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Carnaval aquece o Saara, tradicional ponto de comércio popular no Rio

A sigla para a "Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega" dá ideia do calor humano e do aquecimento das vendas esta semana - Bruna Prado/UOL
A sigla para a 'Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega' dá ideia do calor humano e do aquecimento das vendas esta semana Imagem: Bruna Prado/UOL

Yuri Eiras

Colaboração para o TAB, do Rio

17/02/2023 04h01

Em capítulo dedicado aos cordões carnavalescos no livro "A Alma Encantadora das Ruas", publicado pela primeira vez em 1908, João do Rio chama de "pandemônio" o movimento dos foliões que tomavam as ruas do Centro da cidade para brincar. "Era provável", escreve, que do Largo de São Francisco à Rua Direita "gritassem cinquenta mil pessoas".

A cidade onde João do Rio viveu transformou-se em outra, com morros demolidos, famílias removidas e cursos d'água aterrados. O Carnaval das ruas, entretanto, permaneceu na cidade velha, ainda mais pujante. A região do Largo de São Francisco, onde o cronista sentiu a multidão "apertar-se, sufocada", não é apenas um ponto de encontro de blocos, mas o centro nervoso das compras de Carnaval.

Ali fica o Saara (Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega), santuário do comércio popular carioca, que voltou a ferver de gente e calor ao longo de fevereiro, depois de dois anos sem festa por conta da pandemia — em 2022, os blocos foram oficialmente cancelados e as escolas de samba desfilaram em abril.

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'A pessoa não vem ao Saara comprar uma roupa, mas dar um passeio', diz diretor da associação de lojistas
Imagem: Bruna Prado/UOL

Clientela fiel

Na era do e-commerce, da Shein, do glitter e do body, palavras jamais datilografadas por João do Rio, as lojas de fantasias da Rua da Alfândega sobrevivem pela fidelidade dos clientes, que fazem das compras parte da própria folia.

"A pessoa não vem ao Saara só comprar um brinco, um arco, uma roupa. Ela vem dar um passeio", afirma Carlos Ghazi, 61, diretor financeiro do Polo Centro Rio-Saara, associação de lojistas da região.

"O carnaval incrementa da venda do quibe no balcão da lanchonete ao prato no salão do restaurante. Ainda tem os cruzeiros, que param aos montes no porto. Um dos pontos de visitação é o centro popular", diz. Ghazi estima que há 600 CNPJs ativos no Saara, entre lojas, sobrados e salas comerciais. Com os comércios não-regularizados e sazonais, o número passa de mil.

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Rua que ganhou nome após a instalação da Alfândega virou área estratégica na urbanização da cidade
Imagem: Bruna Prado/UOL

Área estratégica

A vocação comercial da região vem de longe, precisamente do século 17, quando a Rua da Alfândega ainda se chamava Caminho de Capoeiruçu. A rua levava à rota que ia em direção a Minas Gerais.

"Isso favorecia a circulação de pessoas e de mercadorias", afirma a doutora em História Natally Menini, professora da Universidade Estácio de Sá. Na época, uma das pontas da Rua da Alfândega era à beira da Baía de Guanabara.

"O caminho foi recebendo outros nomes até chegar no século 18, quando o território foi nomeado Rua da Alfândega, devido à instalação da repartição da Alfândega na praia. Essa rua virou uma área estratégica para o projeto de expansão e de urbanização da cidade", explica.

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A gerente da Suad Roupas, Sophie Churi: 'O diferencial daqui é vender a fantasia completa'
Imagem: Bruna Prado/UOL

Fantasias raiz

A Suad Roupas, inaugurada em 1958, não comercializa purpurinas, glitters, arcos, tintas faciais. Desde que abriu as portas na Rua da Alfândega, a loja da família Churi é especializada em fantasias, e apenas nisto. Gregos, romanos, egípcios, piratas, padres, freiras e caveiras colorem manequins e araras da loja.

"O diferencial daqui é vender a fantasia completa. Saias, croppeds encontram-se em qualquer lugar", gaba-se a gerente Sophie Churi, 36. "O Saara tem muita tradição. Temos até Instagram, mas as pessoas ainda vêm na loja para experimentar a roupa, provar se cabe. Outros vêm para ter ideia de fantasia original."

