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Como aromas e cheiros ajudam a explicar a história da humanidade

Unsplash/Arisa Chattasa
Imagem: Unsplash/Arisa Chattasa

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

14/08/2020 04h00

Pare por um segundo e tente identificar os cheiros que você sente agora. O produto de limpeza, os odores que vêm da rua, o xampu e talvez até um perfuminho compõem uma soma única, à qual só você tem acesso com essa intensidade neste momento. Cada indivíduo tem praticamente uma "digital" olfativa diferente — com uma combinação única de genes receptores de odor.

Os cheiros dizem muito sobre onde você está — pertinho do Rio Tietê, à beira-mar em Miami ou numa casa rural na Suíça. Também dizem muito sobre a nossa época — felizmente já não precisamos nos preocupar com o cheiro das latrinas sendo esvaziadas na rua, como ocorria em Paris, ainda no século 18. Dizem muito sobre quem somos e sobre quem queremos ser: a escolha de um perfume, por exemplo, costuma ser um reflexo da personalidade que se quer transmitir.

Apesar de ter sido considerado por séculos um sentido "menosprezado", mais recentemente há quem se dedique a estudar o olfato para entender sua relação com nossa cultura e sociedade, principalmente em um mundo em que controlamos minuciosamente os cheiros que sentimos.

O terceiro sentido. O mais "animalesco" dos sentidos é considerado bastante incompreendido — talvez exatamente pela falta de estudos na área. Isso tem mudado nos últimos 20 anos, segundo o sociólogo francês Robert Muchembled. Já no primeiro capítulo de seu livro "La Civilisation Des Odeurs" (A civilização dos odores, em tradução livre, sem versão em português), ele observa que o filósofo René Descartes relegou ao olfato a posição de "terceiro" dos cinco sentidos em "Meditações sobre Filosofia Primeira". Em 2014, pesquisadores da Universidade de Rockefeller, em Nova York, chegaram à conclusão de que os seres humanos seriam capazes de diferenciar mais de três milhões de cheiros. A empolgação foi rapidamente frustrada pela observação de que o estudo contou com apenas 26 voluntários e usou um modelo matemático falho para calcular a representatividade dos resultados na população.

Um pouco de Evolução. Quando o homem começou a andar com duas pernas, os olhos ganharam posição de destaque e nos ajudaram a navegar pelo mundo e a julgar o que era atraente, sem a necessidade de nos guiarmos pelo nariz. "Ser civilizado, portanto, é não ser mais um animal de olfato, é retrair os estímulos olfativos e mesmo assim se sentir incomodado com certos odores, em especial os excrementícios", compara em artigo a professora Salete Nery, do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), que pesquisa o tema desde 2013 e relata a dificuldade em encontrar bibliografia sobre o assunto. Pesquisas relacionadas ao olfato costumam ser mais voltadas ao mercado dos perfumes — para gente, para ambientes, para alimentos, e outros. Além disso, é provável que você tenha ouvido falar de uma ou outra pesquisa que relaciona o olfato a memórias ou sensações.

Bons tempos, maus cheiros. "A poluição de odores era geralmente causada por animais, já que as cidades e as vilas estavam repletas de cavalos, necessários para transporte, bem como galinhas, porcos e bodes buscando comidas nas ruas, mesmo em Paris", escreve Muchembled sobre o século 14. Foi só com o medo de epidemias que os animais (e consequentemente seus excrementos) foram retirados das cidades. Vale lembrar também que foi apenas no século 17 que "uma onda de repressão demonizando a metade de baixo do corpo humano varreu a sociedade francesa", observa o sociólogo. Cultivar jardins era, inclusive, uma forma de minimizar os maus odores da cidade, vindos não só dos animais, mas também dos excrementos humanos, jogados até mesmo pelas janelas para esvaziar as latrinas. Mesmo hoje em dia o saneamento básico está longe de ser regra. Em 2020, quase metade do Brasil não tem acesso à rede de esgoto.

Esgoto a céu aberto no bairro Terra Firme, em Belém (PA) - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress
Esgoto a céu aberto no bairro Terra Firme, em Belém (PA)
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Controle dos odores. O mau cheiro foi sendo associado a doenças, à morte e a outras sensações ruins. Com isso acumulamos cada vez mais produtos e maneiras de desodorizar o mundo. Mas isso não significa que a busca seja por ambientes inodoros, observa o especialista e consultor em perfumes Dênis Pagani, criador do site 1 nariz. A ideia é usar os odores para trazer bem-estar ou comunicar valores. "Hoje a gente tem uma tendência a controlar o cheiro onde dá. Tem uma extrapolação da vontade de ter cheiro em tudo, é uma explosão — cada loja tem um cheiro, o shopping center que abriga as lojas tem um perfume próprio, a gente toma banho, lava o corpo inteiro, tira todo o cheiro que o corpo tem e coloca um perfume depois...", avalia. Nery, da UFRB, concorda. "É uma odorização do mundo, a partir da racionalização dos cheiros. É um mundo repleto de odores — o carro tem perfuminho, o detergente, até absorvente tem cheiro —, mas odores controlados", afirma a professora.

