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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tá liberado aglomerar? A real é que, na retomada, ninguém sabe nada direito

Colunista do TAB

25/11/2021 04h01

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Passei o final de semana com uma angustia sem fim, com frio na espinha e o estômago embrulhado, com vontade largar tudo e dar um telefonema para Átila Iamarino e para Margareth Dalcomo com uma pergunta simples: pode? Tá liberado?

Para quem não sabe, os epidemiologistas e virologistas dominaram os blocos de opinião dos principais veículos de comunicação do país nos últimos tempos. Cada qual tomava o palco com informações valiosas sobre a gravidade da pandemia, os riscos e uma cartilha com o novo código de comportamento esperado daqui para frente.

Os cientistas ocuparam o vazio deixado pelo tresloucado Ministério da Saúde de Jair Bolsonaro e nos encheram os ouvidos com três comandos básicos: evitem aglomerações, usem máscara, higienizem as mãos com sabão e água ou álcool em gel com frequência.

A cantilena foi fundamental para que a tragédia pandêmica não fosse ainda maior. Mas, depois de tanto tempo, com mais de 60% da população brasileira totalmente vacinada, um passeio rápido pelas redes sociais revela que estamos vivendo o boom das aglomerações.

De norte a sul, ricos e pobres, os mais jovens ou os muito experientes, amontoam-se como gado nos shows dos cantores preferidos ou nas festas de casamento já tantas vezes adiadas. Tudo sem máscara, sem teste ou controle, com muito perdigoto para todo lado e aquele bafo no cangote para manter o clima.

Pode? Tá liberado? — continuo a me perguntar.

Margareth Dalcomo, sem titubear, diz que não. Em entrevista recente ao jornal O Globo, a pneumologista lembra que, apesar de já ser possível vislumbrar alguma saída para o imbróglio, os mandamentos da onda viral devem ser mantidos pelo menos no curto e no médio prazos. Máscaras e tubinhos de álcool em gel vão fazer parte de nossas nécessaires ainda por muito tempo.

A angústia compartilhada por aqueles que decidiram ficar em casa ou aproveitar a retomada a doses homeopáticas, com maior segurança, não se dá por conta do desejo de retomar a rotina pré-pandemia, da ânsia de se ver cercado de gente ou encurralado no meio de uma aglomeração.

O mal-estar sentido por alguns não vem do FOMO (Fear Of Missing Out, medo de perder alguma coisa), mas do temor de que você possa ser a "última viúva da pandemia" — como bem definiu Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro. Isto é, alguém incapaz de ler o contexto, em descompasso com a realidade, fora da lógica do mundo.

Se você também está se sentindo assim, não se preocupe, você é normal.

Ao contrário de grandes catástrofes que se impõem sobre a vida cotidiana, mudam de uma vez só a realidade e a maneira com que nos relacionamos, as ondas virais vão se espalhando pelo planeta de forma gradativa e chegam a cada um nós em um momento único, distinto dos outros. Em geral, só nos damos conta de que estamos diante de uma pandemia grave quando a rotina é rompida de tal forma, com tamanha força, que somos obrigados a abrir mão de projetos futuros e a única preocupação do presente é permanecer vivo. O hoje engole o amanhã.

Como a quebra da experiência cotidiana é sempre vivida de forma individual, cada um de nós embarca no mundo da pandemia em um momento específico, o que gera sempre um descompasso. Em março de 2020, era comum ver gente da mesma família com uma relação completamente diferente em relação ao vírus: alguns ultra-noiados, outros achando que tudo não passava de uma gripezinha.

A saída de uma pandemia segue a mesma toada. Depois de estudarem os documentos históricos e os relatos sobre a peste bubônica e a gripe espanhola, os historiadores nos lembram que ondas virais perdem força do mesmo jeito que aparecem: do nada.

Jean Delumeau, em "História do Medo no Ocidente", conta que, na Itália Medieval, assim que os cortejos fúnebres voltaram a atravessar as cidades apinhados de gente, os moradores das avenidas saíam às janelas para festejar com enorme alegria a retomada dos rituais em sociedade. É como se cada enterro fosse uma carta, uma mensagem, a comunicar a todos que, apesar dos pesares, a vida estava em plena retomada.

A dinâmica social após um surto epidêmico aacontece aos solavancos de uma geringonça atrapalhada, em que cada parte do maquinário parece caminhar para um lado, enquanto outra segue para outro canto. Nessas horas, sem rumo, todo mundo está certo e errado ao mesmo tempo.

Afinal, se as mortes causadas pela covid-19 nunca estiveram tão baixas e a transmissão parece controlada, não deveríamos ter o direito de nos aglomerar? Por outro lado, se a cobertura vacinal nos protege do pior e já temos mais gente vacinada aqui do que nos Estados Unidos, onde a vida parece normal, não deveríamos abrir mão das máscaras aqui também? Há consenso sobre o fim do recolhimento? Quando será? Podemos confiar nas autoridades de saúde agora?

Ninguém sabe. Sigo em casa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL