Chapado e sem grana, filme nacional vira cult ao inventar estilo de kung fu
Dois amigos que treinam kung fu em uma praça da Vila Madalena, zona oeste de São Paulo e fumam maconha para "dar uma refletida", nas palavras deles, nos intervalos da atividade física. A ideia não parece sair do lugar à primeira vista, mas foi assim que André Sigwalt, 45, e Augusto Soares, 45, começaram a criar o filme "O Mestre da Fumaça".
Produzido de forma totalmente independente, com orçamento baixo até para o padrão nacional, o filme levou o prêmio do público de Melhor Filme Brasileiro da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e já emplacou nove semanas em cartaz no circuito nacional —- feito ousado para um filme produzido assim e distribuído por uma pequena empresa.
Formado em cinema e diretor de fotografia em outras produções, Sigwalt começou a se dedicar ao kung fu em 2008, depois de treinar outras artes marciais. Visitou Taiwan e China continental. Com o tempo, o amigo Augusto Soares, formado em rádio e TV, passou a acompanhá-lo nos treinos.
A história dos dois com a maconha é mais antiga: eram companheiros de baseado nos anos de formação na Faap (Fundação Álvares Penteado), no final dos anos 1990 — "quando a Faap ainda era uma fundação, filantrópica", destaca Soares, para ressaltar a dificuldade da dupla de fazer o filme com recursos próprios, sem qualquer edital.
"A gente achou que teria dificuldade de passar, por não termos muito currículo e pelo tema do filme envolver maconha", afirma Sigwalt. Os dois temiam também que a reação de grupos conservadores inviabilizasse a produção.
O filme repetiu a vida: nele, dois irmãos que treinam kung fu com amigos em uma praça tentam escapar de uma perseguição das tríades chinesas que já dura três gerações. Todos os lutadores da família são assassinados antes de completar 28 anos como punição pelo avô ter se recusado a ensinar suas técnicas de luta aos integrantes da organização criminosa. O estilo em questão é o da fumaça, uma série de movimentos baseados na preparação e no consumo da maconha. Para enfrentar os criminosos que estão na cidade para assassiná-los, um dos irmãos busca treinamento com "O Mestre da Fumaça", personagem-título do filme.
Para criar o roteiro, organizaram um cineclube semanal de filmes kung fu, com atenção especial para as produções chinesas. Algumas tradições, como a dos vilões falarem inglês, foram mantidas. Para homenagear o estilo, também foram feitas cenas e legendas ao longo do filme em chinês. A principal referência é "O Mestre Invencível", estrelado pelo astro Jackie Chan, em 1978. Nele, o protagonista usa o "Estilo do Bêbado" para vencer seus adversários. A diferença fundamental é que esse estilo existe de fato no kung fu, e o "Estilo da Fumaça" é uma invenção dos diretores. Sigwalt participou das coreografias de todas as lutas do filme. "Ele é o único professor habilitado a dar aulas do 'Estilo da Fumaça'", brinca Soares.
'Stoner movie'?
A classificação como filme de kung fu agrada aos diretores, mas eles enxergam diferenças cruciais entre o trabalho e os "stoner movies" tradicionais. A classificação é dada aos filmes que tratam diretamente de temas relacionados ao uso da maconha, principalmente comédias. "O Mestre da Fumaça" seria o primeiro representante nacional do gênero. "No nosso filme, os usuários são lutadores. Não exploramos aquela imagem do chapadão comum em filmes assim", compara Sigwalt. Ele prefere ver o filme como antiproibicionista e essa visão tem atraído simpatia. Para João Pedro Fleck, diretor e curador do Fantaspoa (Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre), "O Mestre da Fumaça" faz parte de um movimento de maior atenção aos filmes de gênero. "Dez anos atrás, seria um filme que nem chegaria ao público", acredita. O festival foi o primeiro a receber o filme, em 1º de maio de 2022.
O caminho do filme começou em 2016, com a ideia original. O argumento foi registrado em 2018 e as filmagens foram feitas em 2020. Até agora, segundo os diretores, a bilheteria e as premiações não serviram para pagar nem 5% do valor que eles colocaram do próprio bolso na produção. Eles esperam vender o filme para algum serviço de streaming, até para alcançar um público maior.
As dificuldades foram além da filmagem completamente independente (o filme só ganhou um edital depois de pronto, da SPCine, para distribuição) e do tema polêmico. Procurado no início do projeto para participar da elaboração do roteiro, Fabrizio Fernandes morreu poucos meses depois por causa de um câncer agressivo. Ele era colega da dupla dos tempos de Faap e o único com experiência como roteirista. Fernandes colaborou nos primeiros tratamentos do roteiro, mas não chegou a ler o texto antes do início das filmagens.
