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Com chá e bolo grátis, vila criada por Charles 3º vê coroação 'desanimada'

Hannah Simonds, com o pai (à esq.) e o marido, no pub de Poundbury, para ver a cerimônia de coroação de Charles 3º - Alice de Souza/UOL
Hannah Simonds, com o pai (à esq.) e o marido, no pub de Poundbury, para ver a cerimônia de coroação de Charles 3º Imagem: Alice de Souza/UOL

Alice de Souza

Colaboração para o TAB, de Poundbury (Inglaterra)

07/05/2023 04h00

Se fosse mais jovem, a professora Tracy Shipley, 60, teria saído de casa ainda de madrugada e enfrentado quase 3 horas de trem para ver de perto a coroação do Rei Charles 3º, em Londres. Conta que fez isso em 1981 para o casamento do então príncipe e da princesa Diana (1961-1997), e guarda muitas lembranças. Desta vez, porém, trocou a euforia da multidão nos arredores da Abadia de Westminster pelo silêncio atento dos frequentadores da Igreja Comunitária de Dorchester, em Dorset, na região da Cornualha. "É nossa história, o desenvolvimento da Inglaterra, é sobre as nossas tradições. Sem a monarquia, o que seríamos?", questiona.

Tracy é rápida e responde, ela mesma, à própria questão retórica: diz que a Inglaterra seria um país sem definição. "Tem muitas pessoas que sentem ciúme da nossa história e do que nós preservamos. Os norte-americanos não têm isso e são fascinados."
Contudo, é possível ir além. Sem a monarquia, e especificamente sem Charles 3º, o centro religioso sequer existiria. Poundbury seria um ponto de lama e terra no meio de um condado no sudoeste inglês. É graças à vontade do rei agora coroado que o povoado existe, que a igreja foi transferida para lá e que, neste sábado (6), os moradores se reuniram para celebrar o novo reinado.

Poundbury é um povoado experimental, em bom português, uma espécie de loteamento. Nasceu em 1993, da inconformidade do monarca com a arquitetura moderna, expressa no livro "A Vision of Britain: A Personal View of Architecture" (Uma imagem da Grã-Bretanha: uma visão pessoal sobre arquitetura, em tradução livre) escrito por ele.

Parece uma cidade cenográfica, com ruas vazias e fachadas intactas. Por aqui vivem cerca de 4.000 moradores, em sua maioria ingleses aposentados. Foram construídos 2.320 imóveis; outros 380 serão entregues até 2026, quando está prevista a finalização do projeto.

A professora Tracy Shipley quase foi a Londres ver Charles 3º sendo coroado: 'Sem a monarquia, o que seríamos?' - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
A professora Tracy Shipley quase foi a Londres ver Charles 3º sendo coroado: 'Sem a monarquia, o que seríamos?'
Imagem: Alice de Souza/UOL

A igreja comunitária ficava no centro da cidade de Dorchester, mas foi transferida para lá em 2018, a convite do próprio Charles. Há duas semanas, os mantenedores decidiram abrir as portas e instalar um telão, para reunir a comunidade no dia da coroação. Tracy decidiu trocar o conforto e a privacidade do lar pelo encontro com patrícios, no vilarejo, depois de recapitular as memórias do matrimônio do rei.

"É momento de celebrar juntos, de conversar com desconhecidos, coisa que muita gente por aqui não tem oportunidade de fazer. Na época do casamento, lembro de ter bebido e comido com pessoas do mundo todo, nas ruas do entorno da Catedral de São Paulo", conta.

No sábado, os dois salões da igreja ficaram abertos. Um deles com duas televisões; outro, com um telão. Apareceram cerca de 20 pessoas — esperava-se pelo menos o triplo. A psicóloga Tory Barrow, 52, organizou tudo e explicou que o dia chuvoso e nublado pode ter afugentado alguns.

Moradores de Poundbury veem pela TV a coroação de Charles 3º - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Moradores de Poundbury veem pela TV a coroação de Charles 3º
Imagem: Alice de Souza/UOL

Quem chegou foi recebido por um menu de bolos, geleias e creme, além de chá e café, para seguir as tradições britânicas, como mandava o protocolo. Toda a cerimônia foi acompanhada por olhos atentos, que pouco desgrudavam das telas. Tory parecia saber cada passo dos acontecimentos e explicou com desenvoltura o desconforto da carruagem de 1760. Era quase uma enciclopédia da coroação. Quando não estava segura, recorria a um link no celular para confirmar as afirmações.

No único momento secreto da cerimônia, em que ocorreu a unção com óleo, ela fez questão de ressaltar a proximidade com o artista que fez o adorno da tela usada para esconder o momento. "Minha irmã e meu cunhado são amigos do artista que fez. É uma boa conexão, conhecer uma pessoa que participou do evento", brinca.

Tory é fascinada com a manutenção das tradições. "Foi mais emocionante do que eu imaginava, principalmente para quem é cristão. Foi bonito também ver pessoas de várias nações, pois somos um lugar com gente muito diversa. É importante lembrar disso."

A psicóloga Tory Barrow, que organizou o chá com bolos na igreja de Poundbury, no sul da Inglaterra - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
A psicóloga Tory Barrow, que organizou o chá com bolos na igreja de Poundbury
Imagem: Alice de Souza/UOL

Questão de estilo

Poundbury fica dentro do Ducado da Cornualha, propriedade privada destinada ao controle do filho mais velho do monarca inglês desde 1337. De certa maneira, é um jeitinho de garantir uma ocupação para o herdeiro da coroa, enquanto o momento da coroação não chega. O povoado tem 400 acres de terra (mais de 1,6 km²), projetados pelo urbanista Leon Krier.

