.

O cabelo loiro de Lino ganhava tons verdes fluorescentes com a luz. Seu sorriso travesso era o oposto da feição de Chronos, um homem barbudo, de cabelos compridos amarrados.

O casal Lino e o Chronos na Dominatrix, em São Paulo - André Nery/UOL - André Nery/UOL
O casal Lino e o Chronos na Dominatrix, em São Paulo
Imagem: André Nery/UOL

A cena, que se passou no salão do bar Dominatrix, na rua Augusta, no centro de São Paulo, só foi interrompida pela chegada de outras duas cachorras: May Castilho, a Caramelo, e Gi, que chegam rosnando e disputando para ver quem fica com o ossinho verde brilhante.

Todos os envolvidos são seres humanos adeptos do "pet play", uma forma de encenação onde pelo menos um dos participantes desempenha um papel com características animais, como gatos, cachorros, cavalos e até raposas.

A encenação pode durar horas, dias ou até a pessoa passar a viver dessa maneira em sociedade, na dinâmica conhecida como 24/7. O "pet" copia os comportamentos do animal com que mais se identifica, enquanto o dono ensina truques, elogia, dá recompensas ou pune erros.

Anna Steel, a Au Au, via a cena de longe com fascínio e curiosidade, com as orelhas em pé. Ela mexia na coleira rosa com o nome do seu dono, Lord Steel, 56, enquanto conversava com o pessoal do bar que viera até sua loja e de seu marido. A loja funciona dentro do bar.

Apesar da curiosidade, ela não entra na brincadeira com os outros colegas. "Não gosto de brincar assim em lugares públicos. Gosto mais quando é em casa, com outros pets em festas com quem eu já conheço", acrescentou, explicando o motivo: "Cachorro consegue ser ele mesmo na própria casa. Lá tem meus brinquedos, minhas coisas, fica tudo mais fácil".

Amigável, Anne conversava com cada pessoa como se fosse uma velha amiga. Se ganhava mais um pouco de intimidade, pedia carinho e até mordia a mão como forma de brincadeira.

Casada há 15 anos com Lord Steel, Au Au sempre foi adepta do BDSM, e descobriu o pet play no meio do caminho. Eles vivem na dinâmica 24/7, ou seja, nunca saem do papel de dominador e submissa. "Tudo é feito conscientemente. Tenho regras que preciso seguir, e só ele manda em mim. Alguém pode tentar, mas eu não vou obedecer", acrescentou.

Performance no shibari na Dominatrix, em São Paulo, na noite do Pet Play - André Nery/UOL - André Nery/UOL
Shibari na noite do Pet Play
Imagem: André Nery/UOL

Rotina de adestramento

A festa "Pet Play" acontece todo mês. Nela os pets correm pelo salão, brincam com os amigos, disputam brinquedos e ossinhos. Cabe aos donos ficar de olho para ver se eles se comportam direito. Naquela noite, cerca de 50 pessoas se reuniu no bar para o evento — 20 deles eram casais que fazem pet play.

No bar é proibido fazer sexo, mas a pegação era intensa entre alguns casais e grupos. Curiosamente, apesar do ser uma festa para quem curte, pet play, a maioria dos pets e donos presentes não curte fazer sexo em público quando estão em sua "forma animalesca", digamos assim. May explicava que existem pets e donos que gostam, mas a maioria, não.

Tem hora que sai briga, claro. O dono da Caramelo, Sr. Castilho, curtia a festa com o olhar atento para ver se ela não se metia em nenhuma encrenca com os outros animais, ou até com os humanos lá presentes.

(Sim, são todos humanos.)

Ane Flowers (à esq.) e Gi, na Dominatrix, em São Paulo - André Nery/UOL - André Nery/UOL
Ane Flowers (à esq.) e Gi, na Dominatrix, em São Paulo
Imagem: André Nery/UOL

Os dois são adeptos do pet play há dois anos, quando, durante uma sessão de BDSM, ele soltou um comando para May e ambos perceberam que gostaram da dinâmica. Foi aí que começou o adestramento.

O casal passou três meses assistindo a vídeos de treinamentos de cachorros (Canis lupus familiaris) na internet para que May aprendesse a se comportar. Eles usam apetrechos como coleiras, correntes, mordaças e chicotes.

"Quando estou jogando, vivo como se fosse um cachorro mesmo. Ando como um, durmo como um, brinco como um", acrescenta Caramelo. Como toda boa vira-lata, a Caramelo segue suas próprias regras e instintos. "Ela precisa de treinamento até hoje. Às vezes, não me escuta. E eu não posso ser fofo, aí que ela não obedece mesmo", acrescentou Sr. Castilho.

De quatro, enquanto saltitava pelo bar, latindo e brincando com os outros cachorros, ela ficou fascinada com o ursinho rosa de Lino e começou a disputar pelo brinquedinho. Mais acanhado, ele se assustou e correu para Chronos atrás de proteção. Em questão de segundos, Sr. Castilho ouviu os latidos e apartou a briga. "Caramelo, para! Você está assustando o amiguinho. Como você vai brincar assim?", exclamou.

Soltando os cachorros

Lá pela uma da manhã, começou a parte preferida deles da festa, quando todos os pets se reúnem no palco para brincar juntos. No palco pequeno, os adestradores ficavam do lado direito, enquanto os bichos se divertiam.

Enquanto Caramelo e a raposa Ane Flowers, 25, foram as mais travessas, Gi e Lino ficaram mais no canto, intrigados com a brincadeira agressiva das duas.

"Quando a gente está no palco a gente esquece do mundo e se deixa levar pelos instintos. Já chegou até o nariz da Ane sangrar uma vez. Espero que isso não aconteça hoje. Mas, se acontecer, é normal quando se lida com cachorros", brincou May.

Cheiraram-se antes de começar a brincar. Os latidos das duas tomavam conta do ambiente — antes dominado por uma trilha sonora com hits de pista dos anos 1980 e 1990. Os comentários da plateia se dividiam entre pessoas achando fascinante a cena e outros, novos aventureiros do BDSM, sem entender muito bem o que estava acontecendo.

"A gente explica e tudo o mais, mas até mesmo nas festas vem uma galera de fora que, às vezes, pode fazer uma brincadeira errada, sabe?", explica o Sr. Castilho. Caramelo, ouvindo a explicação do dono, acrescentou, falando como humana: "Se escuto algo assim, vou lá e dou uma mordida na canela da pessoa e está tudo certo".

Entre cheiros, lambidas na barriga e disputas pelos brinquedos, a brincadeira foi chegando ao fim quando os donos começaram a ajudar os pets a voltar a si. Eles vão falando e acalmando cada um deles para saírem da persona.

Lino foi um dos primeiros a voltar e agradeceu ao dono pela ajuda, enquanto recebia carinho de Chronos. "Vou ser honesto: nunca saio do pet", disse baixinho. Quando o adestrador ouviu, deu uma meia risada e brincou: "Na real, ele faz human play".