'Cogumelo mágico' para 'fim medicinal' vira tendência com tutoriais online
Entre pedras e uma imensidão verde, não há vestígio de intervenção humana num trecho da praia de Camburi das Pedras, em Ubatuba (SP). Certo dia de 2018, porém, o céu parecia dominado por nuvens de poluição urbana misturadas aos raios de sol, compondo cores improváveis. Era o que via o produtor musical Caio Demark, 28, após comer um doce de leite com um ingrediente especial: Psilocybe cubensis, conhecido como "cogumelo mágico".
Foi a primeira vez que experimentou o fungo alucinógeno, amigavelmente ofertado por um grupo que acampava na praia. "Amor, o que vamos fazer se essa brisa não passar?", perguntou a companheira dele. "Tudo bem. Posso viver assim para sempre", Demark respondeu.
A brisa passou, e o músico aderiu à substância para fins recreativos. A certo ponto, incomodado com o quanto andava fumando maconha e atravessando uma depressão duradoura, quis explorar o cogumelo com microdoses para fumar menos e melhorar — um modo de consumo que, segundo usuários, vai até 600 miligramas, mas que é contestado por pesquisadores que consideram que não dá para medir a quantidade de princípio alucinógeno no cogumelo in natura, só na substância sintetizada.
A fonte da nova experiência de Demark é a internet, nos inúmeros perfis de Instagram e Twitter que publicizam benefícios como "melhorar humor", "curar depressão" ou "auxiliar no processo mental". Também é possível encontrar anúncios de cogumelos no Facebook e grupos no WhatsApp. O produtor musical conta que passou meses vendo aulas online no YouTube antes de iniciar o "tratamento" por conta própria que, pressupunha, mudaria sua vida.
Não mudou, relata. Não muito, ao menos.
Demark começou comprando cogumelos in natura em uma tradicional loja online de fungos alucinógenos, emagrecedores naturais e tudo que vem da terra. Com o que aprendeu digitalmente, preparava ele mesmo as microdoses em cápsulas de 400 miligramas e, seguindo um manual de consumo disponível na internet, prescreveu-se: "dia sim, dia não; semana sim, semana não".
O quanto fumava de maconha não diminuiu, mas ele conta que sentiu "o ego se diluir" um pouco ao tomar suas cápsulas. "Nos dias que tomo cogumelo, tenho vontade de dar vontade de dar 'bom dia' pra todo mundo. Fico simpático."
Agora, toma cerca de 200 miligramas por dia, em cápsulas compradas prontas, e cogita entrar no mercado como vendedor. "Não só pelo dinheiro, mas porque realmente acredito que ajudaria as pessoas, principalmente hoje que tem muito negócio de ansiedade e depressão", diz.
'Vi Jesus'
Diversos estudos investigam o potencial dos psicodélicos para tratar ansiedade, depressão e dependência química. Um laboratório da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande), na Paraíba, foi autorizado a realizar uma pesquisa pioneira com os cogumelos para fins medicinais em 2022 — a psilocibina está na lista de "substâncias entorpecentes, precursoras, psicotrópicas e outras sob controle especial" e, segundo a Anvisa, ela ainda é proibida no Brasil.
Na internet, porém, psilocibina é quase mato. Além da venda de produtos contendo a substância, nos grupos de Telegram e WhatsApp, por exemplo, entusiastas dos cogumelos discutem, diária e intensamente, os benefícios prometidos pela substância, relatam experiências e comentam a procedência de certos fungos encontrados em pastos e cachoeiras.
No grupo de WhatsApp Cogus Mágicas 1, que aglutina 630 participantes de todo o país, relata-se que as doses menores foram a "cura" para transtornos como depressão, ansiedade e TDAH; nas altas dosagens, os depoimentos incluem "ver Jesus" e "desenvolver asco por álcool".
"A psilocibina não tem como ser terapêutica sem acompanhamento profissional", pondera a médica Elisa Brietzke, pesquisadora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e professora na Queen's University, no Canadá. "O tratamento é denominado 'psicoterapia assistida por psilocibina', porque não é a droga o agente terapêutico, mas a combinação da substância com a psicoterapia. O terapeuta ajuda o paciente a entender o significado das experiências ocorridas durante o efeito de substâncias."
