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Entre o 'medo branco' e Magazine Luiza: as origens do tal 'racismo reverso'

Anúncio do primeiro processo seletivo exclusivo para admissão de trainees negros pelo Magazine Luiza gerou polêmica nas redes sociais - Divulgação/Magazine Luiza
Anúncio do primeiro processo seletivo exclusivo para admissão de trainees negros pelo Magazine Luiza gerou polêmica nas redes sociais Imagem: Divulgação/Magazine Luiza

Tiago Dias

Do TAB

01/10/2020 04h01

Recentemente, as empresas Magazine Luiza e Bayer abriram processos seletivos exclusivamente para negros. O gesto foi celebrado como uma ação afirmativa importante e exemplar na tentativa de corrigir a desigualdade racial no mercado de trabalho brasileiro. Segundo dados do IBGE, pessoas negras (pretos e pardos) ocupam somente 29% dos postos de chefia, mesmo correspondendo a mais da metade da população.

Alguns, contudo, viram nas ações uma espécie de "discriminação às avessas".

O vereador Fernando Holiday (Patriota-SP) diz que irá recorrer no Ministério Público contra o "padrão racista de contratação" no caso da Magazine Luiza. Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, a juíza do Trabalho Ana Luiza Fischer Teixeira de Souza Mendonça afirmou, em seu perfil no Twitter, que o programa de trainee causava "discriminação na contratação em razão da cor da pele". "Na minha Constituição, isso ainda é proibido", dizia a publicação, que depois foi apagada.

Muitos chegaram a usar o termo "racismo reverso" para descrever as iniciativas e essa estratégia não é nada nova. A expressão, semanticamente vazia, circula no mundo desde pelo menos os anos 1970, justamente quando começa o processo de aquisição de direitos pela população negra nos Estados Unidos.

Registro do movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, na década de 1960 - Estate of Leonard Freed/Magnum Photos/BBC - Estate of Leonard Freed/Magnum Photos/BBC
Registro do movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, na década de 1960
Imagem: Estate of Leonard Freed/Magnum Photos/BBC

Quem usou o termo? Segundo Adriana Dias, doutora em Antropologia Social pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a expressão surge como discurso de oposição aos direitos civis conquistados pelos negros. Logo no início dos anos 1970, movimentos supremacistas brancos passaram a denunciar um suposto "genocídio branco", "que seria promovido por casamentos interraciais, com o negro ocupando lugares nos esportes, na TV, lugares de destaque na sociedade. Dentro desse contexto aconteceu uma grande passeata da Ku Klux Klan, no estado americano de Colorado, em 1974, onde se relata, por história oral, registrada por historiadores, que o líder neonazista David Lane e outros 'Klasman' usaram 'racismo reverso' nesse debate. O termo aparece marginalmente no contexto do 'genocídio branco', dentro de cartazes e discursos. Foi esse o termo, e não 'genocídio branco', que acabou sendo capturado pelo imaginário social do homem médio."

E "discriminação reversa"? A ideia de discriminação reversa estava circulando no debate público pelo menos desde 1973, quando o estudante branco Allan Bakke processou a Universidade da Califórnia. "Bakke argumentava que a instituição, ao promover uma política de cotas para minorias, impediu seu ingresso no curso de Medicina", explica a antropóloga Janaína Damasceno, professora adjunta da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Como o processo repercutiu? Hastings Law News, uma publicação editada pela Faculdade de Direito da universidade, se dispôs a debater o assunto com os alunos. As opiniões se dividiam. Em 15 de março de 1976, o assunto ainda estava quente, e uma carta assinada pela Associação de Estudantes Negros de Direito rebatia que a ideia de "discriminação reversa" era "arsenal da filosofia supremacista branca". "É tão terrível quanto assustador ouvir pessoas brancas que desfrutam do mais alto padrão de vida no planeta Terra lançando, de forma mesquinha, a carta da 'discriminação reversa'", dizia um dos comentários.

E o que a Justiça determinou? O caso de Bakke foi levado à Suprema Corte em 1977 e também dividiu os magistrados. A decisão, no entanto, entendeu que as cotas não violavam a Lei dos Direitos Civis de 1964. "Foi um marco jurídico", observa Damasceno. Como prova de que o tema estava na boca do povo, Adriana Dias cita uma passagem de um livro de 1975, "Ethnicity: Theory and Experience", do sociólogo norte-americano Nathan Glazer. O autor mencionava o uso do termo "racismo reverso" em uma carta, publicada no jornal Washington Post, em 1974. A carta fora escrita por um Coronel do Exército dos EUA, negro, diretor dos Programas de Igualdade de Oportunidades do Exército. "Como negro, não acredito que seja justo ou significativo chamar [ações para corrigir desequilíbrios raciais] de 'discriminação reversa'."

