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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fritaram o Borba Gato (e isso é bom)

Colunista do UOL

27/07/2021 04h00

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Incendiaram Borba Gato e todos passam bem.

No último final de semana, sob gritos de protestos contra o governo Bolsonaro, ativistas atearam fogo na estátua de Borba Gato. Posto ali desde 1963, por conta das comemorações do quarto centenário do bairro de Santo Amaro, a imagem, a avenida e a vizinhança são a prova de que São Paulo não deu certo.

A obra do Júlio Guerra mais lembra um bonecão do posto sem movimentos. A rua é prova de que os não-lugares existem para além dos livros de Marc Augé — e os prédios do entorno deixam claro que a genialidade da escola paulista de arquitetura não atravessou a cidade.

Defendo, assim como fez Marcelo Tas em suas redes sociais, que o bandeirante continue ali, inerte e chamuscado pela intervenção quente dos revoltados da Revolução Periférica que profetizam a lembrar que "a favela vai descer e não vai ser Carnaval".

Estátuas são baluartes da cultura material de uma sociedade. Quando criadas, conseguem materializar com concreto, ferro, tinta e argamassa, a visão de mundo, a maneira de pensar e agir dos homens de um determinado período histórico. No entanto, por vezes, as ideias mudam, caem em desuso, vão para caixão junto com os criadores, mas deixam suas marcas na paisagem da cidade.

Estátuas, monumentos e obeliscos carregam o senso (nesse caso, o contrassenso) de outras épocas. Para continuarem no espaço público, precisam conservar uma razão de existir (um reason-why, como falam os americanos) no hoje. Durante muito tempo, Borba Gato ficou conhecido na História pela bravura, coragem e capacidade de desbravar mundos desconhecidos — e pelo papel importante na consolidação dos limites territoriais brasileiros nos séculos 16 e 17, para além do Tratado de Tordesilhas.

A historiografia brasileira olhava para os bandeirantes como homens com perfil sertanista, apetite pela conquista do interior do país, forte papel civilizatório e com grande capacidade de construir vilas e pequenas cidades no meio do nada. São Paulo foi um desses povoados.

Foi justamente na década de 1960, quando a cidade assumiu a posição de capital mais rica e populosa do país, responsável pela geração de mais de 10% de toda riqueza nacional, que o dia do bandeirante foi lembrado e reforçado com uma série de monumentos espalhados por toda a cidade.

O Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, em pleno Parque do Ibirapuera, é de meados dos anos de 1950 — quando São Paulo já tinha certeza da potência econômica, cultural e social que detinha no cenário nacional. A estátua do Borba Gato é de 1962. Mas também é do mesmo período a construção do Palácio Bandeirantes, sede do governo estadual, inaugurado em 1965 na zona Sul da cidade. Estava na moda lembrar do DNA bandeirantes naquele tempo.

O atual fortalecimento das pautas identitárias, a criação de novos espaços de discussão e a maior participação política de populações periféricas no debate público acirraram o revisionismo do papel histórico dos bandeirantes. Hoje, para além do papel desbravador, sente-se a necessidade de marcar o papel sanguinário dos agentes históricos e suas ações contundentes na dizimação dos povos originários e de negros escravizados. Desse modo, atualmente, defende-se que não há nenhum motivo para exaltar a memória dos algozes — sendo que os descendentes das vítimas ainda sofrem com os efeitos da ação dos primeiros paulistas.

Foi aberta a disputa pelo significados da cultura material, da memória na História nacional.

O movimento é mundial. Nos últimos anos, inúmeros monumentos foram derrubados por manifestantes contrários à exaltação das memórias de escravagistas, ditadores e outros sanguinários em diversas cidades do planeta. Em junho de 2020, manifestantes derrubaram a estátua do traficante de escravos Edward Colston, em Bristol, na Inglaterra, em ensejo dos protestos contra a morte de George Floyd. A estátua de Cristovão Colombo também foi derrubada, incendiada e jogada em um lago por manifestantes na cidade de Richmond, nos Estados Unidos. Na Antuérpia, na Bélgica, por pressão da opinião pública, a estátua do rei Leopoldo 2º — responsável por um genocídio na República Democrática do Congo nos tempos coloniais — foi derrubada pelas autoridades locais.

O churrasquinho de Borba Gato não foi a primeira ação contra os bandeirantes na cidade. Em 2016, a estátua de Santo Amaro e o monumento do Parque dos Ibirapuera amanheceram cobertos de tintas coloridas — e abriram espaço para a instauração de ações judiciais e projetos de lei pedindo a retirada das obras da paisagem urbana de São Paulo. Em 2020, os protestos se repetiram. Uma dezena de crânios cenográficos foram deixados aos pés dos monumentos para lembrar a todos sobre o outro lado da história.

Tanto aqui quanto lá, a ação contra monumentos públicos causam arrepios nas autoridades e nos juristas que se apressam em criminalizar os protestos. Em entrevista recente à Folha de S.Paulo, Conrado Contijo, criminalista e doutor em direito penal pela USP (universidade de São Paulo), lembra que "atear fogo em monumento pode ser reprimido criminalmente, pois há crime de dano contra o bem público". E essa atitude, diz ele, "não está abrangida pelo direito de liberdade de expressão" tem pena estipulada pela Código Penal de seis meses a três anos de detenção, além de multa.

É preciso ter clareza que estátuas e monumentos são diferentes de praças, postes ou prédios públicos. Tratá-los como se fossem a mesma coisa é um erro. Qualquer ato contra um banco de uma praça ou um poste pode ser classificado como vandalismo porque inviabiliza a função do objeto que foi pensado e pago pelos contribuintes para melhorar a qualidade de vida no lugar onde vivem. Contudo, quando tomamos como crime a ação contra estátuas e monumentos, parte-se do pressuposto que a função de tais objetos é embelezar a cidade. E, quando avariados, o direito dos cidadãos é comprometido.

Isso é um erro. Esses objetos são colocados nas cidades com intuito de resgatar um tipo de memória, imagens e significados que interessavam à sociedade de um tempo, mas que não raro, vão de encontro com o conjunto de valores do hoje. Desse modo, defendo que os atos contra estátuas mundo afora, mais do que vandalismos, são estratégias de atualização de memória, trazem para o debate público a discussão sobre temas centrais à construção da sociedade e nos permitem repensar sobre o passado, questionar o presente e reinventar o futuro.

A fritura do Borba Gato reacende o debate sobre pautas identitárias, traz à tona a discussão sobre a memória do país e nos dá chance de repensar essa sanha paulista pela identidade bandeirante. É bom para nós. Mas, também, os atos dos últimos sábados, livraram a barra do criador da obra, Júlio Guerra. Com o debate quente, esquecemos do horror estético provocado pela escultura. Bom para eles.

Se for para congelar a memória e o debate, é melhor que Borba Gato e os outros deixem de fazer parte do espaço público e encontrem paz no acervo privado de algum quatrocentão saudosista. Afinal, como coisas públicas, para existirem, as estátuas precisam caminhar em pleno debate junto à sociedade. Esse é o único jeito de permanecer vivo depois de morto.