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'Maneiro é o xexelento': sociólogo viraliza com fotos de botecos no Rio

Eduardo Freitas, sociólogo que fez um estudo "ébrio-etnográfico" sobre os botequins de Copacabana - Zô Guimarães/UOL
Eduardo Freitas, sociólogo que fez um estudo 'ébrio-etnográfico' sobre os botequins de Copacabana
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Do TAB, no Rio

09/04/2023 04h00

"Não há nada de objetivo no butiquim", diz o servidor público Eduardo Freitas, 41. Ele insiste na grafia "butiquim", versão oralizada, da palavra botequim. Para Eduardo, não é a temperatura da cerveja ou o sabor do petisco que explica o sucesso de um estabelecimento como esse. O mais importante, explica ele, são os laços afetivos, a sensação de pertencimento e "uma série de variáveis subjetivas".

"O butiquim tem que ser acolhido pela população. Mesmo se você colocar o litrão de cerveja a R$ 5 num bar em Ipanema, pode ter certeza que a galera do boteco não vai", afirma Eduardo, que traça uma distinção clara entre "bar" e "butiquim". Os bares, argumenta ele, são os espaços gourmetizados, da paquera, do cardápio descolado e da luz boa para fotos. Os "butiquins" são territórios de classe, refúgios onde os trabalhadores "organizam a vida" e formam uma rede de sociabilidade. "Eu não tenho problema em ir a bares, mas são coisas diferentes. Para mim, maneiro mesmo é o xexelento."

Com o objetivo de captar a alma desses ambientes populares, Eduardo começou a fotografá-los com mais frequência em 2015. Nas redes sociais, com o codinome "Preá" (apelido que ganhou na infância por causa dos dentes separados), ele encontrou uma microbolha de pessoas que também gostam dos botecos mais pé-sujo e apreciam a estética universal dos botequins brasileiros.

As fotografias apresentam símbolos facilmente reconhecíveis: paredes decoradas com azulejo, balcões de vidro com petiscos expostos, cartelas de isqueiros coloridos presas na prateleira, garrafas de cachaça, os donos com pano de prato no ombro, a organização caótica do espaço etc. De certa forma, todos guardam alguma memória relacionada a ele, argumenta Eduardo, e as fotos ajudam a evocar essas lembranças. "Algumas pessoas comentam que na infância moravam perto de um boteco parecido, que compravam bala em um lugar como aquele, que o balcão lembra muito o 'butiquim' da rua do avô, coisas assim", diz ele, que tem mais de 8.000 seguidores no Instagram.

Para Eduardo, a estética do boteco "conversa com todo mundo" porque é o tipo de coisa que se encontra em qualquer lugar do país. "Às vezes o cara nunca veio a Copacabana, mora no interior de Jundiaí, mas reconhece lá um 'butiquim' que é igualzinho a esse aqui", exemplificou ele, sentado em um desses botecos com o copo cheio de cerveja e um caderninho de anotações. "Eu já tentei fazer alguns apontamentos para entender por que esses comércios tão distantes se parecem tanto. Acho que tem a ver com tradição popular. Onde existir um trabalhador, vai ter uma birosca."

Em 2022, Eduardo viralizou no Twitter com um levantamento "ébrio-etnográfico" dos bares de Copacabana, bairro onde mora com a companheira e o filho de 3 anos. Na época, visitou 75 botecos do bairro (um deles fechou durante a pandemia). Com o estudo, chegou a algumas conclusões. "Das 65 ruas do bairro, 33 têm ao menos um 'butiquim'. A chance de quem chega por aqui passar por uma alguma rua com birosca é maior que 50%!", escreveu ele.

O fio que criou recebeu mais de 37 mil likes. No texto, ele mostrou quais botecos são vizinhos, qual a rua com o maior número de botequins (a vencedora é a Barata Ribeiro, com 10) e algumas curiosidades: na rua Domingos Ferreira, todos têm nome que começa com a letra P. Na sua pesquisa de campo, Eduardo encontrou apenas 4 estabelecimentos em Copacabana que levam no nome a palavra "boteco", "botequim" ou qualquer variação do tipo: a maioria é precedida por "Café e Bar".

