Carnaval mais secreto e tradicional de SP: como é o desfile da 7ª divisão
Do porta-malas de um Gol saem figurinos que são despejados na calçada logo ao lado. Cerca de 40 pessoas vão pegando do chão e vestindo as roupas de duas alas da escola de samba Imperial da Vila Penteado. "Essa bermuda está tão apertada que parece tapa-sexo. Me dá outra", brinca uma das integrantes.
É uma cena típica da sétima e última divisão do Carnaval paulistano, oficialmente chamada de "Grupo de Acesso de Bairros 3". Apesar da agremiação ser da zona norte da cidade, o chefe de ala veio da Vila Madalena com as indumentárias, e as pessoas que se aprontavam moram na vizinhança do local do desfile, na avenida Eliseu de Almeida, no Butantã (zona oeste). A solidariedade ajuda a driblar os poucos recursos.
Esse é o Carnaval mais tradicional, mas também o mais escondido da capital paulista. Não passa na TV, não ganha destaque na internet, está longe do Sambódromo e das áreas centrais e seus "bloquinhos". A Uesp (União das Escolas de Samba Paulistanas), a entidade mais antiga do Carnaval da cidade (fundada em 1973), é quem organiza da quarta à sétima divisão da competição e mantém os critérios originais de julgamento da folia.
Nesses "grupos inferiores" estão também escolas de samba dos primórdios, como a Lavapés, a primeira a ser fundada (1937) e continuar em atividade. Com uma coleção de 20 títulos até 1968 (ano em que a prefeitura paulistana oficializou o evento), a Lavapés Pirata Negro está no "Acesso 1 de Bairros", o que seria a quinta divisão.
Família toda na avenida
Com toda a justiça, Nena Dias, 78, ostenta a faixa de embaixatriz do Carnaval. Afinal, há 60 anos ela desfila e já representou tantas escolas que algumas nem existem mais, como a Foguetões da Saúde e a Estrela de Prata, da Água Funda.
"Comigo na avenida, hoje sambaram oito bisnetos. Só o tataraneto não foi porque ainda é de colo." A família Dias, base da escola Brinco da Marquesa (agremiação da terceira divisão paulistana, sediada na Vila Brasilina, na zona sul), reforçou em 2023 a co-irmã Iracema Meu Grande Amor, da zona norte. "Essa escola estava muito caidinha. Minha família chegou para dar uma levantada nela."
Eram tantos Dias que o desfile já ia começar e ainda chegavam alguns para ser apresentados. Em todas as alas tinha algum, da comissão de frente, passando pela diretoria, até o recuo da bateria. "Tenho 185 sobrinhos, e quase todos estão aqui", disparou Marisa Dias, 70, passista com roupas que lembravam a África. "O bom daqui é que dá pra tomar uma cerveja, conversar. Não tem nem a pressão nem o luxo do Sambódromo." Como é a última divisão, não há rebaixamento. Abaixo, só há o torneio oficial de blocos da Uesp, que tem duas divisões (especial e acesso).
Outra integrante do clã Dias por ali era Rita de Cássia, 59. "Qual é o enredo mesmo, gente?", perguntou ao descer do ônibus que a trouxe para a avenida. Mas ela lembra bem de todos os locais onde desfilou, as seis escolas que já representou desde os 14 anos de idade. "Sou da época em que o desfile era na avenida São João, depois mudou para a avenida Tiradentes. Até na Tancredo Neves e na pista de Interlagos eu já sambei", recorda.
A UTI do Carnaval
Com 49 escolas e 16 blocos filiados atualmente, a Uesp comandou todo o Carnaval paulistano de 1973 a 1986, ano que começou com um quiproquó gerado pela escolha do maestro Júlio Medaglia como responsável pelos jurados e que terminou com a cisão das principais escolas, formando a LigaSP (Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo), que tem 34 membros hoje em dia.
