Mesmo proibida, festa de fogos de artifício ilumina ruas no interior da BA

As noites juninas no interior da Bahia são iluminadas pelo brilho dos fogos de artifício. Como de costume em todo o Nordeste, crianças e adultos brincam com bombas ao redor das fogueiras. Mas é na véspera de São João que se realizam os maiores espetáculos com fogos da região, as guerras de espada. A tradição é mantida há décadas, mesmo com determinações judiciais recentes que criminalizam a prática.
Pelas ruas de Senhor do Bonfim (BA), a 383 km de Salvador, saem grupos há mais de 80 anos. São turmas mistas, de idade variada e maioria masculina. Mais de 300 "espadeiros", como são chamados os brincantes dessa festa, são registrados na Associação Cultural dos Espadeiros de Senhor do Bonfim.
"Na verdade, o nome 'guerra' não faz mais sentido hoje. As pessoas só jogam pra cima e nas ruas, não nas outras", afirma Rodrigo Wanderley, 34, presidente da associação.
Os "espadeiros" usam casacos, capacetes, máscaras, óculos e, alguns, roupas anti-chamas, para se protegerem das faíscas. Na saída dos "Espadeiros da Tribo", que reúne mais de 30 pessoas descendo as ruas da cidade, as pessoas recepcionaram com palmas e os carros buzinavam como sinal de apoio à tradição. O grito de guerra anuncia "hoje tô puxando fogo".
O cortejo é guiado por músicos que animam a festa com clássicos do forró. Os grupos são recebidos em algumas casas, que preparam banquetes com pratos típicos e oferecem bebidas aos brincantes.
A professora aposentada Vera Lúcia da Silva Costa, 79, diz que faz questão de recebê-los todo ano em sua casa. "Desde que eu me entendo por gente que existe a tradição das espadas. Hoje estou triste, porque vejo não ter as espadas na minha cidade como antigamente."
Cultura ou crime?
Antes de ser criminalizada, a festa tomava conta de toda a cidade. Os grupos se espalhavam montando suas fogueiras e a brincadeira era tomar a dos outros. Agora, a tradição é resumida em três ruas que concentram os resistentes. Nelas, as casas são cobertas com tapumes ou papelões para amenizar os danos patrimoniais, e em algumas as luzes são apagadas para valorizar o brilho das espadas.
Desde cedo, policiais vigiavam as esquinas das ruas que tradicionalmente recebem os espadeiros — Costa Pinto, Júlio Silva e Barão de Cotegipe. Com escudos e carros bloqueando a passagem, as forças de segurança tentam intimidar os espadeiros.
"A gente passou a ser tratado como bandido e a gente não é. Não tem selvageria nenhuma aqui, as pessoas estão confraternizando. São famílias que estão brincando", afirma o presidente da associação.
Desde 2018, a guerra de espadas de Senhor do Bonfim é alvo de recomendações do MP-BA (Ministério Público da Bahia). O órgão alega que o objeto "causa risco à integridade física dos cidadãos" e se baseia em leis como a do Estatuto do Desarmamento e a de Crimes Ambientais.
A guerra é proibida pelo Tribunal de Justiça da Bahia desde 2017 em Senhor do Bonfim, incluindo uma decisão judicial que suspende a lei que tornava a prática patrimônio cultural do município. Outras cidades também tiveram sua prática proibida, como Cruz das Almas, em 2011, e Campo Formoso, desde 2015.
Se correr, o bicho pega
A memória popular conta que a guerra de espadas no Sertão baiano surgiu quando um senhor chamado Prechéu, que tinha quatro filhas muito bonitas, encomendou aos fogueteiros artefatos para espantar os paqueradores de sua porta. Ao jogar nos pretendentes, alguns o agarravam e passavam a usá-los como espadas.
O artefato é feito até hoje de forma artesanal, utilizando bambu preenchido com uma mistura de pólvora e limalha de ferro, fechado com barro e enrolado com barbante de sisal. A regulamentação dessa produção é um dos passos necessários para autorização da festa.
No encontro dos grupos, os espadeiros acendem suas "armas" nas fogueiras das ruas e brincam de desenhar com a faísca no ar, até lançar o bastão pela rua. A espada corre em alta velocidade e a fumaça toma conta do espaço.
Enquanto uns correm, outros pulam em cima das espadas. Pisam nelas, controlam o artefato e jogam de volta para o outro lado da rua. "Não pode correr, senão ela vem atrás. Só pule", indica um dos mascarados. Essa característica se assemelha aos tradicionais busca-pés; a diferença da espada é seu tamanho e o fato de não explodir no final da queima, como outros fogos de artifício.
Em meio a correria e com um fundo pirotécnico, um beijo chama a atenção. O espadeiro Richelieu Valentin, 32, acabava de pedir a mão da jornalista Labely Rairai, 25, em casamento. As alianças do casal — que se conheceu em um forró — estavam escondidas dentro de uma das espadas que ele entregou para ela soltar.
"A gente vive uma rejeição desnecessária sobre o que é guerra de espadas. Há um ano e meio que estamos juntos e o que me define aqui nessa cidade é a guerra de espadas, então eu tinha que fazer o pedido aqui porque meu coração estava brotando de amor", diz o cearense radicado na Bahia desde os nove anos.
Espadeiros há gerações
A tradição de acender espadas é passada geralmente por familiares. Pedro*, 14, começou na guerra de espadas há quatro anos, seguindo os passos do pai. "Hoje ele tá lá em cima e eu tô aqui na Terra honrando o nome dele."
O adolescente faz dupla com o amigo Carlos*, 17, que confessa ter tido medo das espadas quando criança, mas acompanhou o cunhado em uma disputa e se encantou. "É a melhor tradição que existe na face da Terra", afirma.
A estudante Beatriz*, 16, cresceu vendo a guerra de espadas na frente da casa de sua avó e este ano brincou dominando espadas pela primeira vez. A jovem diz que herdou a paixão de um tio. "Desde pequenininha já sou acostumada a ver a guerra de espadas. Eu acho uma tradição tão linda, não deviam querer acabar com ela."
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