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Trombadas

Os encantos do Universo

O doutor Universo Miguel Julião: "O que eu pensei da vida, e nunca pensei coisas grandes demais, só poeirinha cósmica nessa vastidão, tudo deu certo" - Christian Carvalho Cruz/UOL
O doutor Universo Miguel Julião: 'O que eu pensei da vida, e nunca pensei coisas grandes demais, só poeirinha cósmica nessa vastidão, tudo deu certo'
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

09/02/2023 04h01

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O Jaçanã, bairro onde eu nasci e cresci, fica mais bonito nos dias nublados. O sol exagera as cores, as casas, os bares, as igrejas, ilumina demais as certezas — e o Jaçanã não é disso. O Jaçanã é improvável. De modo que prefiro ele cinza, com algum espaço, algum tempo e alguma licença pra imaginar. Se dou a sorte de estar aqui depois da chuva, quando tudo é turvo e memória, é aí que eu entro em casa, essa casinha que faz anos mora só dentro de mim.

Hoje caiu um pé d'água logo cedo, o céu ficou baixo, chumbo, e eu estou aqui parado diante do consultório do meu antigo dentista, um homem amável chamado Universo. Entro ou não entro? Vou entrar. Tenho umas improbabilidades pra tratar com ele:

Doutor, como é ser o Universo?

Trombadas Jaçanã - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu sempre tive a impressão que ter esse nome é uma bênção, traz coisas boas. Muito poderoso. O que eu pensei da vida, e nunca pensei coisas grandes demais, só poeirinha cósmica nessa vastidão, tudo deu certo. Tem também o fato de um nome assim não deixar as pessoas me esquecerem. Como é que esquece um dentista preto de nome Universo? N' tem como, é muito marcante. Mas se não esquecem pelo lado bom, podem lembrar pelo lado ruim e aí lascou. Já pensou se dou uma anestesia errada? Uso palavras que magoam? "Universo, aquele da mão pesada? Volto mais lá não". Mas tenho a mão e a alma levinhas, daí que lembram mais de mim com cortesia, eu acho.

Nunca sofri chacota, nem menino. Na escola eu tinha a desvantagem que ninguém podia responder chamada por mim, porque os professores sabiam quem eu era, o único nome que eles guardavam. De resto convivi bem com o Universo. Tão bem que passei ele pro meu filho. Ele também é Universo. Universim, como a gente, mineiro, trata lá em casa. A minha mulher fala que não, mas foi ela que pediu pra colocar. Em Uberaba, de onde eu vim, tinha um tenente da polícia que chamava João Universo. Universo sobrenome ou nome de guerra, eu nunca soube. Depois tive um paciente Universino. Quando ele preencheu a ficha eu falei: Ah ocê tá me gozando! Mas Universo, Universo mesmo, somos raros.

Trombadas Jaçanã - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

E por que você é o Universo?

Eu nasci em casa, no Prata, na verdade, que é uma cidadezinha pegada a Uberaba. Uma parteira, dona Joana Gouveia, ajudou minha mãe. Ela tinha um filho Universo, médico, mas que morreu moço num desastre. Aí, a dona Joana, a primeira pessoa a me ver nesse mundo, porque nos outros não posso garantir, pediu à minha mãe: "Dê o nome de Universo nele". Minha mãe assentiu.

Dos oitos filhos de Francisca e Belarmino eu sou o único com nome exótico. Meus irmãos são Geraldo, Agnaldo, Maria de Lourdes, João, Magda, Sebastião e Valdir. E eles não chamam de Universo. Chamam de Boi, porque eu sempre bebi muita água. "Esse menino parece um boi de tanto que bebe água." Foi isso. Eu sou Universo porque a parteira pediu. Nesse fim de ano tirei uns dias de descanso em Fortaleza e teve um show de stand up no hotel. E o Universo ocê sabe, atrai. O comediante saiu do palco, caminhou entre as mesas, passou por todo mundo e veio direto, diretim em mim. "Qual é o seu nome?"

