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Por que a internet surtou com prato de arroz e feijão no MasterChef Brasil

Ana Paula Padrão é a apresentadora do Masterchef - Reprodução
Ana Paula Padrão é a apresentadora do Masterchef Imagem: Reprodução

Leonardo Neiva

Colaboração para o TAB

06/08/2020 04h00

Arroz, feijão com bacon, fígado acebolado e salada de repolho. Além de uma combinação que marca presença diariamente na mesa de milhões de brasileiros, foi esse o cardápio vencedor do primeiro episódio da nova temporada do Masterchef Brasil.

Devido à pandemia, o programa mudou seu formato e passou a premiar um cozinheiro por episódio, com um elenco diferente a cada semana. Negro e morador da Brasilândia, na periferia da zona norte de São Paulo, Hailton Arruda, de 29 anos, levou o troféu para casa ao vencer uma prova em que o desafio era cozinhar com ingredientes de uma cesta básica.

Além da polêmica gerada pelo novo formato — que desagradou parte dos telespectadores —, o prato também foi condenado nas redes sociais por sua simplicidade. "Pouco criativo", "limitado", "cotidiano" e "meia boca" foram os termos usados para definir o arroz, feijão e fígado de Hailton.

O diagnóstico de que o prato não é digno de vencer uma competição gastronômica seria também fruto de um preconceito dos brasileiros contra sua própria culinária?

Para a antropóloga e professora da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) Paula Pinto e Silva, sim. "Fazer o que ele fez, nesse tempo, nesse contexto, um prato super saboroso, é tão complexo quanto qualquer prato francês. A decisão dos jurados significa que eles sabem dessa complexidade. Inclusive é muito mais fácil fazer um risoto do que arroz, feijão, fígado acebolado e salada."

Silva também destaca que a culinária brasileira nunca chegou a ser valorizada durante nosso processo de colonização.

"Trazemos o nosso complexo de vira-lata para a comida. Nunca tivemos essa culinária como algo de que nos orgulhamos, até porque quem produzia a comida doméstica no Brasil eram escravizados — e hoje são, em parte, empregadas domésticas e cozinheiras. No contexto brasileiro, essa comida tem uma característica: ser muito igualitária. É o contrário do que somos, ou do que pensamos que somos."

A gastronomia como arte da preparação de pratos refinados só chegou de fato ao Brasil entre os séculos 18 e 19, quando a família real portuguesa desembarcou no Rio de Janeiro, trazendo ingredientes e cozinheiros europeus. "Ali se estabelece uma outra comida, considerada mais digna de ser exaltada. Nos cardápios do século 19, ninguém servia comida brasileira na hora do banquete. Serviam pratos à moda francesa, inglesa?"

Em seu "História da alimentação no Brasil", o historiador e antropólogo Câmara Cascudo (1898-1986), um dos principais estudiosos do folclore e dos hábitos alimentares brasileiros, conta uma anedota sobre Alberto Maranhão, governador do Rio Grande do Norte no início do século 20, que ilustra a importância dada historicamente à gastronomia francesa no Brasil — e o desprezo das altas classes pela comida nacional.

"Um prato levado à mesa em honra cerimoniosa devia ter nome francês ou não ser levado. Alberto Maranhão afirmava ter todas as coragens como governador, exceto apresentar um menu em português. Quando, num almoço aos visitantes eminentes, apareciam frutas brasileiras, eram rigorosamente 'les fruits tropicaux' (...) Em francês, tudo ficava bonito."

Arroz + feijão

A estrutura básica da alimentação na sociedade colonial não era nosso PF, claro. Segundo Silva, era composta por três ingredientes: farinha, feijão e carne-seca. Ao longo do tempo, esse tripé sofreu poucas mudanças e hoje ainda sintetiza o prato de todo dia no Brasil.

O arroz, que acabou por substituir a farinha nos grandes centros urbanos, ao longo do século 20, vinha do estrangeiro e era mais bem visto. "Aquele que comia arroz, feijão e carne era considerado mais civilizado do que quem comia farinha. Era até um motivo de vergonha, porque já se entendia que o arroz tinha mais status", explica a antropóloga.

Até hoje, não se sabe muito bem como o arroz chegou ao Brasil. Uma das principais teorias, de acordo com a pesquisadora e professora de história da gastronomia do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) Adriana Salay, diz que o produto servia de ração durante campanhas militares no país.

O conceito de alimento nacional que o arroz com feijão ganhou é bastante recente. "Em 1970, o consumo de arroz no Nordeste era muito pequeno, comparado ao da farinha de mandioca. Hoje, esse papel se inverteu. Nessa mesma década, o feijão carioca se popularizou, e é atualmente o mais consumido no país", conta Salay. "A enorme perda de variedade regional nesse período também contribuiu para que o arroz e feijão virassem alimento nacional."

