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Por que Cuba vive uma 'tempestade perfeita' para protestar contra o governo

Protestos de 11 de julho, em Havana, Cuba - Alexandre Meneghini/Reuters
Protestos de 11 de julho, em Havana, Cuba Imagem: Alexandre Meneghini/Reuters

Edison Veiga

Colaboração com o TAB, de Bled (Eslovênia)

22/07/2021 04h01

Logo na entrada do Museu da Revolução, no centro histórico de Havana, há um mural batizado de Rincón de Los Cretinos. Ao lado de uma caricatura do ex-presidente norte-americano Ronald Reagan (1911-2004), a legenda diz "obrigado, Reagan, por ajudar a fortalecer a revolução". Em espanhol, inglês e francês.

George Bush (1924-2018) também foi "homenageado" — em seu caso, "obrigado por consolidar a revolução". A George W. Bush, o agradecimento é por "tornar irrevogável o socialismo".

Desde que a revolução cubana tirou do poder o ditador Fulgencio Batista (1901-1973), os Estados Unidos se tornaram o "inimigo". E o embargo econômico imposto pelos norte-americanos, é claro, buscou sufocar Cuba pelo dinheiro. Ou pela falta dele.

De que forma isso explica os movimentos que têm tomado as ruas de Havana nos últimos dias? E por que só agora? A explicação está numa mistura inédita de ingredientes — da crise venezuelana à saída dos Castro do poder, passando pela internet, pelo fim do câmbio duplo e, claro, a pandemia de covid-19.

"Não se pode buscar explicações simplistas para a complexa realidade cubana. A origem dos protestos nas principais cidades cubanas parece ter origem na crise econômica severa dos últimos anos, agravada com a pandemia de 2020-2021, que tornam ainda mais grave a escassez de bens essenciais no país, como alimentos, itens de higiene e combustíveis", afirma ao TAB o jurista e cientista político Enrique Carlos Natalino, pesquisador da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e professor da PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais). "Mas há outras questões a serem analisadas, como a falta de liberdade política, a ineficiência estatal e a crescente desilusão das novas gerações com a mítica da Revolução Cubana."

Natalino aponta que pode ter ocorrido "um curto-circuito" na relação entre Estado e sociedade, "com consequências ainda difíceis de se mensurar".

Economicamente, o que mantém Cuba? Cuba exporta charutos, açúcar e serviços médicos (o programa Mais Médicos é um exemplo), entre outros ativos. Principalmente para a China, que compra 38% do total, mas também para a Espanha (10,5%) e vários outros países. Desde o embargo norte-americano, em 1961, a ilha socialista caribenha passou a depender do apadrinhamento externo da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), extinta em 1991. "China, Rússia e Leste Europeu eram os três principais modelos de transição que Cuba poderia seguir a partir da derrocada do socialismo real e da União Soviética nos anos 1990. Abertura econômica e reforço do controle político, no caso chinês. Fachada democrática com liberalização da economia, no caso russo. Abertura econômica e política, no caso do Leste Europeu. O caminho escolhido por Fidel Castro não foi nenhum desses: manteve o comando político monolítico nas mãos do Partido Comunista Cubano e promoveu mudanças econômicas mínimas", pontua Natalino.

Governo Cuba Havana comício manifestantes  - Yamil Lage / AFP - Yamil Lage / AFP
Imagem: Yamil Lage / AFP

E daí? Com a derrocada soviética, em vez de se abrir ao capitalismo democrata, como ocorreu com o Leste Europeu, o regime de Fidel Castro (1926-2016) passou a ser extremamente simpático ao turismo. Dólares tornaram-se bem-vindos. Uma moeda nova foi criada (o CUC), com câmbio dolarizado, em paralelo aos pesos cubanos. E com a ascensão de Hugo Chávez (1954-2013) na Venezuela, Cuba ganhou um parceiro comercial importante em se tratando, literalmente, de um combustível para a economia: o petróleo.

Como foi que se chegou ao fundo do poço? A Venezuela já estava em grave crise. E a pandemia fez com que 2020 tenha sido um ano nulo para o turismo. Cuba viu seu PIB despencar: o país registrou -11%. Para piorar, as remessas de dólares de cubanos que vivem nos Estados Unidos foram suspensas. "Cuba depende muito de uma economia paralela, advinda do turismo e da remessa de dólares", afirma ao TAB o historiador Victor Missiato, professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília e pesquisador na Unesp (Universidade Estadual Paulista). "Essas duas fontes foram prejudicadas, pois o turismo praticamente ficou estagnado e, em junho de 2021, o governo cubano restringiu a remessa de dólares."

Por que falta dinheiro em circulação? No início de 2021, o governo cubano decidiu extinguir o CUC e deixar o peso cubano, na cotação de 24 para 1 dólar, como única moeda oficial. Isso provocou uma inflação nos preços para os moradores locais. Sem as remessas, que injetaram cerca de US$ 30 bilhões na economia cubana, na última década, a situação degringolou. "Restringir o dólar para poder equilibrar o valor de sua economia no mercado internacional foi uma medida drástica", explica Missiato. Milhares de cubanos dependem dos envios de dólares para poderem comprar produtos. Como alguns desses produtos foram dolarizados, criou-se uma dificuldade muito grande para manter a circulação de mercadorias na ilha. Na chamada economia paralela, o resultado dessas ações foi uma elevação importante na inflação.

Por que só agora? "Cuba vive um problema econômico e social. Econômico porque é um país pobre que não consegue produzir dentro do próprio país iniciativas empresariais para que a economia gire. O regime socialista, com suas limitações, cria barreiras para a circulação de dinheiro e de riqueza", afirma ao TAB o cientista político Márcio Coimbra, ex-diretor da ApexBrasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos). "Além disso, há problemas na agricultura, com a fraca safra do açúcar, e no turismo, com a pandemia." Socialmente, a internet possibilita tanto uma informação que não depende dos canais oficiais quanto a mobilização, via redes sociais.

E o governo nessa história? É outro ponto a ser considerado. O ditador Fidel Castro tinha mais habilidade para gerir crises assim. "Ele era um símbolo da revolução, e isso, para os cubanos, trazia um simbolismo importante", pontua Coimbra. O irmão, Raúl Castro, que governou Cuba a partir de 2008, carregava um pouco dessa aura. Desde 2018, está à frente do país Miguel Díaz-Canel. "Mas não podemos nos esquecer da forte capacidade de reação e repressão do regime cubano, que ataca de forma muito brutal as manifestações e qualquer tipo de sublevação contra o regime, com prisões arbitrárias, tortura? É algo que consegue manter o regime de pé ainda hoje."

Cuba vai ser tornar democrática? O recado das ruas será ouvido? "Muitos analistas falam em uma 'primavera cubana', em referência à Primavera Árabe, ou no começo do desmoronamento do regime que governa Cuba desde a Revolução de 1959", comenta Natalino. "Creio que ainda é muito cedo para traçar esse cenário. A força do aparato policial e militar ainda é forte, dando ao regime condições de conter eventuais demonstrações nas ruas e de bloquear o acesso dos cubanos à internet." Mas uma coisa parece certa. Na defesa do regime, a ladainha repetida é a mesma que data dos anos 1960: o bode expiatório se chama EUA. E para os que defendem o socialismo caribenho, sobreviver servirá para "fortalecer" ainda mais o discurso da revolução.