Outro integrante da equipe que não chegou a ver seu trabalho pronto foi o ator Cleber Colombo, que faz o mestre que inicia os irmãos no kung fu antes do contato com o Mestre da Fumaça. Colombo era ator, diretor de TV, cinegrafista, fotógrafo, DJ e técnico de luz e som. Ele morreu em abril de 2022 em decorrência de um acidente de moto quando trabalhava para um aplicativo de entrega de alimentos para completar sua renda. "O acidente é um exemplo das dificuldades de um artista no Brasil, ainda mais se for preto", diz Sigwalt.
Com tempo, sem grana
A equipe teve de contrariar uma máxima das produções de baixo custo — a de quem não tem dinheiro, tem tempo para fazer. O filme tem tomadas em São Paulo e em São José do Barreiro, município paulista com pouco mais de 4.000 habitantes, na Serra da Bocaina. Lá, eles usaram a chácara de um amigo de Sigwalt como cenário.
Monica Palazzo, que assina a direção de arte junto com Fernanda Frate, diz que as amizades foram importantes não só para conseguir cenários, mas diversos objetos de cena. "A gente usou objetos de acervo próprio, emprestados de outras produções em que estávamos trabalhando e de outras pessoas da equipe", diz ela.
Um dos desafios foi buscar um berço de bebê. Ela conta que lembrou da sobrinha recém-nascida e consultou a cunhada sobre o objeto. A resposta a surpreendeu: "ela me perguntou se a gente já não precisava de uma bebê para cena". Precisavam e Cléo fez sua estreia como atriz.
O trabalho também dependeu do poder de improviso da equipe. Com autorização para filmar na galeria Prestes Maia, no centro de São Paulo, eles só não podiam fechar o espaço. Por isso, a cena de luta de gangues foi gravada com público transitando por ali.
Situações como carros e carroças emprestados na hora e técnicos como figurantes foram comuns. O assistente de direção Armando Fonseca lembra em especial de uma cena de cachoeira. "Estava um frio danado e fui agasalhado, sem a menor intenção de me molhar. Acabei tendo de ficar debaixo da água, segurando dois bambus para uma cena", conta. Um acaso garantiu a dedicação da produção durante as três semanas que passou no interior. "A gente estava sem sinal de celular, então era foco total no filme."
Uma China na represa Billings
Não bastassem os outros problemas, o começo das filmagens coincidiu com o início da pandemia de covid-19. Com isso, uma viagem para a China para fazer algumas cenas se tornou impossível. O jeito foi gravar nas margens da represa Billings as cenas que seriam no país estrangeiro. A pandemia também dificultou a contratação de uma atriz idosa fluente em chinês para fazer uma vilã. Eles tentaram até com amadoras, mas as famílias não autorizavam a saída, mesmo com toda a equipe de filmagem testada para covid-19. A solução veio do próprio elenco. Tony Lee, 66, o ator que faz "O Mestre da Fumaça", concordou em fazer também a personagem Dona Liu.
Tony é um ator chinês que se divide entre o Brasil e a China há quase 28 anos. Trabalha nos dois países como ator e, na China, é também apresentador de documentários. Foi numa viagem a São Paulo para um programa de TV que se interessou pelo Brasil. Foi estudar dança de salão e já deu aulas de dança brasileira na China.
"É um estilo diferente de qualquer dança no mundo. Fiquei tão interessado que fiquei um mês fazendo oito horas diárias de aula de dança, cinco numa academia e três particulares", conta. Acostumado a fazer personagens menores no Brasil, geralmente vilões, ele viu o filme como uma grande oportunidade. A dificuldade dele com a língua portuguesa, dessa vez, jogava a favor do personagem.
"Tinha tanta dificuldade de falar 'neblina' que virou uma piada no set porque eu esquecia sempre a palavra. As pessoas passavam por mim e diziam: 'Tony, neblina'", lembra.
O problema de Tony não era só com a neblina. Ele também não entendia nada de maconha. "Não fumo nem cigarro", conta. No filme, convém explicar, as cenas de consumo de maconha são feitas com alfafa e um vaporizador, quando era necessário produzir muita fumaça. O lúpulo foi usado no lugar da maconha nas cenas em que a erva é mostrada in natura. As plantas são da mesma família.
Tony também não tinha experiência com outra atividade essencial ao filme: nunca lutou kung fu. Mas garante que suas cenas ficaram convincentes. "Já teve chinês aqui no Brasil que pediu para ter aulas de luta comigo. Falei que não posso, mas sei indicar bons professores", afirma.
Segundo ele, amigos chineses viram algumas cenas do filme e ficaram impressionados com a qualidade das coreografias. Tudo isto o anima a querer mais. "Ainda não contei para o Sigwalt e o Soares, mas estou treinando kung fu toda semana para fazer 'O Mestre da Fumaça 2'", revela.
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