Livre e criativa, Rita ensinou ao Brasil o sentido da desobediência civil
É preciso que se diga: Rita Lee estabeleceu todas as bases. Antes de Rita, o "star system" feminino da música jovem brasileira ainda era ocupado majoritariamente por meninas, muitas vezes meninas românticas e manipuláveis, sonhadoras e adaptáveis ao sonho alheio. Ela meteu o pé na porta desse mundo idílico com uma noção de independência total, de autossuficiência, ao mesmo tempo que de personalismo, autoralidade.
Com Os Mutantes, ao lado do namorado de infância Arnaldo Baptista, Rita espraiou uma primeira utopia de garota independente, viajando pelo mundo ao lado dele, com isonomia criativa, anárquica, visionária.
Depois dos Mutantes, ela ensaiou a primeira grande utopia de um grupo de "riot girls" ao lado de Lucinha Turnbull, com a breve banda As Cilibrinas do Éden. Sem tutela masculina, insuflando uma nova ordem que se consolidaria em sua carreira solo, da mistura perfeita de delicadeza e corrosão, de postulação e carícia, os dois primeiros discos solo ainda se ressentiam das visões "mutantológicas".
Nos anos 1970, Rita, como se tomada por uma força gravitacional, se aproximou dos malditos da ruptura: Tim Maia, Raul Seixas, Paulo Coelho. Com Paulo Coelho, ela fez "Arrombou a Festa" e "Esse tal de Roque Enrow", um manifesto de toda sua condição futura. "Arrombou a Festa" a cristalizava na condição de metralhadora, destilando sarcasmo e desafiando regras de bom-mocismo e reverência cega.
Um dia, ao visitar o presidente da gravadora Philips para reclamar do tratamento dispensado ao seu segundo disco solo, que tinha ido parar na "geladeira", encontrou Tim Maia esperando na mesma sala — emputecido por terem feito uma arte esverdeada na capa do seu álbum. Não tiveram dúvidas: quebraram o telefone, os móveis, os vasos, os discos de ouro emoldurados na parede, destruíram tudo. Depois, foram passear de jipe em Copacabana.
Sua desenvoltura na cena jovem, a coragem e a disposição para o embate, nada disso seria ignorado pelo covarde regime militar. Em 1976, com três meses de gravidez, Rita foi presa após uma campana incessante dos arapongas do regime, que plantaram maconha em sua casa para mantê-la no xadrez por um ano. A primeira pessoa que foi vê-la, um dia após a prisão, não podia ser outra: Elis Regina. Elis e Nara eram as outras vozes da afirmação naquele momento duro.
Ela passou então a integrar uma cena que era construída junto com sua ascensão. Esteve no pioneiro Hollywood Rock de 1975 e no festival de Saquarema de 1976, já como estrela absoluta.
Em 1995, desfilou pelo palco que abrigaria os Rolling Stones como uma destemida discípula de Suas Satânicas Majestades, cantando "Miss Brasil 2000". Era uma declaração de influência e, ao mesmo tempo, de descolamento, algo que Mick Jagger não pôde deixar de notar, fazendo sua reverência à cantora brasileira no palco.
Em 2012, em Sergipe, outra vez a ordem estabelecida a cutucava. Enquanto cantava no palco, viu policiais tratando mal pessoas da plateia e parou tudo para xingar os agentes. Foi processada e forçada a indenizar por danos morais os PMs. Não se curvou nunca, em nenhum momento. Pelo menos três gerações de garotas tiveram Rita Lee não apenas como modelo de independência, mas de força política: ao descobrir que tinha um tumor, não hesitou em apelidá-lo de "Jair", em referência ao mandatário mais retrógrado que a nação jamais encontrou.
Rita se bateu com a crítica de igual para igual e até ameaçou dar uma sova em um jornalista, no final dos anos 1980, por julgar que ele teria sido desrespeitoso na formulação de um texto sobre um disco novo, mas soube manter principalmente uma fronteira de privacidade muito bem determinada entre o ente privado e o público.
Apesar de curtir um barraco, como alguns que ensaiou na infância das redes sociais, especialmente no Twitter, ela também sabia evitar as controvérsias — escreveu parte dos seus livros somente para dar a última palavra naquilo que julgava ter como território exclusivo de sua privacidade.
Outra lição extraordinária de Rita, quase imperceptível como todas, foi a derradeira, a do envelhecimento orgulhoso de si. Ela nunca encarou a chegada dos anos como um fardo — mas como uma espécie de portal para uma terra de afetos e acolhimento. Abraçou os pets, as frutas do quintal, a manta xadrez, os programas de TV noturnos, o chapeuzinho de tricô e a maturidade do amor, feito de companheirismo e solidariedade. Não falsificou juventudes.
Rita Lee sempre teve um radar afiado para os rebeldes de todos os espectros. Com Cazuza, viveu doce e também dolorosa parceria (não teve coragem de visitá-lo quando já muito doente, pois dizia que não conseguiria encará-lo em tal momento de fragilidade). Juntos, no entanto, fizeram aquela que é uma das canções premonitórias mais bonitas, e talvez mais desconhecidas, de ambos, "Perto do Fogo":
Eu tava aqui pensando, pensando
Pensando, pensando
No ano 2020 eu vou ter o que, 72, 73 anos?
Vai ser tudo igual
Tudo, tudo igual
Perto do fogo
Eu queria ficar perto do fogo
No umbigo do furacão
E no peito um gavião
Gavião, gavião
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