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'Terra arrasada', centro de SP põe medo em trabalhador, comércio e sem-teto

03.04.2023 - Vista de barracas e moradores em situação de rua, debaixo do Minhocão em São Paulo - Tomzé Fonseca/Futura Press/Folhapress
03.04.2023 - Vista de barracas e moradores em situação de rua, debaixo do Minhocão em São Paulo
Imagem: Tomzé Fonseca/Futura Press/Folhapress

Rodrigo Bertolotto e Leonardo Fuhrmann

Do TAB, em São Paulo

12/04/2023 04h00

Saques em farmácias e supermercados, gangues de assaltantes usando bicicleta ou golpe mata-leão, protesto de moradores em situação de rua que perderam suas barracas por ação da prefeitura, cracolândia sendo jogada de um lado para o outro, buracos nas calçadas e no asfalto, transeuntes pisoteando lixo, ruas escuras porque os fios de iluminação foram roubados, seguranças escoltando frequentadores de bares e restaurantes até o metrô.

Medo é o único elemento democraticamente distribuído entre comerciantes, moradores (com ou sem teto), trabalhadores e quem está de passagem pela região central de São Paulo, a cidade mais rica do Brasil.

"Os policiais avisaram que iam jogar gás lacrimogêneo e nós fechamos as portas de aço. A gente e uma cliente ficamos asfixiados e tossindo porque o gás entrou", conta Luiz Peres, lojista da rua dos Gusmões, especializada em equipamentos de som e novo epicentro do fluxo de usuários de crack.

"Fui com minha família em uma distribuição de comida e quando voltei a prefeitura tinha levado minha barraca de camping. Estamos há mais de semana no relento", conta Alex dos Santos Souza, que mora na rua há quatro meses com mulher e três crianças, após ser demitido da construção de um prédio residencial em Itatiba (SP) e não receber dois anos de direitos trabalhistas acumulados. Na mochila ele leva documentos, roupas e um fogão elétrico, o kit sobrevivência.

As duas ações públicas capitaneadas pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) geraram insegurança na população do centro de São Paulo. "A solução violenta e a criminalização de uma questão social facilitam o discurso conservador e promovem mudanças urbanas sem consulta pública", critica Gisele Brito, especialista em planejamento urbano e coordenadora de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum.

Um exemplo disso, Gisele lembra, é a "cracolândia" deslocada com o projeto "Nova Luz" da gestão municipal de Gilberto Kassab (2006-2013) e novamente dispersada por intervenção estatal da praça Princesa Isabel no ano de 2022. Nos últimos meses, o fluxo de usuários já percorreu várias ruas dos bairros dos Campos Elíseos, Santa Cecília e República e atualmente está na esquina das ruas dos Gusmões e Conselheiro Nébias.

Alex dos Santos Souza, que está em situação de rua com esposa e três filhos, na frente da Catedral da Sé  - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Alex dos Santos Souza, que está em situação de rua com esposa e três filhos, na frente da Catedral da Sé
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

É centro ou periferia?

Parece piada, mas a recomendação trágica revela a expectativa atual de quem frequenta a região: "Caso vá ao centro, se prepare para ser abordado; vai ser alguém te assaltando, alguém te pedindo ou, talvez a melhor situação, alguém avisando para tomar cuidado porque tem arrastão na área".

A soma de quase uma década de crise econômica no país e a série de projetos de "revitalização" fracassados ou abandonados ao longo dos últimos 40 anos deixaram o centro antigo como um cenário de terra arrasada.

"As demandas são muito grandes e a velocidade da prefeitura é muito lenta. O problema do centro é de gestão pública, e a moradia deveria ser foco principal", critica Mauro Calliari, especialista em urbanismo.

Ele cita iniciativas boas, como a Vila Reencontro (contêineres para abrigar famílias em situação de rua) ou o programa de retrofit dos prédios históricos. "A classe média abandonou o centro e não voltou. Hoje, você tem na região poucos imóveis para os programas de habitação popular e muitos micro-apartamentos valendo R$ 20 mil o metro quadrado. Isso precisa ser equacionado", opina Calliari.

