Os Frankensteins de Daniel
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Eu sempre fui o torto da família. O pé-rapado. O arrebentado, molambento, esfarrapado do caralho. Tipo as minhas luminárias, que eu construo com restos, sobras, descarte. Aí junto tudo, dou uma forma, um significado, uma utilidade e chamo de Meus Frankensteins. Vai ver eu faço elas pra juntar meus pedaços, sei lá. Ah, mano, é tanta coisa que nem sei o que te dizer. Bom, pra começar não é uma marca, é um projeto. Chama Brocca em alusão à ferramenta que eu mais uso no ateliê, a broca da furadeira. Porque na criação de uma luminária tudo depende de onde e como eu vou furar pra passar o fio que vai na tomada. Às vezes é um furo só, às vezes são vários. Eu furo capacete, extintor de incêndio, ferro de passar, câmera fotográfica, um monte de tralha, cê pode ver aí. No início pensei em pôr o nome de Grosa, que é outra ferramenta que eu utilizo bastante. Mas a grosa raspa, né?, e aí eu achei pouco. Eu não quero só raspar. Eu quero furar. Penetrar. Atravessar. Então ficou Brocca, tem mais a ver.
O problema é que não dá pra viver disso. Pra piorar, agora tô sem ateliê. Eu tinha um espaço da hora, um subsolo nos Campos Elíseos, parecia Berlim, mas a Craco tomou conta e passei um mês sem conseguir entrar. Aí fechei e trouxe os bagulhos pra casa, onde só consigo fazer peças pequenas. Juntou isso com um momento meu de repensar a vida, rever umas coisas, e o resultado é que ando aflito pra caralho. Quer dizer, eu sou aflito, mas tô mais. Não tem rodeio não, cara: o que eu preciso nesse momento é de estabilidade financeira, uma renda fixa, pronto, acabou. Só que pra isso eu vou sair de casa chorando todo dia. Eu gosto de trampar, sou pau pra toda obra. Às vezes, pra inteirar o mês, trabalho de garçom, faço carreto de Kombi e outros bicos. Mas eu sei como é: pra ter a estabilidade financeira que eu preciso, pra realizar com a Isa, minha companheira, os nossos planos, vou ter que enfrentar o que eu mais odeio no mundo: a rotina e a repetição. Isso me mata, acaba comigo. Talvez eu precise morrer mesmo, pra ressuscitar de outro jeito, renascer noutro lugar.
Trazendo pros Meus Frankensteins, eles têm isso: esse lance de serem processo e resultado da minha imensa vontade de não me repetir. Meu barato é dar conta do desejo de criar algo que não seja igual ao que eu já fiz ou que alguém já fez. É assim que eu tenho paz. Meus amigos dizem: "Dani, faz umas peças seriadas, mais simples, com escala, pra vender mais". Eu amo meus amigos, mas porra! Vou fazer o que os outros querem, pra atender à lógica que me mata, e abrir mão do lugar onde eu consigo respirar? Nem fodendo. Se for isso não vai mais chamar Brocca. Vai chamar qualquer merda, Asfalto Ltda. E vou te dizer: eu só tomo no cu por ser assim, mas é meu jeito de estar no mundo. Acho que sou uma pessoa angustiada. A palavra certa é clandestino, vai. Desde que eu me entendo por gente eu me sinto um clandestino. Tenho escrito CLANDESTINO bem grandão numa placa pendurada na minha sala, depois a gente sobe lá pra você ver. Clandestino da música do Manu Chao, tá ligado?
"Perdido en el corazón
De la grande Babylon
Me dicen el clandestino
Yo soy el quiebra ley"
Foda. Esse assunto de grana você tem que gostar. Meu irmão por exemplo. Ele nasceu no mesmo cortiço que eu: três cômodos na Vila Guilhermina, zona leste. Ele dormia em cima no beliche, eu embaixo. Mas ele desde pequeno tinha cifrão nos olhos. Entrou pro mercado financeiro, hoje tá no Canadá, tem casa, carro, barco e o cacete. Já eu me encantava com o quartinho de ferramentas do meu pai, uma oficinazinha onde ele mexia com tudo. Meu pai é foda. A gente tá meio afastado hoje, ele não me procura, eu também não procuro ele e a gente fica assim. Mas ele é autodidata em tudo: elétrica, mecânica, hidráulica, marcenaria. De profissão foi gráfico a vida inteira. Ele desenhava e imprimia as embalagens dos brinquedos Estrela. É até engraçada essa parada, porque, quando você imprime qualquer coisa em gráfica, até ajustar a máquina e as tintas, as primeiras impressões ficam no que a gente chama de "fora de registro". As cores não casam, sai meio zoado e aquilo vira descarte. Então meu pai trazia essas embalagens fora de registro pra forrar o chão pro nosso cachorro e assim eu cresci conhecendo todos os brinquedos Estrela. Só pela embalagem vazia. Nunca tive nenhum, mas conhecia todos.
