A contagem regressiva de Nelson
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O vírus espalhou silêncio e melancolia na rua Quintino Bocaiúva, no centro de São Paulo. Os vendedores das joalherias, aqueles que da calçada abordam gente com cara de noivo querendo comprar aliança, nem gritam mais. Acima das máscaras, seus olhos caçam apenas o bote certeiro, ninguém tem força ou esperança pra desperdiçar.
Tarde cinzenta. Vai chover.
A velha Casa das Arcadas parece um bom abrigo.
Numa esquina do primeiro andar, contornando a escadaria de mármore, a modorra dos dias cobre as prateleiras e as vitrines da Forniquartz, loja de peças e assistência técnica de relógios do Nelson Kakuda. É tanta poeira.
Dos dezesseis relógios de parede à vista, um dá a hora certa, mas só o Nelson o enxerga. Fica de frente pra ele, de costas pros clientes. Dos demais, um está sem os ponteiros. Os quatro com mostrador de frutas no lugar dos números marcam o padrão arreganhado de exibição: dez pras duas. No violino são 16h. Na árvore de Natal, 18h. A corujinha desistiu dos minutos: só o ponteiro menor tonteia entre o XI e o XII. De resto, o tempo se exibe tão variado quanto o estoque de pulseiras, pinos, bobinas, pilhas e miudezas bem miudinhas.
— O que é o tempo, Nelson?
— Ah, mas que pergunta!
— Você mexe com relógio, achei que gostaria de falar sobre o tempo.
— E eu lá sei disso. Foi tudo tão corrido que eu acho que não tive... tem-po de pensar a respeito.
— Esse cartaz da Swiss Army atrás de você diz que "é tempo de viver".
— Pra quem ainda tem tempo, né? Pra quem ainda conta pra frente. Depois de certa idade a gente passa a contar ao contrário. Conta o tempo que resta. Eu devo ter uns 15 anos. Daqui a pouco vou ter 14. A contagem agora é regressiva.
— E o tempo passa mais rápido hoje ou quando você era mais jovem?
— Ah, hoje. Muito mais rápido. Pular dos 17 pros 18 e ser independente levou uns dez anos. Nossa, como demorou. Custou demais. Mas agora a sensação é que fiz 50 na semana passada e na próxima já completo 70 sem ter passado pelos 60.
— Deu tempo de você fazer tudo que sonhou?
— Acho que sim, porque nunca tive expectativas muito altas. Sempre fui assim, moderado. Um provérbio japonês diz: se você quer caminhar 50 metros, então faz o cálculo pra caminhar 200. Assim, quando chegar nos 50 ainda estará indo. Se fizer o cálculo pros 50, quando chegar nos 20 metros já vai estar cansado. Meu pai sempre repetiu esse provérbio. Olha a inteligência desse negócio. É pra gente continuar andando, né? Porque a vida não é chegar. É andar.
— Um escritor uruguaio chamado Eduardo Galeano definiu a utopia desse mesmo jeito que você.
— Uruguaio? Não sei não, hein... Acho que é mais coisa de japonês.
— Qual a parte mais difícil de consertar um relógio?
— A parte de fora: o público. Gente apressada demais. Cada vez mais apressada, nossa senhora. Acham que relógio se conserta no mesmo dia. E não é bem assim.
— Como é?
— Bom, depois de identificar o defeito e arrumar, vem a etapa mais importante, que é testar. Preciso pôr o relógio no pulso e ver o funcionamento. Se atrasa, eu abro e adianto um pouquinho. Visto e testo mais um pouco. Aí ele adianta. Abro de novo e atraso um pouquinho, mas menos do que eu tinha adiantado. Assim vai até ficar quase perfeito, porque perfeito relógio mecânico nunca fica. E pra fazer tudo isso precisa de quê?
— De quê?
— De tempo.
— E paciência, imagino.
— Paciência eu tenho. Sem paciência não se faz esse serviço. Não se faz nada, né? Quando a gente abre uma caixa de relógio pulam molas e parafusos de meio milímetro. Se não respirar fundo e se acalmar, tá perdido. Eu não me afobo. Me afobava um pouco quando trabalhava de sushiman no Japão. Na juventude morei três anos lá. Aquela preocupação deles com a apresentação dos pratos me deixava ansioso. É um trabalho de paciência também, mas no relógio tem uma vantagem: ninguém quer ver o que eu fiz, tá dentro, escondido. Então a gente trabalha em paz. Dou valor pra paciência, sabe? Trabalhando uns 35 anos nesse ramo acho que foi isso o que aprendi de mais importante: a ser paciente e encontrar o lugar certo das coisas. Porque na hora de montar o relógio pode acontecer de você colocar o parafuso comprido no lugar do curto. Aí já viu. Ele enrosca em outras peças e o relógio fica louco. Tudo tem o seu lugar. Mudar certas coisas de lugar dá problema.
— Você gostaria de mudar alguma coisa de lugar atualmente?
— Meu casamento. A relação com a mulher não tá muito boa. Não tá legal.
— Onde é que tá enroscando?
— Ela tem problema de ansiedade, depressão. Toma remédio controlado. Tem dia que ela tá bem, tem dia que tá mal. Quando não reclama, xinga. E quando não xinga, grita. Às vezes ela até acorda feliz. Aí vê a torneira pingando e tudo muda. De repente! Isso acaba com o nosso dia. Então eu vivo nessa expectativa: "o que será que vai acontecer hoje?"
— Já pensou em se separar?
— Passou da hora, né? Eu não posso mais ficar sozinho, nem ela. Então vamos nos aturando. Precisava ser diferente, a gente tinha que ser companheiro, mais agora do que no começo. Mas deve ser difícil pra ela também. Tá sempre irritada, invocada, e desconta de quem tá perto — no caso, eu.
— Essa instabilidade dela você não sabe consertar...
— Ah, com relógio é bem mais fácil... Sei onde estou me metendo. Em casa eu vivo sobressaltado, porque não sei o que me espera. Às vezes tenho vontade de não voltar, ficar por aqui num hotel. O problema nem é o mau humor dela, é a mudança tão grande e tão rápida de humor. Com relógio não tem isso. É mais como naquela música, todo dia tudo sempre igual.
A chuva desaba, lavando o asfalto, as placas de aluga-se e outros vazios na Quintino Bocaiuva. São cinco pras seis. O Nelson baixa as portas e toma o rumo de sua tempestade particular.
Nelson Isao Mizuno Kakuda, 70 anos
Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.
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