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Por que a carne de porco, a mais consumida no mundo, ainda é malvista

Porcos de criação na Suíça - Pascal Debrunne/Unsplash
Porcos de criação na Suíça Imagem: Pascal Debrunne/Unsplash

Leonardo Neiva

Colaboração para o TAB

10/09/2020 04h00

Até 2021, a Comissão Europeia deve gastar 7,5 milhões de euros (R$ 46,6 milhões) numa campanha para incentivar os jovens na Espanha, França e Portugal a comerem carne de porco. A pergunta que fica é: por que a União Europeia, presente entre as regiões que mais comem porco no mundo — cada europeu devora em média 41,3 kg da carne por ano —, precisa incentivar, ainda mais, o consumo de sua principal proteína?

A ação vem na esteira de outras campanhas milionárias promovidas na região, procurando reverter uma queda do consumo da carne nos últimos anos. Entre os motivos para o declínio estão a preocupação com doenças provocadas por sua ingestão, denúncias de maus-tratos aos animais e os impactos de sua produção no clima e no meio ambiente.

Carne mais consumida no mundo, o porco, no entanto, nunca foi o preferido dos brasileiros. Apesar de sermos o quarto principal país produtor de carne suína, por aqui ela perde feio para o frango e o boi. O porco ainda é visto no país como sujo, gordo e transmissor de doenças — "como no tempo em que era criado em chiqueiro", segundo o presidente da ABCS (Associação Brasileira dos Criadores de Suínos), Marcelo Lopes.

Nutricionistas afirmam que, apesar dos perigos para a saúde do consumo de carne vermelha, não há razão para o preconceito que o porco sofre em relação a outras carnes gordurosas ou processadas, que hoje estão mais presentes na alimentação do brasileiro.

Para começar, de onde vem o porco? Descendente da espécie Sus scrofa, conhecida como javali selvagem, e originário da Europa e Ásia, o porco foi domesticado pelo homem cerca de 10 mil anos atrás, por fazendeiros na Mesopotâmia e na China. O suíno foi essencial na alimentação de algumas das primeiras civilizações. Além da carne, o porco produzia banha, usada na preparação e conservação de alimentos. "O porco é um animal de pequeno porte que come qualquer coisa, então você podia criá-lo até no quintal. Sua carne era muito consumida porque sempre foi muito fácil e barato consegui-la", afirma Eduarda Chevitarese, cozinheira formada em gastronomia e autora de pesquisa sobre o consumo do porco ao longo da história.

O que mudou? Apesar de já marcar presença na mesa de alguns povos, a carne de porco era considerada impura pelos egípcios. Mais do que isso, seu consumo era terminantemente proibido, a ponto de criadores de porcos serem impedidos de entrar nos santuários dedicados aos deuses. "Ninguém lhes quer dar as filhas em casamento, nem desposar as filhas deles", descreve o historiador grego Heródoto. Oferecer o animal como sacrifício a essas divindades, por outro lado, era permitido e até prática corrente para os egípcios. Entre os hebreus, a proibição do consumo do porco vem do Velho Testamento. O texto permite comer, entre os animais terrestres, apenas "qualquer animal que tenha o casco fendido, dividido em duas unhas, e que rumine". Embora possua as unhas fendidas, o porco não cumpre o requisito da ruminância. Portanto, segundo a Bíblia, "este vos será imundo" para o consumo. Ainda hoje, comer carne suína é proibido e considerado tabu na comunidade judaica.

Mas e o resto do mundo? Nem só de proibições viveu o porco na História Antiga. Na Grécia, a carne suína era associada à potência física e consumida sem restrições. Já em Roma, não era raro encontrá-la à mesa em banquetes da nobreza, nas refeições de soldados ou mesmo em embutidos consumidos diariamente pela plebe. Esse consumo continuou popular na Idade Média, especialmente com o uso generalizado da banha, aparecendo nas grandes comemorações, de maçã na boca e sorrindo para os convidados — e nos pratos da população pobre, já que sua criação era fácil e barata.