Meu tesão eram os fazeres manuais. Com 13 anos eu entrei no Senai pra fazer mecânica geral. Tornearia, máquinas industriais, essas coisas. Mas quando terminei o curso, não consegui emprego na área e fui trampar de office boy num banco. Eu levava e trazia papelada pra Bolsa de Valores. Rolava muita grana ali. Aí você pega um moleque pobre da ZL com dinheiro de menos e sonhos demais, porra, vira presa fácil. Eu me deixei seduzir pelo que nunca esteve em mim. Os caras falavam em plano de carreira, mostravam outros moleques novos que tinham começado de boy e tavam lá sentados na mesa da corretora de ações ganhando muita grana, e eu adolescente, formando a personalidade, caí na conversa. Porra, já tô aqui dentro, meu irmão já tá aqui dentro, eu vou ganhar grana também. Não sei explicar direito, mas eu não ficava à vontade ali, não sabia me portar. Eu não me reconhecia. Acho que foi o germe da minha clandestinidade. Eu voltava pra casa no busão pensando "Não é possível que eu precise ser outra pessoa pra ter um salário e conseguir viver com dignidade".
Aí veio a internet e mudou tudo. Pirei com a possibilidade de conhecer outros mundos. Vi que podia existir uma salvação. Fui fazer faculdade de sistemas de informação. Faculdade particular. No intervalo das aulas os caras me chamavam pra comer uma pizza e eu falava "Brigado, mano, já comi". Mentira. Eu tava morrendo de fome, mas não tinha dinheiro. Mesmo assim me formei e fui me enfronhando no mundo out Vila Guilhermina. O desassossego sempre ali comigo, companheiro fiel, aquela sensação de "que caralho eu tô fazendo aqui?"
Aí decidi ir pra Londres. Eu gostava, ainda gosto, de rock, punk, a cena Mods, tudo isso que a internet tinha me mostrado, e inventei que precisava de uma experiência fora do país. Na verdade, olhando em retrospectiva, eu acho que só queria fugir. Nem sei do quê. De mim? É, pode ser. Da minha aflição. Então vendi meu Uno Mille, comprei uma mala, que nem mala de viagem eu tinha, e reservei a passagem. Só que pum! Torres Gêmeas em Nova York. Minha mãe, que ia me inteirar a grana, disse "Você não vai mais, esquece". Porra, velho, ela tirou um sonho foda meu. Fiquei revoltadaço. Beleza, se eu não vou pra Londres, vou sair de casa. Eu só na fuga, né? Consegui outro trampo, numa empresa de sistemas de RH, e com 24 anos eu ganhava 5 paus por mês. Tava ótimo. Fui morar sozinho. Da Vila Guilhermina pro Paraíso. Aluguei apê, decorei mó legalzinho, eu adorava. Mas continuava um clandestino, só mudei de endereço.
Até que consegui fugir. Fui pra Toronto, no Canadá. Deixei o pouco conforto que eu tinha conquistado com meu trampo aqui pra buscar sei lá o que noutro lugar. A desculpa era estudar inglês. A verdade era que eu queria não saber como seria amanhã. Vou chegar lá e ver o que rola. Claro que rolou só trampo pesado que os canadenses não querem fazer: faxina. Eu ia pra escola de inglês de manhã e de tarde e trabalhava à noite. Mal descansava, mal me alimentava. Só andava de bike naquele puta frio. Limpava todo dia um prédio de nove andares, com dois banheiros por andar. Dezoito banheiros por dia. Eu carregava um saquinho de amendoim num bolso e um de doce no outro. Quando a minha glicemia despencava, eu nem tirava a luva de fazer faxina pra comer, com medo de não dar tempo, desmaiar e me acharem caído lá só no dia seguinte. Eu, que sempre fui magro, no Canadá virei um zumbi. No primeiro Skype que fiz com a minha mãe, ela só chorava. Vim embora depois de oito meses. Minha irmã foi me buscar no aeroporto e ficou assustada quando me viu: "Nossa, mano, você tá com Aids?!" Não. Era fome e estafa mesmo. Mas não me arrependo. Faria de novo. Porque no meu normal eu já não tenho paz, sem essa experiência, essa busca desatinada, aí eu tinha enlouquecido de vez.
