Os sacodes de Vivi
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O primeiro chacoalhão de Viviane Ketelly Ferreira me acorda:
Quem tem poder e dinheiro não vai ceder. Então a gente que é pobre tem que ir lá e tomar. Calma, não precisa arregalar os olhos assim. Estou falando de direitos. Eu nasci aqui, a Constituição é a mesma pra mim e pros meus colegas de faculdade que moram em Alphaville. Então eu vou lá e tomo os direitos que são meus. De que maneira? Fazendo exatamente o que eles não querem: seguindo em frente sem desistir. Eles adorariam que eu desistisse. Toda manhã eu saio de casa achando que vai ter uma faixa pendurada no poste escrito DESISTA bem grande. Mas podem espernear o quanto quiserem, porque eu vou ser dentista, sim.
O segundo tranco me soa familiar:
Vivo e trabalho na periferia de Carapicuíba e estudo na Vila Nova Conceição, bairro chique de São Paulo, em uma faculdade particular. Entrei pelo Enem, como bolsista do ProUni. Eu sempre quis trabalhar na área da saúde, mas cresci com uma palavra marretando na minha cabeça: "impossível". Até meus professores no colégio, em vez de incentivar, jogavam água fria: "odonto? Você pode tentar, mas é muuuuito difícil". Aí eu olhava pro lado e via meus pais — ela diarista, ele chapeiro numa lanchonete — completando o ensino médio junto comigo, no supletivo, e pensava: Bom, pra gente nunca foi fácil mesmo...
O terceiro safanão me enfurece:
Tenho uma teoria: como se tornou um pouco mais fácil pros pobres estudarem, parece que a raiva dos ricos cresceu. No semestre passado, por exemplo, eu não pude fazer as disciplinas de laboratório e clínica porque só de material eram R$ 7.000. Nos semestres anteriores eu me virei como deu. Usei todos os limites de cartão de crédito disponíveis, o meu, o da minha mãe, o do meu tio, os de alguns amigos. Dessa vez não foi possível, porque estou pagando as faturas ainda. Vou fazer essas disciplinas mais pra frente. Aí uma colega de classe me sugeriu: "Se você não pode comprar o material, por que não tranca a faculdade, faz hora extra no trabalho, junta dinheiro e depois volta? Quem sabe volta até pra outro curso, administração ou pedagogia, que não tem esse custo tão alto pra você?" Ela não trabalha. Ouço muito essas coisas lá. Quando tem assembleia de estudantes pra discutir aumento das mensalidades, eles dizem que o valor subiu porque a faculdade está recebendo bolsistas demais. Eu entendo a raiva deles. São realidades muito diferentes. Eu conheço um pouco da deles, porque a minha mãe limpa a casa deles, não é? Mas eles não fazem ideia da minha. Saio de casa três horas mais cedo pra ir pra aula, e sei que, quando estou na metade do caminho, lendo em pé no ônibus e no trem o material da aula, muitos deles estão acordando. E quando estou trabalhando na pizzaria até meia-noite, uma da manhã, eles estão estudando em uma mesa bonita de home office com uma caneca de café do lado. Uma vez, uma garota falou uma palavra esquisita na aula, eu não entendi e perguntei o que era. Era uma marca de bolsa famosa, parece. Riram de mim. Mas não me ofendi, porque uma bolsa com marca é algo muito fora do meu dia a dia, dos meus pensamentos. Bolsa, pra mim, só precisa carregar as coisas.
O quarto solavanco me emociona:
Eu tenho 28 anos. Devo me formar com 30. Não é o que a sociedade espera nem o que eu gostaria. Aos 30 eu queria estar trabalhando, com a carreira estabelecida, ter uma casa. Mas qual alternativa eu tenho? Não me formar? Desistir, como eles querem? Never. Eu vou me formar. Vai demorar mais, mas eu vou. É uma ponte, sabe? Não é uma escada. Eu não penso em subir, eu quero é atravessar. E agora existe essa ponte. Ela é esburacada, meio bamba, mas é uma passagem sobre o abismo. Antes não tinha, agora tem. O que eu acho que existe do outro lado da ponte? Independência, autonomia. E viagens pra Bahia e pra Disney, que eu morro de vontade de conhecer. Pobre só conquista autonomia estudando. Eles podiam pelo menos parar de balançar a ponte querendo que eu caia.
E o quinto sacode, enfim, me devolve a esperança no Brasil:
O comecinho da estrada no outro lado vai continuar esburacado, sei disso. Enquanto muitos vão se formar já com um consultório montado, eu vou ter que seguir lutando pra conseguir o meu. Acho bom, até. Quero trabalhar com saúde pública. Montar um sorriso saudável e bonito pra quem tem dinheiro é só uma estética a mais, uma bolsa de marca com nome esquisito. Pra quem não tem pode ser a chance de mudar de vida, ganhar confiança e autoestima pra fazer uma entrevista de emprego, força pra seguir em frente. Além do mais, tenho um compromisso com quem vem depois de mim. Na periferia, tem muito exemplo ruim. As pessoas, principalmente as crianças, precisam saber que existe outra realidade possível. Elas precisam acreditar nisso. E eu quero ser apontada na rua pelos vizinhos e ouvir eles dizerem: "Olha lá a Viviane, se formou dentista. Tá vendo como dá?"
.........
Viviane Ketelly Ferreira, 28 anos
Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.
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