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Em Maresias (SP), turistas sem internet só agora veem tamanho da tragédia

Turistas tentam sinal de internet na praia de Maresias (SP), que ficou incomunicável por dois dias, desde o temporal de sábado (18) - Tatiana Schibuola/UOL
Turistas tentam sinal de internet na praia de Maresias (SP), que ficou incomunicável por dois dias, desde o temporal de sábado (18)
Imagem: Tatiana Schibuola/UOL

Do TAB, de Maresias (SP)

21/02/2023 09h22

A internet acaba de voltar. O WhatsApp apita, acusando múltiplas mensagens — "Tá tudo bem?", é a mensagem que se repete.

Em Maresias, litoral norte de São Paulo, a conexão de telefones e internet ficou totalmente bloqueada desde a madrugada de 19 de fevereiro até a noite do dia 20, quando o maior volume de chuva da história do Brasil afogou o Carnaval de milhares de paulistas, especialmente os da costa sul de São Sebastião.

Por aqui, o pior foram os alagamentos. Do lado direito da Rodovia Rio-Santos (para quem dirige em direção a Bertioga), a várzea encharcou. Poças enormes bloquearam ruas de terra no "sertão"; nos condomínios de luxo do canto direito da praia, carros foram cobertos pela água. Usando roupa e botinhas de surfe, um proprietário conseguiu manobrar sua BMW modelo X1, com água na altura da porta, para uma área mais alta. "Quase que o motor não pegou." Para saírem de casa e chegarem à estrada, foi preciso remar com uma prancha de stand-up paddle.

Mas foi a falta de conexão que desnorteou os moradores e turistas da praia. Sem notícias ou comunicação com amigos e familiares, um estranho fenômeno passou a se desenrolar. Já na manhã do domingo (19), ao pisar na praia, ondas barrentas de mais de dois metros de altura quebravam e encobriam a pequena faixa de areia, tomada por galhos e troncos. Mas o que chamou a atenção foi um pequeno grupo concentrado logo à frente da última entrada da praia, todos de celular na mão. "Aqui tá pegando."

Naquela manhã, os celulares mal carregavam o 3G. Consegui me conectar via ligação de voz, por WhatsApp, com meu filho que voltava de uma viagem internacional. Se andasse mais um pouquinho à direita ou à esquerda, o sinal desaparecia.

Situação da praia de Maresias (SP), após o temporal de sábado (18) - Tatiana Schibuola/UOL - Tatiana Schibuola/UOL
Situação da praia, após o temporal de sábado (18)
Imagem: Tatiana Schibuola/UOL

Mais à tarde, o grupo cresceu. Uma legião de pessoas andava pra lá e pra cá de olho na tela do celular. Estendiam os braços para o alto, pra ver se pegava o sinal. Alguns poucos sortudos conseguiam, outros, não. Só a voz funcionava. Foto, vídeo, notícia — nada carregava.

Na estrada, ambos os lados da praia tinham bloqueado o acesso à serra — de um lado, em direção a Boiçucanga; do outro, em direção a Paúba, Santiago e Toque-Toque, onde um enorme deslizamento detonou a estrada onde há uma cachoeira.

À noite, o fenômeno se repetiu, agora em diversos pontos da praia, as luzes das telas dos celulares concentradas em grandes grupos, uma aglomeração só antes vista em noites de Réveillon. Os celulares Vivo pareciam responder melhor que os celulares Claro. (A teoria era de que ali captávamos o sinal que vinha das torres de transmissão de Ilhabela, a quase 40 km.) Àquela altura, todos sabiam que o pior tinha acontecido. Mas as informações chegavam desencontradas. Estradas bloqueadas, deslizamentos de terra e mortes.