Como no caso de Ghazi, a loja de Sophie é herança de família — ela representa a terceira geração. A primeira foi o avô. Seus antecessores viveram crises econômicas nacionais e ciclos de violência que esvaziaram o carnaval de rua do Rio. Mas nenhum deles atravessou uma pandemia à frente de um comércio, como ela. E, numa loja especializada em roupas para aglomerações, os últimos anos foram um terror.

"A nossa sorte foi que teve Carnaval em 2020, e a pandemia veio depois. Senão, estaríamos perdidos", reflete ela, que conseguiu manter o quadro de funcionários.

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Casa Turuna, fundada em 1915, sobreviveu à gripe espanhola e às Guerras, mas não à pandemia
Imagem: Bruna Prado/UOL

Caldeirão cultural

Nem todas as lojas ficaram de pé. Tradicional na venda de fantasias, tecidos, adereços e aviamentos, a Casa Turuna, fundada em 1915, sobreviveu à gripe espanhola e às duas Grandes Guerras, mas não à pandemia. Encerrou suas atividades em 2020: abriu-se no mesmo espaço uma loja de tapetes e redes.

A Casa Turuna tinha proprietários portugueses. Outras, têm famílias sírias e libanesas. Mais recentemente, o Saara viveu o boom da abertura de lojas de acessórios eletrônicos comandadas por chineses e coreanos. O caldeirão cultural foi o que deu - e ainda dá - vigor à região.

"A Rua da Alfândega mantém uma tradição de comércio popular associada a uma tradição de concentração de imigrantes de origem semita (árabe e judeu, libanês e sírio), que chegaram ao Rio entre fins do século 19 e início do século passado", afirma Natally Menini.

A historiadora ressalta ainda a participação ativa dos ciganos na verve do comércio popular atual. A venda de fantasias, acessórios e roupas coloridas tem um quê de tradição cigana, comunidade por vezes esquecida na historiografia oficial carioca. "As famílias ciganas conceberam a região central como favorável para o comércio de artesanato de cobre, atividades artísticas e circenses e colaboraram para a introdução de novos hábitos culturais, mercadorias e formas de comercializar onde hoje é o Saara", diz a professora.

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Para as amigas Katharine Hespanhol e Marcela Pereira, comprar lá 'tem um pouco de ritual'
Imagem: Bruna Prado/UOL

'Tudo para a última hora'

As amigas Katharine Hespanhol, 27, e Marcela Pereira, 31, saíram de uma loja de artigos de festa na Rua Alfândega observando outros produtos — purpurinas, pochetes, saias e meias arrastão em cores neon. Era como se faltasse algo mais para completar a fantasia. Dentro de uma sacola, levavam dois arcos com desenhos de pele de onça, a estampa da moda no último ano, embalada pelo remake da novela Pantanal.

A dupla de amigas não trabalha no Centro do Rio, mas preferiu ir ao Saara porque as compras por lá "têm um pouco de ritual". E praticidade, também. "É parte de uma tradição nossa porque no e-commerce a gente não sabe quando vai chegar, se vai chegar. Compramos uns shorts pela internet, por exemplo, e não sabemos se vai chegar a tempo para o Carnaval", diz Katharine.

Ela e a amiga, que costumam se fantasiar dos pés à cabeça, desta vez não conseguiram se organizar com antecedência. "Estávamos meio desanimadas, deixamos tudo para a última hora e vamos com acessórios, mesmo", admite Marcela.

Kessya Rocha, 25, é gerente na Lili Rock, loja especializada em camisetas e acessórios com motivos de animes e bandas de rock. No carnaval, fantasias e máscaras — em tons mais escuros por lá — tentam atrair a clientela. Monstros, caveiras e até uma espécie de Wandinha estão disponíveis aos rockeiros foliões. "A venda ainda está tentando retomar o ritmo normal. No período pré-pandemia, não dava tempo sequer de almoçar direito. Mas, só de ter bloco este ano já aumentou o movimento. É o Carnaval que dá retorno", ensina Kessya.