"Aqui é a UTI do Carnaval. As escolas vêm para se recuperar e brilhar de novo. Tem que ter muito amor à escola, porque ficam bem longe da telinha da Globo", define o presidente da Uesp, Alexandre Magno, o Nenê.
Histórias de superação não faltam. A Acadêmicos do Tatuapé saiu das divisões de baixo para se sagrar bicampeã no Sambódromo, com as vitórias de 2017 e 2018. Já a Estrela do Terceiro Milênio, com sede no Grajaú (zona sul), foi fundada em 1998, saiu da sétima divisão e hoje desfila na primeira.
A Uesp se autointitula "a matriz do samba" e mantém as regras originais de julgamento. Por exemplo, ela não exige breque da bateria. Seus critérios de desempate são a bateria e harmonia, enquanto a LigaSP estipulou um sorteio a cada ano para determinar o quesito que seria usado em caso de igualdade de pontos.
Em 2018, a Uesp teve novas baixas: 12 escolas de seu Grupo 1 foram incorporadas ao Acesso 2 da LigaSP, e a entidade deixou de se apresentar no Sambódromo — além do desfile no Butantã, seu outro local é a avenida Alvinópolis, na Penha (zona leste).
Reforço da vizinha
Deitada no asfalto da avenida Eliseu de Almeida, a chef de cozinha Karine Hamai esperava começar o desfile da Imperial da Vila Penteado. "Falaram para a gente ficar pronta às 17h, mas o desfile atrasou e só vai começar às 20h. Estou descansando para dar meu melhor."
Karine mora a dois quarteirões do desfile. Nos últimos três anos, levou sua cadeira de praia para curtir como espectadora. Dessa vez, estreou na avenida. "Tem muita gente feliz por aqui. Dá uma sensação boa na gente", definiu.
Um dos três carros alegóricos com destaques teve problemas, com a asa de um pégasus tombando — um integrante sambou o tempo todo escorando a alegoria com a mão.
A escola seguinte, a Unidos do Jardim Primavera, teve mais problemas: se apresentou sem muitas alegorias e fantasias. Um dos puxadores já lamentou no grito inicial: "Foi difícil demais, mas estamos aqui mais uma vez". Locomotiva Piritubana, Cabeções da Vila Prudente, Unidos do Jaçanã e Acadêmicos do Butantã foram outros destaques da última divisão, com 14 escolas na disputa de 2023.
Alegorias e mistérios
O vereador Thammy Miranda foi a celebridade no camarote da prefeitura no desfile do Butantã. Discursou, tirou foto com passistas e dirigentes. O revelador é que o parlamentar municipal tem vencimentos maiores (entre salários e verbas de gabinete) que o próprio prêmio da sétima divisão carnavalesca, que paga R$ 18 mil, segundo o presidente da Uesp.
A verba vai subindo: R$ 37 mil na sexta, R$ 92 mil na quinta e R$ 137 mil na quarta divisão. A diferença com a elite local do Carnaval está por todos os lugares. Os carros alegóricos têm, no máximo, seis metros de altura — contra até 15 metros do Sambódromo. A pista do desfile soma 300 metros, contra os 530 metros da construção assinada por Oscar Niemeyer.
Enquanto os jurados na passarela do samba ficam em torres de 12 metros de altura, os juízes dos grupos inferiores permanecem em tendas erguidas a três metros do chão. Já os espectadores se divertem atrás dos cavaletes — nada de arquibancadas por ali. Um morro que leva um hipermercado vizinho daria uma visão mais panorâmica, se não fossem as árvores do entorno. Na concentração e dispersão das escolas é um breu, enquanto a iluminação da pista é garantida por refletores de LED alugados.
Uma curiosidade é que várias alegorias de outros Carnavais permaneceram nas praças do entorno, muito tempo depois da folia. Duas girafas de fibra se postaram atrás de uma árvore, e um macaco prateado adornava uma curva da ciclovia local, dando pistas para quem passa desapercebido pela avenida do Butantã que ali acontece um Carnaval escondido.
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