Turistas procuram sinal de celular em Maresias - Tatiana Schibuola - Tatiana Schibuola
Em Maresias, turistas e moradores disputam a conexão de telefone e internet na faixa de areia
Imagem: Tatiana Schibuola

Na manhã de segunda-feira (20), a abstinência de comunicação continuava a angustiar os turistas. (Não conseguia nem assistir à tevê — há cerca de um ano, troquei a tevê a cabo por outra, do modelo box, que só funciona conectada à internet. Na guarita de segurança do condomínio espiei, na televisão ligada, o discurso de Lula a alguns quilômetros dali, em São Sebastião.)

Apesar de a chuva ter cessado, na praia não havia guarda-sóis, barracas, cadeiras de praia, biquínis — cenário normal num dia nublado e calorento como esses.

O que se via era muita gente vestida, zanzando, celular em punho, olhos nas telas. Uma cena meio apocalíptica, para dizer o mínimo. E eu fazia parte dela. Consegui uma ligação com meu filho — por acaso, recebi uma ligação de um corretor de imóveis no ponto certo de conexão. Desliguei sem explicar e logo disquei para saber se o garoto havia chegado bem. Tudo certo. Logo a seguir, tentei localizar meus pais, sem sucesso: a ligação não completava. Houve quem arriscasse subir o morro em direção aos deslizamentos, para testar a conexão em pontos mais altos. Em meio às escavadeiras, ignoravam as orientações dos funcionários para que ficassem longe do barranco.

Na Serra entre Boiçucanga e Maresias, pessoas buscam sinal de celular - Tatiana Schibuola, do UOL - Tatiana Schibuola, do UOL
Na Serra entre Maresias e Boiçucanga, pessoas desafiam a segurança e testam a conexão próximo aos deslizamentos
Imagem: Tatiana Schibuola, do UOL

Aqui e ali, a conversa era sempre a mesma: "pai, que bom falar com você". "Mãe, tá tudo bem." Helicópteros cruzavam o céu sem parar. De volta à faixa de areia, houve quem cogitasse rachar um para voltar a São Paulo: cerca de R$ 4.000 por passageiro. Um ou outro sorveteiro tentava faturar em meio à multidão dos sem-internet, mas se deparava com outro problema: quase ninguém mais faz pagamentos em dinheiro. Pix? Impossível. E as maquininhas também estavam sem conexão.

No meio do dia, sem notícias sobre a liberação das estradas, decidimos arriscar ir ao supermercado, para garantir o abastecimento de água — no condomínio, estávamos pelo que restava na caixa de água, o fornecimento da Sabesp interrompido. (No contrafluxo da Rio-Santos, caminhões do exército levavam homens aos locais dos deslizamentos.)

Esperávamos um cenário de caos, mas não foi o que encontramos: os caixas só aceitavam pagamento em dinheiro e o mercado Bom Gosto não tinha tanta gente. As prateleiras se mantinham abastecidas. Pelos corredores, os compradores faziam conta pra ver se o dinheiro ia dar. Por sorte, meu marido carregava dinheiro consigo. Há tempos não sei o que é sacar moeda em espécie no caixa eletrônico. Faço praticamente todos os meus pagamentos com a carteira do celular.

No "centrinho", o Cristal, um dos principais mercados do bairro, permanecia fechado; o maior e melhor restaurante da praia, Badauê, em que é quase impossível encontrar mesas sem antes enfrentar longas filas de espera, tinha a porta semicerrada. Até a segunda-feira, o proprietário disse que estava difícil funcionar sem o sistema.

Dentro de casa, adolescentes ressucitavam jogos de tabuleiro e de cartas. Os celulares continuavam sempre a postos, vai que?

E então, quase às 21h da segunda-feira, a internet voltou. Com ela, alguma sensação de controle: podemos agora monitorar o trânsito, acessar documentos nos apps do RG e da CNH, falar com parentes e amigos, comprar mantimentos.

Com internet, também se teve acesso à dimensão da tragédia que se abateu sobre a cidade de São Sebastião. E a tristeza deu vontade de mutar novamente os aparelhos.

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