Nessas horas, ao contrário da maioria das pessoas, eu não respondo de cara. Eu preciso levantar, tirar a carteira do bolso, pegar o RG e aí sim: Universo, pode conferir. Daí pra frente o espetáculo correu à minha custa, quer dizer, à custa do meu nome. Nós rimos pra burro, eu e minha mulher. E quando eu telefono pra agendar exame, reservar passagem, qualquer coisa? Dou o nome e quem atende devolve contrariado: "Senhor, por favor, eu preciso do nome pessoa física, não da pessoa jurídica." Tô dando, uai. Eu chamo Universo.

Como era o universo do Universo no Prata?

Pequeno. O pai empregado numa indústria de leite e a mãe, doméstica. A cidade, de primeira, porque se ocê engatasse a segunda já saía dela. A nossa casa, menor ainda. Um quarto do pai e da mãe, outro das irmãs. Os filhos homens dormiam onde dava, um por cima do outro. Mas vivíamos felizes. Um dia, de ver que eu era paixonado nos livros, nos cadernos, o irmão mais velho falou que a gente devia mudar pra Uberaba atrás de "mais amplitude pro Universo". O pai concordou. Lá, sem o trabalho na companhia de leite, ele foi pedreiro, guarda-noturno, carroceiro, um homem muito trabalhador. A mãe lavava roupa pra fora e fazia pastéis pra eu vender na rua. Eu tinha um cadernim, pequenim assim, onde anotava as penduras, que a turma pagava só aos sábados. E repara: o mundo dá voltas mas a gente é o que foi criança. Mesmo dentista eu mantive o cadernim. Ainda tenho pacientes que pagam por mês, e eles nunca atrasam. Mas aí, com 14 anos eu arranjei serviço numa torrefação de café e as estrelas, vamos dizer, o Universo se mexeu pra me fazer dentista.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Foi assim? Coisa do céu?

Claro, uai. O que não é? A nossa casa era muito longe da torrefação. Eu fazia o trajeto a pé e não tinha condição de voltar pra almoçar. Levava uma marmitinha. De lá, de noite, ia pra escola. Fazia só uma refeição por dia. Eu gostava do trabalho, mas ficava tenso. Era muita responsabilidade, ocê imagina, um neguim de 14 anos cuidando sozim da torra do café que era considerado de ótima qualidade, um orgulho na cidade. Mas eu era meio atrevidim e o salário era bom, ajudava bem em casa. Só que nessa rotina eu não me alimentava direto e caí doente. Desenvolvi uma anemia profunda. O irmão mais velho levou num médico que era espírita, um sujeito interessante, ele olhou e a primeira coisa que falou foi assim: "Universo, a vida não vai ser ruim cocê não, pode sossegar essa alma aí". Eu acho que ele viu medo e aflição na minha cara. "O seu caso é de desnutrição. Demora um pouquinho mas o ocê recupera. Sua vida vai ser boa."

Naquela época eu era doido em filme. Pedia vale pro gerente na torrefação pra ir no cinema. O pai ficava brabo, menino, tinha que ver. Então, ouvindo o médico dizer que a vida ia ser boa comigo eu fiquei achando que meu futuro era ser um astro. Eu vou ser um Peter O' Toole, um Johnny Weissmuller, um Steve Reeves. Será? Isso mudou completamente meu pensamento sobre mim. Comecei a achar que era coisa do nome, que ele carregava coisas boas. Pôxa vida, o Universo é tão grande, cheio de beleza, de milagre, deve mesmo sobrar coisa boa pra mim. Fico emocionado, nunca tinha contado isso pra ninguém. E eu emociono fácil com quem tem palavras boas pra oferecer pros outros, como o médico fez comigo. Mas aí juntou a anemia com um entrevero que eu tive com a dona da torrefação e eu concluí que as coisas boas que o Universo reservava pra mim dependiam de que eu estudasse, único jeito.

Que entrevero foi esse?