Tendência 'orgânica'
A alta dos cogumelos mágicos também tem outro fator, afirma o biólogo gaúcho Jeferson Timm, 41, que fez carreira em torno do reino Fungi: um movimento "orgânico" de valorização dos fungos fruto de estudos, reportagens desmistificantes e documentários populares, como "Fungos Fantásticos" (2019), de Louis Schwartzberg.
Timm, que se define como "caçador de cogumelos", atualmente guia expedições mata adentro com o intuito de lecionar métodos seguros de identificar fungos comestíveis na selva. Poucas vezes experimentou os efeitos alucinógenos da psilocibina, relata.
Tinha por volta de 23 anos quando, na gélida praia de Siriú, em Garopaba (SC), amigos avistaram um cogumelo num vasto gramado que ladeava a areia. Eles colheram o espécime e, sem delongas, engoliram-no. Para o biólogo, foi uma experiência tátil: os grãos de areia ficaram perceptíveis um a um na palma de sua mão, e o som do mar arrebentando ecoou maciamente nos seus ouvidos.
Foi uma experiência tranquila, mas que só voltou a se repetir recentemente, quase 20 anos depois, quando um amigo cultivador lhe ofereceu um punhado, que ele aceitou de bom grado. Acendeu a lareira numa tarde invernal, deixou que o acalento do fogo misturasse suas crepitações à música relaxante que escolhera e tomou uma dose que lhe permitiu uma experiência mais espiritual.
Timm conta que coletou viagens gostosas, mas não indica a todos, muito menos para fins terapêuticos ao léu. Quando dá cursos ou promove atividades, o biólogo responde a todas as perguntas, sem tabu, mas alerta que não está recomendando nada.
"Primeiro, ainda não temos comprovação científica de que microdosagem funciona. Já usei umas vezes em momentos que pensava que tinha que ser produtivo — não em uso contínuo", conta. "Conheço quem usou e teve melhora no dia a dia, e quem usou, acha que atrapalhou e parou de usar? É arriscado quem sai tomando sem diagnóstico; especialmente se tem ansiedade, depressão ou esquizofrenia."
'Dissolvendo' egos
Desde 2022, o terapeuta baiano Felipe Buraneli, 32, acompanha pacientes que escolhem viver uma "dissolução de ego" com dosagens altas de psilocibina. Formado em psicologia pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), não é associado a centros de pesquisa, e mistura artigos científicos que lê por conta própria com suas impressões de atendimentos. "Foi um processo natural que aconteceu comigo", diz ele, citando experiências que teve com psicodélicos como ayahuasca, LSD e MD.
"Uma das últimas foi com o cogumelo: mudou tudo na minha vida pessoal e profissional. Em 10-15-20 minutos, percebi que era um potencial auxílio para uma potencial experiência terapêutica", relata.
Na maioria das vezes, os pacientes o procuram e se inicia um longo processo de sessões, conversas e avaliações quanto à necessidade real do consumo dos cogumelos. Depois, o cliente compra os produtos com fornecedores indicados por Buraneli. "Não dou a substância para a pessoa por questões legais."
Dos fornecedores indicados, os principais estão no interior de São Paulo e em Salvador. Segundo ele, "90%" da venda de cogumelos no Brasil é praticada por pessoas envolvidas na medicina enteogênica, que é baseada em substâncias naturais com potencial para mudança de consciência.
Embebido nesse universo, Buraneli é reticente em relação à microdosagem e alerta para as falsas esperanças de uma cura de males psíquicos com a simples ingestão de alucinógenos. "A microdosagem está mal explorada", opina.
Para os interessados no potencial terapêutico dos psicodélicos, o melhor a se fazer é esperar por novos dados, "pois não há evidência suficiente nem sobre os riscos nem sobre os benefícios dessas substâncias", acrescenta a médica Elisa Brietzke. "Isso é ainda mais importante para quem tem um transtorno mental ou uma dependência de substâncias, ou para quem faz uso de medicação psicotrópica."
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