Como funciona e se aplica a isenção de impostos a igrejas no Brasil
Está na mesa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) um projeto de lei que pede a anulação de dívidas tributárias das igrejas, verba acumulada após fiscalizações e multas aplicadas pela Receita Federal. Caso o governante católico dê sua bênção à proposta, o país abriria mão de cerca de R$ 1 bilhão. Trata-se de um texto aprovado pela Câmara dos Deputados em agosto, iniciativa do deputado David Soares (DEM-SP), filho do pastor evangélico R.R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, aliás, uma das maiores devedoras.
Se o projeto receber a assinatura de Bolsonaro, as organizações religiosas provarão que seguem fiscalmente beneficiadas no Brasil, onde a imunidade tributária já está garantida pela Constituição. Trata-se de um verdadeiro milagre no país que ocupa a vice-liderança no ranking das nações com maior carga tributária da América Latina, atingindo 33,1% do Produto Interno Bruto (atrás só de Cuba, que pega 42,3%), segundo estudo da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) divulgado em maio de 2020.
Mas o que é imunidade tributária? É um dispositivo previsto no artigo 150 da Constituição, que isenta de cobrança de impostos sobre patrimônio, renda ou serviços as organizações sem fins lucrativos, partidos políticos, igrejas, sindicatos e outros setores da sociedade. "Já a isenção tributária diz respeito ao perdão de tributos previstos em leis estaduais e municipais", explica Gustavo Lefone, especialista em direito tributário pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), coordenador tributário na BNZ Advogados.
E quem é beneficiado? Além dos citados anteriormente, donos de gráficas e editoras não pagam imposto pelos papéis utilizados em jornais, revistas e livros. Além disso, artistas e autores brasileiros não precisam dar seu quinhão ao Estado por seus "fonogramas" e "videofonogramas" (termos que se referem às gravações de faixas de disco e videocassetes, nos anos 1980, década em que foi promulgada a Constituição). Na era da internet, tiraram os impostos de e-books e leitores digitais, como o Kindle, mas estados como São Paulo decidiram tarifar Spotify e Netflix.
E como faz para não pagar imposto? Para cair nas graças da lei, a organização precisa obedecer a três requisitos: manter a contabilidade regular, aplicar toda a renda em benfeitorias sociais e formar uma sociedade sem fins lucrativos. Vale lembrar que a isenção só vale para bens registrados no nome da instituição.
De que impostos estamos falando? Protegidos pelo artigo 150 da Constituição Federal, templos de qualquer credo — do judaísmo milenar à novíssima Igreja Missionária do Kopimismo, criada em 2012 — estão livres de pagar IR (Imposto de Renda (IR), IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano), ITR (Imposto Territorial Rural), impostos sobre doações e IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores, desde que os bens estejam em nome da igreja. Serviços como taxa do casamento, curso de batismo e cerimônias diversas também se livram do ISS (Impostos Sobre Serviços).
Agora, que dívida é essa? O R$ 1 bilhão que o projeto de David Soares quer perdoar tem a ver com a cobrança da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), taxa devida à Receita Federal que não está prevista na imunidade. "As igrejas dizem que a cobrança da CSLL se trata de um enorme paradoxo: como o governo pode cobrar esse imposto sobre o lucro se as igrejas são instituições sem fins lucrativos?", reflete o advogado Igor Mauler, membro da comissão tributária do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O Congresso aprovou o perdão por meio de uma manobra apelidada por lá de "jabuti", que significa inserir dentro de um projeto de lei uma nova questão. A medida entrou no projeto de lei 1.581/20 do deputado Marcelo Ramos (PL/AM), sobre o pagamento de precatórios.
A questão se encerra como? Se Bolsonaro não assinar o perdão, as igrejas não precisarão pagar a dívida imediatamente, porque há ainda uma discussão no Supremo Tribunal Federal. Existe no STF um debate sobre os fundos de pensão, organizações sem fins lucrativos, que também possuem o mesmo paradoxo sobre a cobrança da CSLL. Caso o STF aprove o não pagamento da CSLL, certamente as igrejas vão "pegar carona" na decisão e pedir a isenção.