A patroa pediu pra eu levar um vestido dela na costureira que ficava no caminho de casa. Mas nesse dia eu furei o pé num prego e não pude voltar caminhando. O gerente deu dinheiro pra condução e falou: "Deixa o vestido que eu levo de bicicleta". E o cara não me perde o vestido? Isso foi numa sexta-feira. No sábado acharam o vestido e devolveram. Mas não deve jeito dessa dona me perdoar. Me mandou embora. "N' foi ocê que perdeu mas a responsabilidade era sua." Depois o filho dela pediu pra eu voltar e eu disse que dava mais não. A minha mãe já tinha trabalhado de lavadeira pra mesma patroa e ela destratava muito minha mãe. Eu pensei pra mim: Se eu volto eu perpetuo esses destratos. Foi com minha mãe, foi comigo, vai ser com meus filhos. Eu preciso interromper esse negócio. Como é que eu faço? Só tinha um caminho: escola. Eu já gostava mesmo, falei: Vou me jogar nesse mundão aí, estudar, formar e sair, que o universo aqui ficou apertado demais. Eu brinco que virei dentista por causa de um vestido e um prego. Mas a verdade é que foi por causa do futebol. Fui jogador profissional, o que possibilitou pagar a faculdade.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Como é que é?!

Ocê n' sabia não? Meus irmãos todos jogavam na várzea. Eu gostava mas não ligava muito. Minha paixão era a escola. Mas um dia fui ver eles jogarem, faltou gente e me chamaram pra completar o time. "Entra, Boi. A família inteira joga, impossível você ser perna-de-pau". Aí o Universo conspirou a favor. Dali um tempo eu tava no Nacional, que era um dos três times profissionais da cidade que disputavam o Campeonato Mineiro. Comecei de lateral-esquerdo apesar de ser destro, às vezes ia improvisado de beque central ou de volante. Passei a ter dois salários: um no clube e outro no jornal, onde eu trabalhava de entregador, linotipista e até revisor. Sobrava um dinheirinho mas faltava tempo pra estudar.

Aí eu fui pro Uberaba, que era o time mais forte, com um salarinho melhor e deu pra deixar o jornal. Mesmo assim era corrido. Eu só conseguia ir nos treinos porque um grande amigo que fiz na faculdade, o Osmundo, ele era filho de fazendeiro e tinha carro, levava e buscava. Osmundo, procê ver como é. Grande amigo, um coração inigualável. Ele fala que se nós não fôssemos dentistas podíamos ser dupla caipira, Osmundo & Universo. Mas eu joguei contra esses cobras todos no Mineirão: Nelinho, Jairzinho, Toninho Cerezo, Éder, Palhinha, que dava cotovelada adoidado, Paulo Isidoro. Reinaldo, nossinhora! O Reinaldo do Atlético eu nunca vi nada parecido. Tinha o Dirceu Lopes, do Cruzeiro, que deslizava no campo, não era futebol o que ele praticava, era surfe. Mas o Reinaldo eu vou te falar. Ô possuído. Tinha uma gana de marcar gol, uma vontade. O Reinaldo não precisava do campo inteiro pra jogar. Só um espacim do tamanho do corpo mes' e ele botava a bola pra dentro. Complicadimais da conta. Sofri com ele, mas era bonito de ver. Mas na época o time dos sonhos era o Cruzeiro. Teve uma semifinal que eles ganharam da gente de 4 x 2 no Uberabão e no dia seguinte um jornal da capital escreveu: "Nem o Universo para o Cruzeiro."

Joguei futebol profissionalmente quatro anos. No último, nós ficamos em terceiro no estadual e fomos disputar o Campeonato Brasileiro. Aquilo me desestabilizou. Passamos a treinar em dois períodos, de manhã e à tarde, e eu comecei a perder aula na faculdade. Naqueles dias, um zagueiro chamado Zé Carlos, companheiro de time, um crioulo enorme, muito bom jogador, passou a me aporrinhar: "Ma ocê só joga futebol caus' desse nome esquisito. Ocê é grosso, feio, baixinho, não joga nada. Pra lateral do Uberaba dá pro gasto, mas quem vai entrar no consultório de um dentista preto, feio desse jeito e de nome Universo? Eu fui me aborrecendo, perdendo treino pra ir pra faculdade, até que uma tarde o treinador, seu Ilton Chaves, deu um ultimato: "Universo, ocê tem que escolher: ou a bola ou o boticão".

O Osmundo tinha passado lá no campo pra se despedir, que tava indo pra fazenda do pai dele passar o mês. Eu olhei em volta, pensei e quer saber d'uma coisa? Ô Osmundo, peraí que eu vou cocê. Escolhi o boticão e larguei o futebol pra sempre. Quer dizer, depois aqui no Jaçanã ainda brinquei bastante no Guapira, o Leão da Zona Norte. Até o sub-60 eu fui, mas eles não criaram a categoria sub-70, encostei de vez.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

O que é o Jaçanã pra você, doutor?