Manifestantes marcham em Washington, 1977, contra o pedido de Allan Bakke - Charles Tasnadi/AP Photo - Charles Tasnadi/AP Photo
Manifestantes marcham em Washington, 1977, contra o pedido de Allan Bakke
Imagem: Charles Tasnadi/AP Photo

E como essa discussão chegou até hoje? Não que a ideia fosse apoiada pela maioria da população, mas o debate sobre direitos de minorias e o "medo" de que negros roubassem oportunidades dos brancos ficaram de certa forma enraizados na sociedade, fazendo surgir movimentos conservadores, especialmente a partir dos anos 1980, durante os governos de Ronald Reagan e George Bush. "Isso ganha força depois dos anos 1990, quando começa a vir para a massa média e explode de vez, de uma forma muito violenta, depois dos anos 2000. Vários episódios nos Estados Unidos foram tencionados nesse processo, as grandes marchas contra 'genocídio branco' entraram nisso", observa Adriana Dias.

Em uma pesquisa de 2016 do Public Religion Research, durante a campanha presidencial de Donald Trump, quase metade dos norte-americanos entrevistados disseram acreditar que a discriminação contra os brancos era um problema tão significativo quanto a discriminação contra os negros. A mesma porcentagem (49%) não acreditava na afirmação.

Onde mais a ideia foi parar? Aconteceu o mesmo na África do Sul. No momento pós-apartheid, a expressão foi usada durante o esforço do governo de equipar demograficamente o serviço público, e mais uma vez dentro do contexto do aumento da população negra no ensino superior.

E o Brasil com isso? Nenhum fato descrito parece ter dado início ao uso da expressão, mas "racismo reverso" circula toda vez que o assunto cotas é notícia. "É sintomático que na África do Sul, Estados Unidos e Brasil o 'mito do racismo reverso' tenha crescido justamente no campo do acesso ao ensino superior, o mais elitista e branco grau do ensino em todos estes países", observa Damasceno. Para Adriana Dias, a forma como o discurso racial duro vem sendo traduzido para a população comum tem um propósito: "construir a ideia de que, no mundo onde os negros alcançam algum poder, os brancos é que vão sofrer alguma espécie de racismo", observa Dias.

E isso é possível? Não. "O racismo depende de um majoritarismo político, que nunca deixou de estar na mão dos brancos. A gente vive em um mundo eurocêntrico, brancocêntrico. Esse poder nunca esteve ameaçado de fato em lugar nenhum do mundo. Talvez agora um pouco pela China, mas os negros com certeza não ameaçam esse protagonismo", observa Adriana Dias. E a questão não é numérica. "O poder da maioria é um poder simbólico, de violência simbólica. Mesmo não sendo a maioria, o branco detém o poder econômico, por isso é majoritário." Para o cientista social cubano Carlos Moore, o racista usufrui de privilégios e do poder total enquanto o alvo do racismo experimenta exatamente a experiência contrária. Em seu livro "O Racismo Através da História", ele afirma que esse benefício ao branco é estendido em muitos outros sentidos, até psicologicamente. "Não somente ele se sente superior, mas vive uma vida efetivamente superior à vida daqueles que ele oprime."

Segundo dados do IBGE, pessoas negras (pretos e pardos) ocupam somente 30% dos postos de chefia -                                 Marcelo Camargo/Agência Brasil                             -                                 Marcelo Camargo/Agência Brasil
Segundo dados do IBGE, pessoas negras (pretos e pardos) ocupam somente 30% dos postos de chefia
Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Processo seletivo só para negros não é segregação racial? "Não. É reparação histórica, principalmente num país onde a população negra viveu um violento regime de escravidão durante muito mais tempo que em outros lugares. Nós ainda temos uma segregação racial profunda", observa Dias. Ações afirmativas como processos seletivos exclusivos para pessoas negras são importantes. Eles existem ao redor do mundo, e, por aqui, são permitidos pela Constituição Federal. O artigo 39 do Estatuto da Igualdade Social permite e incentiva ações afirmativas. "Isso cria uma estrutura intelectual, no caso das universidades, e uma classe média negra, que aí vai poder dividir o poder dessa constituição social que nós vivemos. Isso democratiza a sociedade, diminuindo a desigualdade social", observa Adriana Dias. "No longo prazo, nós teremos condições de ter um país menos desigual se nós investimos mais em políticas afirmativas."

Errata: este conteúdo foi atualizado
A primeira versão deste texto não deixava claro o argumento da antropóloga Adriana Dias. O conteúdo foi atualizado.