Eduardo Freitas no Lick's Bar - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
'Um butiquim não se faz, precisa ser feito e abraçado pelas pessoas', diz Eduardo, o fotógrafo dos 'butiquins'
Imagem: Zô Guimarães/UOL

O objetivo de Eduardo era fazer um registro histórico da existência dos botecos, caso algum deles fechasse as portas por causa da pandemia - o que aconteceu com vários na cidade do Rio. "Tem um cara que, sozinho, é dono de 9 botecos aqui. Quando ele morrer, o que vai acontecer?", questiona o sociólogo, que teme pelo futuro das biroscas. Ele acredita que a relação afetiva com os espaços, que seus seguidores demonstram em comentários nas redes sociais, é uma marca geracional que tende a enfraquecer com o tempo. "As crianças não compram mais bala no 'butiquim'. Hoje em dia tem, sei lá, Americanas Express."

A situação é ainda mais complicada pela dificuldade em abrir um boteco — assunto que, para ele, renderia uma discussão de horas. "Um 'butiquim' não se faz, precisa ser feito e abraçado pelas pessoas", diz. Como ele próprio escreveu na famosa thread, não é preciso muito para se vender cerveja e meia dúzia de petiscos - mas é preciso muita coisa para ser um "butiquim". Para Eduardo, sociólogo de formação, esses ambientes são mais que pontos de venda: são uma complexa rede de relacionamentos, essencial para a dinâmica das cidades.

Pelos seus cálculos, ele já visitou mais de 500 botecos pelo país, mas não consegue eleger um favorito. Tudo depende da ocasião, explica ele. Alguns têm a cadeira mais confortável, outros têm o som melhor ou a sombra mais bonita. "Depende do que eu estou querendo em cada dia."

Natural de Volta Redonda, interior do Rio, ele conta que a relação afetiva com os botecos começou na faculdade, no início dos anos 2000. "Nunca gostei de sair com a galerinha pra noitada, preferia curtir minha onda com os velhos na birosca", diz. Desde então, os botecos passaram a fazer parte de sua vida. Foi a um desses que ele recorreu quando descobriu a gravidez da companheira, em 2019, e até hoje procura os balcões quando quer refletir sobre o futuro.

Sociólogo de formação, Eduardo sempre leva consigo um caderno de anotações - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Eduardo Freitas, sociólogo que faz um estudo 'ébrio-etnográfico' sobe os botequins de Copacabana
Imagem: Zô Guimarães/UOL

"Eu gosto dessa coisa do butiquim da solidão, para sentar e pensar no que eu vou fazer da minha vida. É um espaço que alivia muita gente", conta. Eduardo gosta de frequentar os botecos sozinho. Entra mudo e sai calado. As fotos surgem como consequência da rotina nas biroscas. Como não tem carro, encontra novos botecos caminhando pela cidade. "Eu passo, olho e paro. Acho que a cidade se revela para mim dessa forma." Ele também costuma receber sugestões na internet, faz prints com o Google Street View dos mais interessantes e marca numa agenda o dia da visita.

Quando conversou com o TAB, numa quinta-feira de março, estava no Lick's Bar, em Copacabana. O espaço abre às 6h para servir café. Às 10h, os primeiros clientes já começam a pedir cerveja. Perto do meio-dia, o almoço começa a ser servido. Na mesa ao lado, Eduardo viu o garçom carregar nos braços uma caixa organizadora de plástico, cheia de farofa. Com uma espátula grande, ele serviu a cliente, depositando cuidadosamente farofa no prato. "Isso é lindo", admirou-se Eduardo. A caminho do banheiro, não resistiu à tentação de tirar uma foto.