Individualidade no ar. E como é que escolhemos esses odores (ou melhor, fragrâncias)? Pagani acredita que as pessoas procuram fragrâncias que ajudem a criar uma marca de individualidade, e o gosto por perfumes estaria bastante inserido na economia da atenção. "Os perfumes de uns dez anos para cá foram ficando muito fortes", observa ele. "Tem uma vontade de marcar seu território pela difusão, uma questão mais espacial. A demanda que mais chega para mim, nas redes sociais, é [a indicação de] um perfume que dure muito, um perfume que chegue, que todo mundo note, alguma coisa que capture a atenção das pessoas. São valores que a gente cultiva na nossa cultura ocidental." No Japão, por outro lado, ele observa que os cheiros preferidos costumam ser os mais discretos, quase que num respeito ao espaço do outro.

Brasileiro ama perfume. O Brasil já chegou a ser o maior mercado de perfumes no mundo em 2010 — só perdeu a liderança para os Estados Unidos por causa da crise, observa Nery. E, quando olhamos a fundo, o item é considerado especialmente importante nas regiões Norte e Nordeste. O Sudeste até gasta mais em valor absoluto, mas, proporcionalmente, fica para trás. A professora chama atenção para alguns dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018, do IBGE, que ajudam a entender esse cenário. Enquanto o rendimento familiar médio mensal no Norte é de R$ 3.451,73, no Nordeste é de R$ 3.379,28 e no Sudeste é de R$ 5.994,16, as despesas médias mensais com perfume nessas mesmas regiões são de R$ 59,02 no Norte, R$ 46,96 no Nordeste e R$ 29,68 no Sudeste. "Nossa primeira ideia é que perfume é uma coisa supérflua. Sendo assim, seriam as pessoas com mais dinheiro que gastariam mais com isso. Mas não é o caso", observa. Ela conta que um conhecido nascido no Sul se mudou para a região Norte e, ao matricular a filha na escola, ficou assustado ao perceber que perfume fazia parte da lista de materiais de higiene exigidos. "Quando fiz minha pesquisa [na Bahia] e perguntava a uma pessoa por que ela usava perfume, a resposta era: 'ué, e eu vou ficar cheirando a nada?' Ela quer dizer que ela só é a partir do momento que usa perfume. Não cheirar a nada é não ter significado", relata a professora.

De onde vem essa paixão? Cada cultura tem sua própria relação com os odores — que vem de rituais de povos originários, significados religiosos e também é introduzida em parte por colonizadores, como foi o caso do Brasil. Por aqui, Nery destaca o cheiro de alfazema — presente em alguns dos perfumes de maior sucesso, como Giovanna Baby e Thaty. Componente da água de cheiro usada nas lavagens de igrejas em Salvador no século 19, presente oferecido a Iemanjá, vista como proteção contra maus espíritos e doenças, a alfazema tem forte apelo emocional e nostálgico. "As pessoas não necessariamente se lembram de toda essa história, mas carregam o cheiro como memória. E é assim que o gosto vai se estabelecendo, vai ficando", diz Nery.

Discriminação. Ofensas raciais relacionadas aos cheiros — como 'budum', usado para descrever o mau cheiro em pessoas negras — ainda trazem uma relação preconceituosa e incorreta de suposta inferioridade biológica. "É uma forma de estigmatização que tem raízes profundas", diz Nery. Em seu artigo, a professora lembra que isso está ligado também a um recorte de classe — os negros costumavam ter trabalhos mais braçais, expostos a longas jornadas sob o sol, o que contribuía com a presença mais forte de odores naturais do corpo. Nery lembra ainda do filme "Parasita", que em diversos momentos faz uso do cheiro para retratar a diferença social entre as famílias. E ela questiona se esses preconceitos não estão na raiz da falta de estudos sobre o olfato, principalmente no Brasil. "Há uma relação íntima do olfato com as memórias e emoções. E mexer com emoções é se distanciar do mundo da racionalidade", observa. "Nós fazemos parte de um país que foi colonizado, que luta para se afirmar. Em que medida nós não deixamos de ver o olfativo como uma possibilidade de estudo exatamente por causa dessa nossa afirmação de lugar?"