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Ex-ministro do TSE: 'Acoplar impressora em urna é abrir porta para fraude'

Servidor do TRE-AM lacra urna eletrônica para votação nas eleições suplementares do Amazonas, em 2017 - Roberto Jayme/Ascom/TSE
Servidor do TRE-AM lacra urna eletrônica para votação nas eleições suplementares do Amazonas, em 2017 Imagem: Roberto Jayme/Ascom/TSE

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

26/07/2021 04h01

A lisura do voto eletrônico tem sido questionada, de tempos em tempos. Recentemente, a base de apoio bolsonarista, movida a polêmicas, abraçou essa desconfiança e passou a questionar seu uso, pedindo a volta do voto impresso no País.

Para especialistas, desacreditar o sistema eleitoral não tem qualquer fundamento que não seja a intenção de tentar desestabilizar, por antecipação, as eleições de 2022.

Ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e atual presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral, o jurista Henrique Neves da Silva avalia como "muito difícil" rebater alegações "genéricas e desprovidas de provas materiais e objetivas". "A intolerância em relação ao sistema de votação atual parece ser mais um sentimento do que uma real necessidade técnico-científica, principalmente porque não há relato de nenhuma fraude que tenha comprovadamente ocorrido nas últimas eleições", argumenta ele, ao TAB.

Como a urna eletrônica foi inventada? Curiosamente, a legislação brasileira já tratava da hipótese das "máquinas de votar" em diversos artigos do decreto 21.076 de 1932, especialmente no artigo 58. "Nas seções eleitorais onde se use a máquina de votar, serão observadas essas regras: a) o voto é dado na máquina, dispensando-se a cédula", diz trecho da lei. Mas a história moderna e concreta da urna remonta a 1985, quando o TSE implantou um cadastro eleitoral informatizado. Em 1995, graças a uma comissão técnica comandada por pesquisadores do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e do CTA (Centro Técnico Aeroespacial) de São José dos Campos (SP), o sistema foi desenvolvido. Chamava-se originalmente CEV (Coletor Eletrônico de Votos). Nas eleições de 1996, para que o sistema eletrônico fosse testado, o voto foi eletrônico em apenas 57 municípios. A abrangência só se tornou total no país em 2000.

Mesários fazem a zerézima da urna eletrônica na UFAM para votação nas eleições suplementares do Amazonas, em 2017 - Roberto Jayme/Ascom/TSE - Roberto Jayme/Ascom/TSE
Imagem: Roberto Jayme/Ascom/TSE

É verdade que ela funciona off-line? Sim, e isso é bom. Cada urna eletrônica é um terminal autônomo de coleta de votos: ela tem bateria suficiente para funcionar por aproximadamente 10 horas, em caso de falta de alimentação de energia, e funciona de forma desconectada. "A urna eletrônica é um microcomputador com poucas funções que, basicamente, permitem a coleta e armazenamento dos votos, bem como a divulgação instantânea do resultado apurado, ao término do horário de votação. Ela não pode ser indiretamente hackeada porque não está conectada à internet ou a qualquer outra rede ou equipamento", explica Silva.

O que garante a segurança do voto? Segundo o TSE, a urna eletrônica tem mais de 30 mecanismos de segurança, entre códigos criptográficos, lacres, logins e verificações no protocolo. "Todas as operações que são realizadas na urna, desde a função de ligar e desligar, são registradas e mantidas em um arquivo que pode ser sempre auditado", diz Silva. Os votos ficam impressos em um arquivo eletrônico chamado de Registro Digital do Voto, que também pode ser verificado. Partidos políticos e representantes de instituições nacionais têm direito de verificarem cada uma das linhas de programação "para confirmar a inexistência de nenhum código malicioso", de seis meses antes da eleição até o momento em que o código "é compilado e lacrado, em cerimônia pública". "A partir daí, é emitido um resumo digital do programa que permite conferir, antes e depois da votação, se o software utilizado em qualquer urna é o oficial", ressalta o ex-ministro Silva.

Mas nunca houve fraude? Uma evidência de sua segurança é que, mesmo sendo um sistema em uso há 25 anos, nunca houve nenhuma comprovação de fraude. "Considerando a legislação e a possibilidade de contratação de auditorias para a realização da contagem pelos próprios partidos políticos, a ausência de provas de fraude equivale à comprovação da segurança do sistema eletrônico de votação e apuração", diz ao TAB o jurista Leopoldo Soares, professor de Direito Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Ou seja, se houvesse fraude, ela seria facilmente comprovada de forma robusta e técnica — e não estou falando de fotografias tiradas no momento da votação por eleitores já sugestionados por um discurso negacionista, até porque o registro do voto por fotografia é ilegal), com a potencialidade de anulação das eleições." Soares afirma ainda que há "uma enorme contradição" no discurso daqueles que foram eleitos pelo sistema eletrônico ao acusarem, sem comprovação, a insegurança do sistema de votação e apuração.

