'Reset Brasil': peça teatral parte de trem da CPTM e cruza periferia de SP
Tal como o diabo foge da cruz, nos fins de semana muitos paulistanos fazem o possível para fugir dos trens da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). Longos minutos à espera do embarque podem estragar o rolê de qualquer um, mas, nas últimas semanas, o coletivo Estopô Balaio levou um espetáculo para os vagões na zona leste de São Paulo.
Parte da estação Brás, da linha 12-Safira, o espetáculo itinerante "Reset Brasil", em cartaz até 7 de maio — a passagem de trem custa R$ 4,40, mas a peça é gratuita. Lá, a produção distribui fones de ouvido, dá informações e tira dúvidas.
No último domingo (23), a vendedora Rhayssa Soares, 22, e o companheiro, Pedro Henrique, 25, estavam ansiosos — especialmente ela, que se considera uma indígena em território urbano: a ancestralidade é um dos focos da peça que, segundo a sinopse, convida o público "a sonhar rotas de fuga para o Brasil".
"Parece que meu bisavô foi pego no laço [expressão usada para definir a captura de indígenas pelos colonizadores]", contou Rhayssa, pouco antes de embarcar no trem.
Todos entraram no mesmo vagão, rumo a São Miguel Paulista. Os atores convidaram o público a mergulhar num transe com os fones de ouvido: o Brasil sumiu do mapa e, se é assim, sumimos todos e só fica a terra, diziam as vozes, em português e em línguas nativas, entre sons de pássaros.
Fora da peça, a vida seguia normalmente, com passageiros mexendo no celular, olhando curiosos para os atores pintados, dormindo ou contando moedas. "Dia de domingo, aqui fica nervoso, e trava", de repente provocou um ator, referindo-se à demora habitual dos trens nos finais de semana. Também lembrou dos "marretas", os ambulantes que levam produtos diversos para vender nos vagões.
Sob o olhar dos "guardinhas", o ator pediu palmas para os comerciantes. E, na sequência, também puxou coro para os vigias. "Todos são trabalhadores."
Ururaý resiste
Cerca de 20 minutos depois de sair do Brás, o público desembarcou junto com os atores na estação de São Miguel Paulista, onde um "levante indígena" os esperava. Fora da estação, crianças entoavam versos que diziam: "Mesmo estando sem pena, e até sem cocar, nós viemos para cá, pra São Miguel de Ururaý".
Antes de ser conhecido como Jardim Romano, Itaim Paulista ou São Miguel Paulista, o território onde a peça se desenrola era o antigo aldeamento Ururaý. Segundo o coletivo, composto majoritariamente por artistas descendentes de indígenas, a área abrigou uma resistência importante durante o período colonial: foi ponto de partida para o cerco de Piratininga, em 1562, um dos maiores levantes indígenas contra a escravização e a catequização dos povos nativos.
Ao todo, a peça percorre cerca de 20 km pela zona leste, 18 dentro do trem. O restante é a pé, por vielas e becos, passando por ruas sem asfalto, buracos e poças de lama. Naquele domingo, ao dobrar a primeira rua, quem surgiu foi a benzedeira Socorro, oferecendo caldo a todos. Natural do Piauí, ela contou que a avó fazia uma receita para a família não ficar com fome nas situações precárias em que viviam.
Cerca de 50 minutos depois, uma moradora serviu açaí a quem seguia as andanças da peça, e às crianças que brincavam na praça perto dali.
No trajeto, moradores também participam, seguindo trechos do espetáculo ou interagindo enquanto fazem churrasco, bebem cerveja, lavam carros, jogam futebol e dançam ao som produzido pelo caracaxá, a kena, flauta usada entre os indígenas da América Latina, e o tambor. Misturadas às intervenções estavam músicas como "Bum bum tam tam", de MC Bin Laden, "Reconvexo", de Caetano Veloso, e "Continuação de um sonho", do rapper BK.
O espetáculo foi incorporando relatos pessoais por onde passou — do alto de uma laje, por exemplo, discursou a coordenadora do Movimento Mães de Maio da Leste, Márcia Gazzarolli, que acrescentou ao enredo a história do assassinato de seu filho pela PM, em 2015.
Fundadora do grupo Estopô Balaio, a atriz indígena tupinambá Keli Andrade, 39, fez um relato sobre a história de sua mãe, uma mulher negra, que levou o público às lágrimas. De Santo André (SP), a artista Luna Marcelino, 23, não imaginava que choraria tanto. "Emocionante."
Depois de três horas pelas ruas, a peça seguiu para a apoteose na praça do Forró, no centro de São Miguel Paulista. Segundo a dramaturgia, tem motivo: com o que viu no caminho, o público poderia voltar para casa, para o "centro", levando consigo o "levante" adiante.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.