Mesa de embutidos de porco, em Paris - Alex Guillaume/Unsplash - Alex Guillaume/Unsplash
Mesa de embutidos de porco, em Paris
Imagem: Alex Guillaume/Unsplash

E no Brasil? Os primeiros porcos desembarcaram no país já em 1532, vindos na expedição de Martim Afonso de Sousa a São Vicente. Com a chegada do porco, alimentos como a linguiça, o presunto e o toucinho logo passaram a fazer parte da culinária nacional. "Foram sempre objeto de importação porque o colonizador não dispensava sua participação nas festas ruidosas de comer e beber. (...) A carne de porco figurou desde logo no cardápio usual brasileiro", conta o antropólogo Câmara Cascudo em seu "História da Alimentação no Brasil" (1967). No início criado para subsistência, o porco produzia a banha que era usada no preparo de pratos — assim como na indústria de alimentos até a metade do século 20.

Entra carne, sai gordura. A partir da década de 1950, com a popularização da gordura vegetal no Brasil, houve uma forte campanha contrária ao uso da banha, que ajudou a reduzir drasticamente seu consumo. Assim, os criadores do país se viram obrigados a mudar o foco da produção. Passaram a importar, na década de 1960, raças como a americana Duroc e a inglesa Large White e, em 1970, chefiaram um processo de melhoramento genético do porco, que consistia na seleção e cruzamento entre as raças. Hoje, segundo a ABCS, a carne de porco brasileira tem 31% menos gordura, 14% menos calorias e taxa de colesterol 10% menor do que há 40 anos. "Deixou-se de fazer um animal que era fundamentalmente gordo para dar preferência à sua carne, com o porco passando a ter uma espessura de gordura muito pequena", explica ao TAB o presidente da associação, Marcelo Lopes.

Quem tem medo do porco mau? Enquanto, no mundo, a carne suína representa 40,4% de toda a proteína animal consumida, no Brasil, cada pessoa come 15,3 kg de carne de porco ao ano, contra 42,8 kg de frango e 39 kg de carne bovina, de acordo com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). Para Lopes, essa discrepância evidencia o preconceito que a carne sofre por aqui — onde, apesar de a produção ter se industrializado e obedecer regras sanitárias, o animal ainda é visto de forma negativa. "Além de ser associada à sujeira e à gordura, muita gente acha que a carne transmite cisticercose, uma coisa que acontecia quando os porcos comiam lavagem e restos deixados pelo homem."

Mas o que é verdade, então? Não existem evidências científicas de que a carne de porco hoje apresenta mais danos para a saúde do que a bovina ou de frango, afirma a professora de nutrição da USP (Universidade de São Paulo) Aline de Carvalho. A nutricionista aponta que cortes mais magros, como o lombo, são sempre preferíveis, e deve-se evitar comê-la frita. "Cortes de carne gordos, como coxa de frango com pele, picanha com capa de gordura e barriga de porco têm maior teor de gordura saturada. Se consumidos em excesso, aumentam o risco de doenças crônicas", diz a especialista ao TAB. O consumo excessivo de carne vermelha e processada, como linguiça ou salsicha, também eleva o perigo de desenvolver câncer e doenças cardiovasculares. De maneira geral, ressalta Carvalho, o consumo de carne no Brasil está bem acima do recomendável para a saúde. "Diminuir a carne vermelha e processada e comer mais feijão, cereais integrais e vegetais pode melhorar bastante a qualidade da alimentação do brasileiro."

Senhoras e senhores, o porco! Em 2019, a Casa do Porco, no centro de São Paulo, foi o único restaurante brasileiro a constar entre os 50 melhores do mundo no ranking da revista britânica Restaurant, desbancando favoritos como o D.O.M., de Alex Atala. Como o próprio nome indica, o estabelecimento do chef Jefferson Rueda serve pratos que levam um ingrediente em comum: a carne de porco. Para a cozinheira Eduarda Chevitarese, mineira do município de Santos Dumont, o restaurante é um dos maiores exemplos de uma tendência de valorização dessa carne na alta gastronomia. "A carne de porco não te dá status, é uma proteína barata. É importante que chefs famosos ajudem a difundi-la porque, além de ser saborosa, é culturalmente muito consumida em Minas e no Sul, mas não no restante do país." De acordo com o presidente da ABCS, que organiza ações e campanhas de conscientização sobre a carne suína, seu consumo cresceu 3 kg per capita nos últimos dez anos. "Numa população de mais de 200 milhões, já é um aumento absurdo."