Tem teste? Na véspera da eleição, algumas urnas são sorteadas e encaminhadas para um centro de verificação. "No dia da eleição, técnicos e fiscais dos partidos políticos podem ali simular as condições reais de uma votação ao longo de todo o dia, com a filmagem de cada voto inserido na urna e, ao final do dia, no horário normal do encerramento, confirmar que o resultado apurado corresponde com aquele esperado", conta Silva.

O deputado Aecio Neves (PSDB-MG), no plenário da Câmara dos Deputados - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress
O deputado Aecio Neves (PSDB-MG), à dir., no plenário da Câmara dos Deputados
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Dá para fazer recontagem? Quando a votação de fato termina, cada urna apura imediatamente os votos. O presidente da seção imprime um relatório, cujas vias são distribuídas aos fiscais dos partidos e também afixadas no local de votação. A apuração é feita de forma digital, com os dados contidos na urna gravados em um cartão que é encaminhado a um local de transmissão, onde eles são criptografados e enviados ao TSE. Mas cada fiscal de partido, por exemplo, pode conferir se os números oficiais batem com aqueles da cópia impressa de sua seção. É possível solicitar uma auditoria — o PSDB fez isso em 2014, quando Aécio Neves perdeu para a petista Dilma Rousseff por margem apertada, no segundo turno. "Essas análises foram feitas a partir da verificação e auditoria dos programas utilizados nas eleições, em especial o Registro Digital do Voto, que foram conferidos e auditados pelos técnicos contratados pelo partido", ressalta o jurista. "Para esse tipo de auditoria, os interessados podem utilizar os próprios programas da Justiça Eleitoral ou qualquer outro programa por eles produzidos ou adquiridos."

Como é a apuração? O processamento eletrônico dos votos é certamente mais rápido e mais confiável do que a contagem manual. "Eu costumo fazer uma analogia com o uso da calculadora: para contas complexas, utilizamos a calculadora porque confiamos no software que processa eletronicamente o cálculo que desejamos, e o faz de forma consideravelmente mais rápida e precisa", diz Soares. O mesmo acontece com as urnas eletrônicas. A apuração das cédulas de papel demoraria alguns dias, principalmente as eleições federais, porque exigem registro e contagem manual voto a voto de todos os eleitores do Brasil, diferentemente da apuração eletrônica, que é extremamente rápida, apresentando o resultado em algumas poucas horas.

No papel, ia custar mais? Além da agilidade da apuração, facilidade do processo e segurança até hoje incontestável jurídica e tecnologicamente, a urna eletrônica representa também uma economia aos cofres públicos. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, estimou que retroceder para o voto impresso representaria um custo de R$ 2 bilhões para o país. A discussão vem à tona porque tramita na Câmara dos Deputados uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que tornaria a impressão do voto obrigatória no país.

O que diz a PEC? De autoria da deputada federal Bia Kicis (PSL-RJ), a proposta estabelece que, "no processo de votação e apuração das eleições, independentemente do meio empregado para o registro do voto, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor". Essas cédulas seriam depositadas automaticamente em urnas indevassáveis que poderiam ser auditadas. A nomenclatura "voto auditável" é um sofisma. Hoje, todo e qualquer voto já é auditável.

São apenas os bolsonaristas que querem? Não. A proposta tem defensores também em outros espectros políticos. O presidenciável Ciro Gomes (PDT) tuitou, em maio, que apoiaria a adoção de urnas eletrônicas equipadas com impressoras. "Não somos contra o voto eletrônico. Queremos a auditagem do voto eletrônico, a possibilidade de ter recontagem", argumentou ele, endossando ideia do presidente do seu partido, Carlos Lupi. O presidente do PSB, Carlos Siqueira, também já defendeu o voto impresso.

Em que pé está a PEC? A proposta está sendo deliberada por uma comissão especial da Câmara dos Deputados. Os maiores partidos posicionaram-se contra, mas os que defendem o voto impresso conseguiram transferir a votação para agosto. Se passar na comissão, a PEC vai à votação no plenário — são necessários dois terços dos votos para aprovação.

Mas a ideia é acoplar uma impressora à urna eletrônica, mantendo o voto digital? Ou retroceder para as cédulas de papel? "O texto da PEC não é muito claro, o que, em si, já traz as dificuldades inerentes", aponta Silva.

Mais segurança? Silva diz que, no cenário mais realista, ou seja, urnas eletrônicas com impressão em papel, a eleição se tornaria menos segura. "Acoplar uma impressora significa abrir uma porta a mais na urna, o que reduz a segurança, porque qualquer porta permite a saída e a entrada de dados", comenta ele. "Seria ainda necessário planejar toda a logística e pessoal envolvido para armazenamento e segurança das urnas com os votos físicos."