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Foro privilegiado: garantia constitucional ou privilégio à brasileira?

Manifestantes com faixa que pede o fim do foro privilegiado em ato na av. Paulista  - Amanda Perobelli/Estadão Conteúdo
Manifestantes com faixa que pede o fim do foro privilegiado em ato na av. Paulista
Imagem: Amanda Perobelli/Estadão Conteúdo

Marie Declercq

Do TAB

30/08/2020 04h01

Um dos dispositivos mais discutidos e criticados no Brasil é o foro privilegiado — uma garantia constitucional estendida a alguns membros do Judiciário, Legislativo e Executivo, que impede que sejam julgados pela justiça como cidadãos comuns.

A manutenção do foro privilegiado é questionada não só por juristas, mas também pela sociedade: sua aplicação ampla a políticos e autoridades públicas faz crer que ela sirva apenas como ferramenta para garantir que autoridades, que são, antes de tudo, servidores públicos, possam sair impunes de certas condutas.

São inúmeros os casos no Brasil em que se discutiu os limites dessa instituição. O desembargador que humilhou um guarda civil em Santos (SP), ao se recusar a usar uma máscara, foi afastado do cargo preventivamente e seguirá recebendo salário. Seu processo será julgado em um órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. No último dia 24, filhos e uma neta da deputada federal Flordelis (PSD-RJ) foram presos, denunciados pela morte de Anderson do Carmo, mas a polícia acredita que a própria deputada planejou e encomendou a morte de seu marido. Ela, contudo, não foi presa, pois goza de imunidade parlamentar — especialistas acreditam que ela deve ir a júri popular. Há ainda histórias mais antigas, como a do promotor Igor Ferreira da Silva, que matou a esposa, grávida em 1999 e foi julgado pelo órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O foro privilegiado também é especialmente lembrado em casos de corrupção cometidos por parlamentares ou membros do Executivo. Pedidos de extinção não são uma reivindicação rara em protestos brasileiros, seja da direita ou da esquerda. Para entender melhor como ele funciona, TAB conversou com Flávio de Leão Bastos, professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos na Faculdade de Direito Mackenzie e presidente da Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos.

O que é, então, o foro privilegiado? Na verdade, o nome correto (ou melhor, técnico) é foro especial por prerrogativa de função — embora "foro privilegiado" tenha se popularizado. Ele determina que certos cargos públicos possam ser julgados de forma diferente, em relação ao de um cidadão comum, e ser realizaria em instâncias superiores ou especiais.

Desde quando existe? O foro é uma herança direta da colonização portuguesa. Em Portugal, algumas autoridades gozavam de certos privilégios em processos judiciais. No Brasil, o foro privilegiado foi consolidado logo na primeira Constituição, em 1824. Criava-se a figura do Poder Moderador e estabelecia-se, no artigo 99, que a "pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada", e "não está sujeita a responsabilidade alguma". Também determinava que certos membros do governo tinham direito a julgamentos especiais.

Se é resquício do Império, não devia ter mudado? Na verdade, após a proclamação a República, a nova Constituição (1891) seguiu com foro privilegiado para a figura do presidente. Em 1934, a instituição se estendeu a membros do Judiciário, como ministros da Corte Suprema, do Tribunal de Contas, aos juízes federais e das Cortes de Apelação, e ainda, aos embaixadores e ministros diplomáticos, tanto para crimes comuns como nos de responsabilidade. Ao longo das décadas, o foro privilegiado foi sendo ampliado até chegar à Constituição Federal de 1988, onde encontrou seu ápice.

Então é um privilégio? Embora o instituto seja usado como se fosse um, não é privilégio: ele não é uma vantagem concedida a um grupo ou indivíduo, e está ligado à pessoa que o recebe. No caso do foro especial, trata-se de uma garantia constitucional ligada ao cargo público em si, e não a quem o ocupa. "É uma proteção à função e garantia de que haja certas liberdades que permitem que a pessoa exerça a função de forma correta", explica Bastos.