Qual o tamanho da imunidade? Somando tudo, as igrejas se livram de aproximadamente 95% dos tributos que incidem sobre os demais mortais. Restam pouquíssimas taxas, como IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados, mas somente em alguns casos, como embutidos em alguma compra ou se a igreja é dona de uma fábrica de um produto não religioso, como automóvel), Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública (Cosip) em alguns municípios e o tal CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). Os cofres públicos deixam de arrecadar cerca de 35% desse valor, segundo levantamento de Gustavo Lefone.
Quando começou a imunidade? A prática nasceu na Europa, no século 4. Nos 520 anos da história brasileira, nunca as igrejas precisaram pagar boa parte dos tributos. Em 1891, na Constituição republicana, houve a separação da igreja do Estado, estabelecendo-se a liberdade de culto e o casamento civil obrigatório. O texto previa que as associações podiam adquirir bens, mas não aliená-los. Apesar de não constar na lei, o estado não cobrava tributos. A imunidade entrou na Constituição em 1946 e seguiu inabalável em todas as outras versões: 1967, na emenda de 1969 e, finalmente, na atual, de 1988.
Que outros países isentam igrejas? "Todas as nações ocidentais que tiveram influência da Igreja Católica oferecem o perdão dos impostos, mesmo que não apareça em suas cartas magnas", explica o tributarista Igor Mauler. Países europeus são especialmente generosos com suas igrejas e com fiéis que querem fazer doações. Na França, a pátria do laicismo, templos possuem vantagens fiscais e o contribuinte pode deduzir de seu imposto de renda parte do valor das doações. Na Itália, há o "otto per mille", sistema em que o contribuinte pode doar 0,8% de seu imposto de renda para sua organização religiosa preferida ou a um programa de assistência social.
E há o caso alemão? O "Kirchensteuer" (imposto da igreja) vigora em países como Áustria, Dinamarca, Finlândia, Suécia, alguns lugares da Suíça e na Alemanha. Nesses locais, o frequentador de igrejas declara sua fé ao Estado e paga uma porcentagem de seus rendimentos ao governo, que repassa à igreja escolhida. Na Alemanha, a alíquota desse desse tipo de imposto pode chegar a 9% do IR. Com ele, o país arrecada cerca de 11 bilhões de euros por ano (equivalente a R$ 69,3 bilhões).
E nos EUA? Por lá existe uma lei que isenta de IR as instituições religiosas, beneficentes e científicas. Mas a Receita Federal fica de olho nelas, cobrando informações detalhadas sobre número de membros, líderes, cursos, valor de doações etc. Uma organização pode perder sua isenção se participar de campanhas políticas ou se fizer lobby legislativo.
Por que tanta gente defende a isenção? Esse perdão serve às igrejas como uma forma de garantir a liberdade de credo. "Sem essa verba, as entidades não conseguiriam manter seus diversos programas sociais, como assistências aos mais pobres, aos que lutam contra vícios, entre outras ações", explica Wilmara Loureiro Santos, sócia-coordenadora no escritório Nelson Wilians & Advogados Associados.
E o que pode mudar agora? O Congresso tem analisado várias pautas contra e a favor do perdão fiscal. Desde 2016, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania verifica a PEC 200/2016, proposta pelo então senador e hoje prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos). Ele pede para estender a isenção de IPTU aos imóveis alugados por templos. Na reforma tributária da equipe de Paulo Guedes, o projeto de lei 3887/2020 cria a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) para ONGs e entidades religiosas, e altera a legislação tributária federal. "Donos de templos milionários ostentam mansões, joias, carrões e não pagam sequer um real de IR, enquanto um microempresário sofre em equilibrar suas finanças com tantos tributos", completa Gisèle Suhett Helmer, professora de engenharia civil. Ateia e ex-frequentadora da Igreja Batista, ela conseguiu mais de 20 mil assinaturas em um mês para pedir a extinção da imunidade tributária das igrejas. "A bancada evangélica pode até sofrer um baque se o presidente não perdoar as dívidas de 1 bilhão de reais, mas dificilmente os templos perderão a sua imunidade, garantida por séculos", acredita Igor Mauler.
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