Uma revolução caseira

Na década de 1980, uma leva de chefs franceses trabalhando no Brasil, entre eles Laurent Suaudeau e Claude Troisgros, deu início a um processo de valorização na alta gastronomia de ingredientes brasileiros como o cupuaçu, a jabuticaba e a mandioquinha. A experiência, no entanto, incorporava esses ingredientes à cozinha francesa, ainda uma das principais bases para técnicas e preparos na alta gastronomia.

Já no final do século 20, o chef paulistano Alex Atala abriu o seu cultuado restaurante D.O.M., onde usou como base a culinária regional, especialmente da região amazônica, para criar pratos requintados que chegaram a colocá-lo repetidas vezes em rankings de melhores restaurantes do mundo.

Silva destaca, porém, que mesmo Atala só passou a ser valorizado no Brasil depois de ganhar reconhecimento no exterior. "Se está na lista dos 30 melhores restaurantes do mundo, então vou lá conhecer, comer formiga saúva pintada de ouro." Ainda segundo a antropóloga, Atala foi responsável por "abrir uma avenida" e permitir que vários outros cozinheiros investissem em uma alta gastronomia predominantemente nacional.

Desde 2002, o chef Rodrigo Oliveira comanda o Mocotó, restaurante que começou como uma Casa do Norte, criada por seu pai na periferia da zona norte de São Paulo, quase 30 anos antes. Aplicando os conhecimentos adquiridos no curso de gastronomia e nas viagens que fez pelo país, especialmente para o Nordeste — seus pais vieram de Pernambuco —, ele fez inovações usando ingredientes e pratos tradicionais da culinária sertaneja.

"No começo, eu não tinha intenção de levantar uma bandeira. Era simplesmente o caminho em que tinha alguma expertise. Logo que comecei a faculdade, percebi que os preceitos da cozinha tradicional eram facilmente aplicáveis à nossa, o que não vinha sendo feito até então", conta o chef do Balaio IMS, aberto em 2017 na avenida Paulista, e do Mocotó, hoje considerado um dos melhores restaurantes da América Latina.

"Venho de uma família pernambucana, e só depois percebi o quão estigmatizada é essa cozinha, geralmente tratada como pesada, feia, grosseira, indigesta, pobre. E não é verdade, não tinha a ver com a cozinha que eu conhecia do próprio sertão e tampouco com a cozinha que eu fazia em casa."

Criado em 2016 pela chef Ana Luiza Trajano — que por mais de dez anos comandou o restaurante de mesmo nome em São Paulo — o Instituto Brasil a Gosto hoje trava uma luta para garantir que ingredientes e pratos nacionais sejam valorizados, desenvolvendo um trabalho de pesquisa, registro e divulgação da culinária brasileira.

"A Ana estudou gastronomia na Itália e lá viu como o italiano se identifica e defende sua cozinha. Ela comparou isso à realidade nacional, em que, apesar de celebrarmos a comida caseira, nas grandes comemorações, a tendência é ir a um restaurante francês ou italiano, raramente festejando com a comida brasileira", conta o chef Max Jaques, que atua no instituto como pesquisador.

Uma das linhas de pesquisa desenvolvidas pelo Brasil a Gosto acontece entre comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, em São Paulo, buscando registrar e preservar seus hábitos culinários. "Sei que é delicado falar sobre isso, pois sou um chef de cozinha branco, mas buscamos oferecer suporte e lançar um olhar bastante cuidadoso para a cozinha de origem quilombola", afirma Jaques.

Orgulho e/ou preconceito

Para Adriana Salay, que também é esposa de Oliveira, esse movimento de revalorização hoje está restrito a um nicho, composto por chefs que se deram conta da importância da gastronomia regional. "É um movimento que não está espalhado o suficiente para ter impacto em todas as faixas de consumo, mas puxado por pessoas com grande repercussão na mídia. Espero que se torne uma tendência, mas é uma briga enorme, principalmente contra os gigantes da indústria alimentícia", diz ao TAB.

"A gente ainda vê preconceito, mas muito menos. Não à toa, o Mocotó conseguiu ganhar destaque nacional e internacional", afirma Oliveira. "Tem uma safra tremenda de grandes chefs que trabalham com a cozinha brasileira, seja regional ou mais plural. Estamos seguindo num caminho de valorização."

O cozinheiro considera natural que se busque em restaurantes e concursos gastronômicos uma cozinha que fuja do cotidiano. "Eu não vi o programa, mas se você for a um concurso propor um prato de arroz, feijão e fígado à moda tradicional, tem que ser extraordinário. Acredito que a gente enxergue sim valor nessa culinária caseira, afetiva, e há muita técnica em cozinhar um feijão, um arroz perfeito, e fígado é super difícil de fazer. Mas, quando a pessoa vai a um restaurante, geralmente é para comer algo que ela não seja capaz de preparar em casa."

Para Silva, observar a culinária trivial com encantamento tem de vir de um reconhecimento, muitas vezes conquistado em prêmios internacionais, do que necessariamente de uma mudança de olhar sobre a culinária brasileira. "Se o Alex Atala fizer, ok. Se eu fizer no Masterchef, vão dizer que é simples demais."