Depois, nesses descaminhos da vida, essa parte da história é longa, outro dia eu conto, virei designer gráfico e fui trabalhar em agência de publicidade. Meu deus. Entrei e saí de agência umas quinze vezes. Inferno, cara. Inferno. Agência é assim: você não existe. Você faz o trampo e mandam refazer. O atendimento manda refazer, o diretor manda refazer, todo mundo manda refazer. Só sabichão. O trabalho nem chega no cliente e já tem alguém te mandando refazer. Sempre alguém ignorante, brega, sem referência de porra nenhuma, só cultura de almanaque. Refazer o quê, irmão?, eu perguntava. Aí a pessoa coçava a cabeça, fazia aquela cara de conteúdo e não dava ideia nenhuma. Hahaha. Agência é um lugar de você se desfazer, se des-ser, virar um nada. Meu pai, um homem simples da periferia, um operário, já dizia pra mim: "Daniel, aprende uma coisa. As empresas trocam os funcionários pra que as ideias de sempre permaneçam. Elas não querem ideias novas. Isso é conversa mole".
E hoje, falando dessas coisas, relembrando tudo, eu entendo que nos Meus Frankensteins eu lido também com esse meu descarte de trabalhador. Eles me jogam no lixo, mas eu vou lá de me ressignifico pra continuar sendo o que eu sou e não o que eles querem que eu seja. O mundo do trabalho lastreia o mundo, mas eu acho que não deveria ser assim. Porque é violento. Amarraram as coisas de um jeito que você tem valor se for a graxa da engrenagem. Se for o curto-circuito, tá fodido. Você tem que ser "produtivo", no sentido, pra eles, de produzir algo útil pro mundo, tipo dinheiro. Mas fazer luminária com lixo e sucata é produtivo? Construir algo inútil com inutilidades é produtivo? O que é útil? O que é lixo, sucata, tranqueira? São tantas perguntas que aos 40 anos eu me sinto esgotado e estagnado, cara. Por isso resolvi fazer concessões, me engraxar um pouco, porque tenho sonhos com a Isa. A gente quer muito ter um filho. E com a estabilidade financeira de um emprego fixo eu vou conseguir remontar o ateliê e ter um canto pra ficar socado na minha clandestinidade. A Brocca não vai ser o principal, vai ser o secundário. Mas quem sabe a fuga das fugas seja essa, né? Tô meio cansado de tomar no cu.
Não, cara. Aí também não. Meus Frankensteins são várias coisas, menos românticos. Nada disso de iluminar a vida das pessoas, porra nenhuma, sai fora. Tanto que quando eu termino de construir um deles eu nem quero acender a lâmpada. Não me interessam eles acesos. É do processo que se trata. Da criação. Do esforço pra fazer algo original e único. Quanto mais bizarros, mais disformes, mais eu gosto deles. Tenho até pena de vender, queria ficar pra mim, porque têm muito de mim neles. E não existe um Frankenstein igual ao outro. Jamais. Nem parecido. Meu processo não permite isso. Eu faço assim: cato coisas em caçambas e vou juntando, não muito pra não virar um acumulador, aí um dia separo umas peças que eu acho que têm potencial e deixo sobre a bancada. No dia seguinte eu chego pra criar. A partir daí não pode sair nada. Tudo o que eu separei no dia anterior tem que virar um Frankenstein. A galera da produtividade gosta de chamar de desafio. Eu chamo de marra. Marra de provar que o torto é viável. Que o lixo é útil. Que o esfarrapado é belo. Que o pé-rapado tem valor. Que o clandestino também tem lugar nesse mundo do caralho.
Daniel Orellana, 40 anos
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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.
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