Por meio de nota, a prefeitura paulistana informou que a população em situação de rua aumentou 30% durante a pandemia e que conta atualmente com 21 mil vagas de acolhimento — o cálculo dos grupos assistencialistas é que mais 40 mil pessoas vivam ao relento na cidade. Por outro lado, afirmou que terá orçamento de R$ 115 milhões destinados para a zeladoria da subprefeitura da subprefeitura da Sé.

Uma das estratégias dos governantes é esconder. Assim como a "cracolândia" foi desviada da beira de grandes avenidas e da vista dos contribuintes e levada para travessas menores, as grandes concentrações de população sem-teto saiu de áreas como o Pátio do Colégio ou a Praça da Sé e foram dispersas pelos bairros próximos à área central.

"Antes, a gente só estacionava a van e o pessoal fazia fila para pegar alimento. Agora temos que sair caçando onde estão os moradores de rua para que a comida chegue até eles, mesmo em Higienópolis ou no Pacaembu", conta Ana Maria da Silva Alexandre, coordenadora da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo.

 Rua Helvétia voltou a ser dominada pelos usuários da cracolândia, em São Paulo, nesta segunda-feira (23) -  WAGNER VILAS/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO -  WAGNER VILAS/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO
23.05.2022 - Rua Helvétia, no centro de São Paulo, tomada de usuários de droga
Imagem: WAGNER VILAS/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO
Na alameda Barão de Limeira, sinalização para pedestres está ficando cada vez mais alta nos postes da região, para evitar furtos e vandalismo - Danilo Verpa/Folhapress - Danilo Verpa/Folhapress
Na alameda Barão de Limeira, sinalização para pedestres está ficando cada vez mais alta nos postes da região para evitar furtos e vandalismo
Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

Ela diz que quem é sem teto está assustado. "Como estão cada vez mais isolados, eles têm muito medo. As igrejas e as ONGs ajudam a dar dignidade para essas pessoas, mas é o poder público que tem condições, mas não tem interesse", afirma Ana Maria.

Determinado pelo governo estadual, o fechamento para reforma por um ano do restaurante popular Bom Prato dos Campos Elíseos aumentou ainda mais a insegurança alimentar no centro.

Ana Maria da Silva, coordenadora da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo  - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Ana Maria da Silva, coordenadora da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

A pedra no caminho

Depois de 38 anos na região da Santa Ifigênia, o comerciante Luiz Peres desistiu. Sua loja, a Casa dos Toca-Discos, reabriu na galeria Nova Barão. No quarteirão onde ficava, sobrou apenas uma das nove lojas que existiam. "A gota d'água foi quando a Guarda Civil Metropolitana jogou bombas de gás para dispersar os usuários de drogas e quase fomos asfixiados, mesmo com as portas fechadas", conta Peres, que também é morador do centro.

Ao lado de sua neta de 9 anos, a aposentada Marisa Russeff lamenta que a menina não possa ter uma infância normal na região em que moram. "Ela ainda não aprendeu a andar de bicicleta. Tem medo da rua", diz. Marisa está no mesmo prédio desde 2004. Segundo ela, mesmo as regiões que costumavam ser menos afetadas pela violência e pelo descaso pioraram nos últimos anos. "A praça Júlio Mesquita e o Largo do Arouche estão tomados de sujeira, assaltantes e usuários de drogas", afirma.

A garota estudou no Liceu Coração de Jesus, que passou por uma crise no final de 2022 e quase fechou, por falta de alunos. "Quando tinha ação policial, os perueiros tinham de esperar a situação acalmar dentro da escola, junto com os alunos", recorda-se Nayara, mãe da menina. A criança agora estuda em um colégio particular na Santa Cecília, mas a questão da segurança permanece. "Compramos um apartamento na avenida São João, mas meu marido quer vender, porque está com medo de morar aqui."

03.04.2023 - Operação da GCM e prefeitura de São Paulo no fluxo da 'cracolândia' - Danilo Verpa/Folhapress - Danilo Verpa/Folhapress
03.04.2023 - Operação da GCM e prefeitura de São Paulo no fluxo da 'cracolândia'
Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

A montadora Marina Franzolim se mudou para a São João em 2020, pouco antes do início da pandemia. "Parece que a covid-19 foi o momento em que a administração pública aproveitou para largar de vez o centro", diz. Para ela, a região vinha em uma expansão, com a abertura de novos bares e restaurantes, mas teve uma degradação rápida. "Na semana passada, quando teve o saque à farmácia aqui perto, reparei que não moro mais no centro histórico: os programas de TV tratam como 'cracolândia' e pronto."