Há princípios defendidos por Charles para a cidade. Apreço aos estilos arquitetônicos antigos é um dos principais. Tal qual um espaço tombado, prédios só podem alterar janelas e pinturas com a aprovação da administração. O local também foi pensado para ser percorrido a pé e para indistinguir imóveis habitados por pessoas de classes sociais diferentes. Em Poundbury, também é difícil achar as placas, sejam elas de lojas ou de trânsito.

A maior dificuldade, porém, parece ser encontrar alguém disposto a criticar o novo rei. A despeito da popularidade em baixa em outros locais, por lá há uma aura de proteção ao primogênito da rainha Elizabeth 2ª.

Françoise Ha, presidente da associação de moradores de Poundbury, no sul da Inglaterra - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Françoise Ha, presidente da associação de moradores de Poundbury
Imagem: Alice de Souza/UOL

A atual presidente da associação de moradores, Françoise Ha, 47, mora no lugar há cinco anos. Mudou-se com o marido e os três filhos, incentivada por um amigo. Ela rasga elogios ao local — bom ponto para o comércio, segundo ela. "Nunca vi o rei aqui, mas ele vinha com frequência, fora da agenda oficial. Gostava muito de saber o que estava acontecendo, sobretudo em relação à arquitetura e aos jovens."

Sobre a coroação, Françoise foi enfática: trata-se de um momento de orgulho. "Nós somos muito felizes de viver em um lugar que traz a visão de mundo dele, que colocou seu coração e paixão aqui", definiu.

A associação mandou fazer 550 broches com a logo da coroação para distribuir na escola local na semana anterior à cerimônia. O atual rumor é de que Charles 3º deve visitar o povoado em breve, para inaugurar um jardim em homenagem ao pai, Felipe, o Duque de Edimburgo, falecido em 2021.

Charles, conhecido por suas opiniões públicas sobre arquitetura, em seu desenvolvimento na vila de Poundbury, Dorset 1999 - Getty Images - Getty Images
Charles, entre engenheiros, durante a criação e o desenvolvimento de Poundbury
Imagem: Getty Images

A arquitetura do lugar é uma espécie de bricolagem de outros tempos, entre eles o georgiano, vitoriano, neoclássico e gótico. A média de preço de um imóvel em Poundbury é 376 mil libras (mais de R$ 2,5 milhões), mas um flat na praça Rainha Mãe, onde está uma estátua em homenagem à avó do rei, pode passar das 700 mil libras.

Apesar de muitos preferirem não se indispor com o idealizador do local, a professora Tracy deixa escapar um dado da realidade. Moradores das vilas no entorno têm uma certa inveja da opulência de Poundbury, pois vivem escondidas — inclusive dos serviços públicos — diante da caçula apreciada pela Coroa. "É uma cicatriz na paisagem do nosso interior", diz.

Poundbury, a cidade inventada pelo rei Charles 3º próxima a Dorchester - Blackbeck/Getty Images/iStockphoto - Blackbeck/Getty Images/iStockphoto
Poundbury, a cidade inventada pelo rei Charles 3º próxima a Dorchester
Imagem: Blackbeck/Getty Images/iStockphoto

Ventos não tão bons

A celebração na igreja não era o único encontro programado para a coroação. Havia também a ideia de instalar um telão na praça principal, em frente ao pub e restaurante Duquesa da Cornualha, antigo título de Camilla Parker Bowles, agora coroada como rainha.

O dia amanheceu chuvoso e nublado e assim permaneceu, mas não estragou o lado mais profano da festa na comunidade. O pequeno grupo se reuniu dentro do pub, onde foram distribuídas coroas de papel para os presentes.

Chuvisco e neblina em Poundbury, a vila criada por Charles 3º no sul da Inglaterra - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Ruas de Poundbury no sábado (6), dia da coroação de Charles 3º
Imagem: Alice de Souza/UOL

A chef Joanna Clifford, 58, largou os pratos na cozinha, colocou o pano no ombro e correu para a frente da televisão, no andar superior, para assistir ao início do cortejo que levou Charles até a Abadia. Fã declarada da família real, ela diz que eles trazem muito ao país.

"As pessoas querem vê-los, querem ver o Palácio de Buckingham. Esse país sempre foi o mesmo, isso sempre existiu. As pessoas que não gostam poderiam ir para outro lugar. É parte da nossa história", afirma.

Para ela, Charles tem a chance de fazer um reinado mais alinhado aos ideais do século 21. Joanna aposta, sobretudo, na inclinação dele para os discursos pró-preservação do meio ambiente.

A professora Hannah Simonds, 26, vive em Dorchester, mas decidiu ver a coroação em Poundbury justamente pela conexão do local com Charles. No pub com o namorado e o sogro, ela foi neutra nos comentários.

"Não tenho problema com ele [o rei]. Gosto de todos esses momentos, é uma boa forma de celebrar nosso país. Mas também digo que não sou muito pró-monarquia, pois eles custam muito", diz. O mais próximo que chegou da família real foi ainda criança, quando um dos irmãos do rei, de cujo nome não se lembra, visitou a escola dela.

Em Poundbury, várias pessoas já viram Charles. Agora, dizem que será mais difícil ver um membro da família real. William, atual detentor das terras, tem outros interesses, diz Tory, que já tem uma estratégia para atrair a atenção do atual sucessor da coroa. Vai convidá-lo para visitar as obras da igreja dedicadas às crianças. Espera que os ventos sobre o povoado e a monarquia mudem para uma melhor direção rápido e que, assim, isso não afete os planos de finalização do parque de diversões arquitetônico de Charles.