Eu cheguei no bairro em 1979. Fiquei 20 anos naquele consultório em cima da padaria, onde ocê ia. Na sala de espera tinha um pôster de um macaco de touca de banho escovando os dentes, lembra disso? Quando mudei pra cá a minha mulher não deixou trazer. Sinto falta do macaco. Bão, um dia eu notei que esse sobrado aqui estava fechado fazia tempo. Fui tomar um café na padaria e chamei o Perna. Ocê lembra o Perna, que vendia bilhete de loteria e tinha uma perna só? Então. Ele tava sempre por aí, conhecia todo mundo e eu pedi pra ele: Ô Perna, quando tiver alguém no sobrado ocê me avisa, faz favor?, que eu quero comprar ele e mudar o consultório prum lugar maior. "Deixa comigo, doutor". Uma semana depois esmurram a porta. Era o Perna, esbaforido, suado, não conseguia nem falar. Calma, Perna, sentaí e toma uma água. "Doutor, o proprietário do sobrado tá lá, acabou de chegar". O Perna, com uma perna só, tinha subido quarenta e tantos degraus de escada pra me avisar. Isso pra mim é o Jaçanã, entendeu?

Meu maior orgulho de dentista é ir nos congressos nesse Brasil afora e dizer que meu consultório fica no Jaçanã. Eu nunca quis estar noutro lugar. Os bairros chiques da cidade não têm a ver comigo. Eu sou um homem simples, periférico. Jogava com a camisa 3, não com a 10. E a cidade grande magoa as pessoas, deixa elas solitárias. O Jaçanã, que é uma espécie de cidade pequena dentro da maior, é grande de outro jeito. O meu universo é do tamanho da grandeza do Jaçanã.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Frustração por ter trocado a bola pelo boticão?

Nenhuma. Juro por deus. O futebol foi só pra custear a faculdade. Eu amo ser dentista. Tanto que aposentei faz tempo e não consigo parar. Agora, tem aporrinhação também. Menos que no futebol, mas tem. Faz pouco tempo uma paciente trouxe a mãe dela, uma senhora de posses, refinada. Tinha doze implantes pra fazer: "Eu quero eles branquinhos, da cor do seu jaleco", ela falou. Eu ponderei que era melhor fazer num tom mais adequado à idade dela e aos dentes que ela ainda tinha. Ela insistiu: "Não, eu quero eles bem brancos". Caí na burrada de fazer do meu jeito, do jeito que eu achei que ficaria melhor pra ela e pra mim, porque se um colega visse aquela boca com dente branco intercalando dente amarelo e soubesse que era paciente minha eu ia ficar arrasado. Mas não teve jeito. Quando dei o espelho na mão dela, minha mãe do céu: "Não foi isso que eu pedi. Eu pedi dentes brancos como o seu jaleco". Tive que tirar tudo, refazer e agasalhar o prejuízo. "Agora sim, era isso que eu queria". Pois era o que eu não queria, pensei comigo, essa boca fantasiada pro Carnaval. Então tem dessas coisas, o Universo em desencanto, como diria o Tim Maia. Mas também tem paciente que eu atendo faz 40 anos, vem a família toda, e quando vou pra Uberaba trago queijo, manteiga, doce de leite pra eles. Andei trazendo pro seu pai e pra sua mãe umas vezes.

E, doutor, é verdade que quem extrai o dente do siso perde o juízo?

Ocê que me diz, uai. Extraí os seus quatro. Deu um trabalhão danado, porque um deles estava atravessado. Esqueceu?

Como esquecer, né? Mas acho que não perdi o juízo, pena. Teria sido bom ficar com um pouquinho menos. Quem sabe eu tivesse perguntas melhores pra fazer. Me ocorreu uma última, vai, e já me desculpo pela falta de originalidade: o que o Universo quer da gente, doutor?

Ah mas aí não tem outra resposta pra dar não. Eu fico com o que o Pelé disse na despedida dele no Cosmos. O que o Universo quer da gente é amor, amor, amor.

Universo Miguel Julião, 68 anos

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.