Especialista em segurança pública e morador da região, o cientista político Guaracy Mingardi afirma que as ações de dispersão dos usuários de crack pioram a segurança da região. "Elas só servem para espalhar o problema cada vez mais e misturar os usuários de drogas com outras pessoas em situação de rua e criminosos que atuam na região. Não são os chamados 'noias' que fazem parte das gangues da bike ou do mata-leão. Como as pessoas estão mais espertas com os furtos de celulares, apareceram ações mais violentas, sempre concentradas no roubo de celular", diz.

Coordenadora da ONG de redução de danos É de Lei, Maria Angélica Comis afirma que as ações de dispersão só têm servido para aumentar os conflitos entre moradores, comerciantes e usuários de drogas. "Voltamos aos tempos da Operação Cracolândia de 2012, com a violência de PMs e GCMs contra os usuários", diz. A movimentação é feita a qualquer hora do dia ou da noite, com truculência e bombas. "A hostilidade e a violência só aumentam e geram mais desconfiança e animosidade do usuário em relação a quem não é de seu meio."

15.03.2023 - Fluxo da cracolândia concentrado na rua Guaianases -- hoje ele já mudou de lugar - Danilo Verpa/Folhapress - Danilo Verpa/Folhapress
15.03.2023 - Fluxo da cracolândia concentrado na rua Guaianases -- hoje ele já mudou de lugar
Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

Museu de velhas novidades

As lonas transformadas em habitação e os tapumes, dos prédios residenciais novos e das eternas reformas públicas, são os materiais efêmeros que formam as fachadas do centro atualmente. A menos de 50 metros da sede da Prefeitura, famílias inteiras moram embaixo da marquise projetada pelo renomado arquiteto Paulo Mendes da Rocha (1928-2021), construída no início deste século.

Ali abrigaria o Masp-Centro, ideia que nunca saiu do papel. Um novo projeto, concebido pelo ex-prefeito Bruno Covas, é receber o Museu da Cidadania e Direitos Humanos — curiosamente algo que falta no entorno da futura instituição, onde as pessoas parecem tão descartáveis quanto os produtos dos quais tiram o sustento.

Também estão distantes o deck de madeira, os guarda-sóis e as cadeiras de praia que habitavam o Largo São Francisco dez anos atrás para receber eventos como a Virada Cultural ou a Mostra Internacional de Cinema. A área próxima à tradicional faculdade de Direito da USP está recoberta com chapas de metal para nova reestruturação.

São tantos projetos frustrados que a notícia de que o atual governador quer tirar a sede estadual do Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, e devolvê-la aos Campos Elíseos, como foi de 1915 a 1964, não provoca entusiasmo em uma cidade onde preservacionismo e saudosismo tendem a zero.

Os viadutos que rasgaram a avenida São João, o parque Dom Pedro 2º e o Vale do Anhangabaú tinham o objetivo de serem lugares de passagem, mas são atualmente lugar de permanência para a população sem outro abrigo.

3.abr.2023 - Integrantes da Guarda Civil Municipale Prefeitura de São Paulo realizam operação na região da Cracolândia, no centro de São Paulo - Felipe Iruata/Estadão Conteúdo - Felipe Iruata/Estadão Conteúdo
03.04.2023 - CGM e Prefeitura realizam operação na região da 'cracolândia'
Imagem: Felipe Iruata/Estadão Conteúdo

Muitas lojas estão fechadas na rua Direita e na avenida São João, tradicionais pontos comerciais, o que cria mais espaço para as pessoas morarem diante de suas portas. O centro vive essa decadência desde os anos 1970. Primeiro se foram as classes altas; depois as empresas, e agora o comércio.

A economia cada vez mais digital também contribui, com as pessoas trabalhando e consumindo diante de telas e longe das ruas. Coincidentemente, o desolado centro paulistano se parece cada vez mais com os cenários urbanos apocalípticos dos videogames ou a praça de guerra retratada pelos programas policiais da TV, estilo "Cidade Alerta" ou "Brasil Urgente". O real só serve como fonte de informação ou entretenimento para quem, como você e eu, está atrás de uma tela.