"Bacurau" atualiza tradição narrativa pernambucana do horror
"Pobre da cidade ou do homem cuja história seja só história natural". Assim Gilberto Freyre introduz seu livro "Assombrações do Recife Velho", publicado em 1955, reunindo 27 contos sobre tradições e histórias recifenses. Há relatos de casarios mal-assombrados, teatro com ruídos estranhos e figuras fantasmagóricas fazendo medo à população. Para o sociólogo, as assombrações, mais que as revoluções, fazem parte do modo de ser da cidade.
O fantástico como elemento de narrativa produzida no Nordeste também tem conquistado seu lugar no cinema, linguagem que encontrou no deslocamento do realismo para a distopia a forma mais propícia de reler o momento político atual do país - afetado por tecnologia, guerras culturais e falsas notícias.
Foi assim em "Divino Amor", de Gabriel Mascaro. No filme, contextualizado num Brasil do futuro (nem tão longe assim), os limites entre Estado e religião transbordam a linha ética, e o fanatismo neopentecostal cria artimanhas de vigiar e punir a sociedade.
E essa tendência segue, agora, com o trabalho de Kleber Mendonça Filho. "Bacurau", dirigido por ele e Juliano Dornelles, que estreia amanhã, une elementos do extraordinário à violência sangrenta e ao horror psicológico.
Nascido no Recife, Mendonça Filho reconhece que seu interesse pelas histórias extraordinárias tem ligação com uma forma particular de narrativas míticas. "Eu sou recifense, gosto da história do Recife, e isso me fez pensar muito como a cultura brasileira funciona", aponta.
Premiado em Cannes, "Bacurau", porém, não é a primeira aventura do diretor pelo horror. "Eu sempre sonhava em fazer algo que o cinema brasileiro não fazia. E coloquei isso em prática nos meus curta-metragens", lembra.
Seu primeiro filme, "Enjaulado", de 1997, explica, "é bem realista, mas se passa no fantástico". Na história, um homem traumatizado se tranca em seu apartamento e ali vive o misto de medo e paranoia. Depois vieram "Vinil verde" (2004) e "Recife frio" (2009), ambos com o mesmo ar sobrenatural.
Até mesmo seus dois primeiros longas, "O Som ao redor" e "Aquarius", apesar de estarem mais ligados ao realismo, têm cenas "estranhas", digamos assim. "Não são filmes fantasmagóricos, mas têm elementos que claramente lembram o thriller. Mas é natural. E me dá um tesão grande de filmar aquelas cenas", conta o diretor.
Para Mendonça Filho, o aparecimento de filmes com essa proposta mostra o quanto o cinema brasileiro tem aumentado seu vocabulário. "No fundo, o cinema brasileiro não tem historicamente uma relação muito próxima com o fantástico. É claro que a gente tem José Mojica (o Zé do Caixão), que fez algo completamente incomum no cenário do cinema brasileiro, mas foi muito criticado e acho que até hoje não tem o devido respeito", comenta.
Marcas
Quem é nordestino ou conhece bem a região sabe como de fato as narrativas extraordinárias habitam o imaginário local. Um bom caso tem de ter seu ar de suspense ou sobrenatural. E se está na boca do povo, não poderia ser diferente nos textos literários escritos por lá.
A literatura local explora milagres, metamorfoses e até mesmo o universo religioso místico, explica Anco Márcio Tenório, professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). No caso de Gilberto Freyre, destaca o professor, é "indiferente se essas assombrações ou histórias de terror são ou não verdadeiras". O objetivo é mostrar como o povo lida com o insólito, com a morte e suas crenças religiosas. A obra de Freyre virou HQ em 2015, mostrando que a tradição não perdeu força.
Na ficção, encontramos histórias de terror e de assombração em Jayme Griz (como "O Lobisomem da Porteira Velha"), em Luiz Marinho (com "A afilhada de Nossa senhora da conceição" e "A valsa do diabo") e em Carneiro Vilella ("O Esqueleto"), e do maravilhoso e do mágico em Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho.
Essas temáticas aparecem na pintura e na escultura, em obras de artistas como Lula Cardoso Ayres, Cícero Dias, Romero de Andrade Lima, Dantas Suassuna, Carybé e Francisco Brennand, explica o professor.
A tradição de narrativas com elementos insólitos influencia nomes como o escritor Raimundo Carrero, que nasceu em Salgueiro, no sertão pernambucano. Sua obra é permeada por figuras mágicas e fantasmagóricas e por imagens extraordinárias que habitam o campo psicológico dos personagens. "O sertanejo convive desde cedo com o misterioso e com o fantástico, conforme sua cultura. Almas penadas circulam pelas casas e pelos telhados a todo momento. O horror e o misterioso estão na vida do povo brasileiro até por motivos religiosos, e a religião no Brasil está repleta da questão sobrenatural", diz.
Foi Carrero, aliás, responsável pela "criação" de uma das mais conhecidas lendas recifenses: a história da Perna Cabeluda. Em fevereiro de 1976, o escritor, naquela época jornalista do "Diário de Pernambuco", transformou em crônica policial o relato humorado de um colega de redação que chegou no trabalho dizendo ter visto debaixo de sua cama uma perna cabeluda.
"Uma pessoa fora agredida, levara três pernadas no pescoço, uma na barriga. Sangrando, fora socorrida por populares e estava, agora, no Hospital da Restauração. E não fora a única. Invadira também a residência de uma bela moça, não respeitara pai nem mãe, com uma rasteira derrubou-a, ali mesmo, no meio da sala, diante dos olhos estarrecidos da família, que não sabia como reagir", escreveu.
Vieram, então, outros relatos populares. A maioria, de casais. Há quem diga que a tal perna se tornou um álibi para maridos justificarem os traumas de brigas com os amantes de suas esposas. A história medonha, sempre lembrada, já virou até HQ, "A Rasteira da Perna Cabeluda", publicada em 2015, em adaptação do roteirista André Balaio, um dos editores do site "O Recife Assombrado".
Novos ares
De uma geração mais recente, o também escritor Frederico Toscano utiliza o mágico e o terror nas suas histórias. "O cotidiano me atrai, mas com algo de fantástico, que o tire do eixo, o torne estranho, por vezes terrível", afirma.
No recém-lançado "Carapaça escura", sua primeira obra de ficção, ele faz do horror uma ferramenta para críticas sociais, como o patriarcado e violência de gênero. "Para a maioria dos brasileiros, além do sobrenatural, é preciso sobreviver ao cotidiano. E muitas vezes é difícil dizer qual é o mais cruel", comenta Toscano.
A geografia, segundo ele, também colabora com a ficção, já que as particularidades geográficas localizam as narrativas sem que seja necessário que se declare onde elas ocorrem, mas ao mesmo tempo permitem situações estéticas que, muitas vezes, não seriam possíveis em outros lugares. "Não escrevo sobre Pernambuco apenas porque sou pernambucano. Minha terra me empresta as ferramentas necessárias ao meu ofício de escritor".
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