Quais cargos têm direito ao foro especial? Desde a promulgação da Constituição de 1988, tem direito não só o Presidente da República como parlamentares (deputados federais e estaduais e senadores), juízes federais e estaduais, desembargadores, promotores de justiça, ministros do STF, ministros nomeados pelo governo, além de prefeitos e governadores. Em 2015, a força-tarefa da Operação Lava Jato afirmou que mais de 20 mil detentores de cargos públicos têm direito ao foro privilegiado no Brasil. No entanto, dois anos depois, uma pesquisa feita pela Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), contabilizou mais de 43 mil membros do Judiciário que se valem dessa garantia.

Por que ele é importante? Por incrível que pareça, a garantia do foro foi criada para possibilitar que ocupantes de funções públicas possam ser responsabilizados devidamente, em caso de excessos. Além disso, o foro especial também garante que parlamentares e membros do Judiciário possam exercer suas funções com mais liberdade, sem medo de receber represálias de esferas públicas mais poderosas. "O foro existe, por exemplo, para que um parlamentar possa falar abertamente suas opiniões, representando seus eleitores, sem que seja acusado de cometer algum crime de opinião, como a difamação e injuria", explica o Leão Bastos. "A questão é que, historicamente, sempre foi muito comum que esferas mais poderosas ameaçassem e intimidassem quem denuncia essas coisas. O foro especial garante que este servidor possa ter uma proteção mínima."

O foro especial se aplica a todo tipo de crime? Depende. Uma decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, em 2018, limitou o foro especial para os 81 senadores e 513 deputados brasileiros, garantindo-o apenas em casos de crimes cometidos no exercício do mandato, com relação com o cargo. Na mesma linha, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) também determinou que governadores tenham foro privilegiado nos mesmos termos dos parlamentares. Isso explica o motivo de a deputada Flordelis, acusada de ser mandante do assassinato do marido, provavelmente ter que ser julgada pelo Tribunal do Júri, como ocorreria com um cidadão comum acusado de cometer um crime contra a vida. Ela não foi presa junto com os filhos porque sua função determina que não pode ser presa preventivamente, caso não seja uma prisão em flagrante (isto é, pega comentando o ato).

Ele é igual para todos os cargos? Segundo Bastos, cada cargo tem sua particularidade. Por exemplo, caso o Presidente da República cometesse um crime comum, este seria julgado pelo STF; no caso de um crime de responsabilidade (como vimos no processo de impeachment de Dilma Rousseff), pelo Senado Federal. Um desembargador ou um juiz de primeira instância é julgado por um órgão especial do Tribunal de Justiça referente ao estado ao qual ele pertence.

Foro privilegiado só existe no Brasil? Segundo um estudo feito em 2016 por Newton Tavares Filho, consultor do Poder Legislativo, o Brasil possivelmente é o país que mais ampliou essa garantia. Há exemplos parecidos em outros países como a Colômbia, Portugal, Áustria e Noruega, mas nenhum desses países abrange tantos cargos públicos como nossa Constituição. Na Alemanha, por exemplo, o presidente (que é diferente da primeira-ministra, Angela Merkel) será julgado pela Suprema Corte do país, caso seja aprovado pela Câmara.

Ele é garantia de impunidade? "O fato de ele ser tão ampliado é o que garante a impunidade de certas autoridades", explica Bastos. "O Brasil sempre conviveu com a ideia de que quem é autoridade pública está sempre acima de lei. É um país construído sobre privilégios, nepotismo e sobre a cultura de que quem é autoridade pública é intocável. É uma questão social e estrutural, e requer uma revisão imediata para acabar com isso."

Precisamos acabar com o foro privilegiado? Essa pergunta divide opiniões na comunidade jurídica e não possui uma resposta fácil. Há que defenda que a própria existência do foro especial é o que garante que não haja impunidade: se esse servidor público fosse julgado pela justiça comum, demoraria muito tempo até o julgamento acontecer. Existem os que pedem pela extinção completa dessa instituição jurídica. "O país estaria melhor se este foro fosse atrelado a funções de forma mais restrita e específica. Não é possível que o Brasil tenha mais de 50 mil pessoas com foro privilegiado por conta de função. Quem ocupa um cargo de autoridade pública é apenas inquilino de uma função cujo proprietário é o povo", frisa Bastos.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Ao contrário do que dizia na versão anterior desta reportagem, a Constituição Federal de 1988 não prevê foro especial de prerrogativa de função para vereadores. A informação foi corrigida.