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Moradores antigos de Santa Cecília, Pinheiros e Itaim Bibi falam do "hype"

Elza Adissi e Luiz Antônio vivem em Santa Cecília há décadas - Daniel Lisboa/UOL
Elza Adissi e Luiz Antônio vivem em Santa Cecília há décadas Imagem: Daniel Lisboa/UOL

Daniel Lisboa

Colaboração para o TAB

30/01/2020 04h00

Até 2014, Santa Cecília era um bairro um tanto confuso. Não tinha a sofisticação e a riqueza do vizinho Higienópolis, mesmo com imobiliárias insistindo em chamá-lo de "Baixo Higienópolis". Apesar de estar na região central, preservava um certo clima provinciano, cheio de moradores antigos, alheio ao frenesi urbano dos também vizinhos Sé, República e Luz, os "bairros de passagem".

A rua Barão de Tatuí, hoje um símbolo do novo momento do bairro, era um tanto erma. Quando um conhecido restaurante baiano abriu as portas por lá, em 2011, quem passava em frente ficava com a impressão (ou certeza) de que os donos haviam escolhido um péssimo ponto. Evidentemente aquilo nunca iria para a frente.

Os bares que já existiam ali nada tinham do charme botequeiro que atrai hipsters e outros tipos em busca de uma experiência "autêntica" de bairro residencial. Um deles, hoje derrubado para a construção de um prédio, servia uma comida saborosa, até. Mas parava aí: avaliar o aspecto visual da comida, por exemplo, era quase impossível. Mesmo durante o dia, a escuridão predominava.

Bom, isso mudou. O casal João Varella e Cecilia Arbolave, donos da editora Lote 42, compraram uma banca triste e semi-abandonada e montaram a Banca Tatuí em 2014 para vender publicações de autores e editoras independentes, com direito a festas de lançamento e shows no teto da banca.

Logo ali ao lado, na rua Imaculada Conceição, Conceição Discos foi aberto oferecendo um ambiente descolado para quem quer comer quitutes mais sofisticados, beber e ouvir discos de vinil. De bairro discreto, habitado principalmente por famílias e idosos, Santa Cecília virou point de jovens engajados que andam com roupas super coloridas grudadas ao corpo, camisetas com frases como "lute como uma praia do Nordeste" e "girls just wanna be CEO", "criativos" e artistas.

A mudança de perfil demográfico também aconteceu em outros distritos paulistanos que mudaram mais lentamente que a Santa Cecília e hoje podem parecer irreconhecíveis para quem os conheceu há vinte ou trinta anos. Pinheiros e a região em torno da Avenida Faria Lima (agora famosa pelos "faria limers") são exemplos disso.

TAB conversou com representantes da velha e nova geração de moradores e frequentadores desses bairros para tentar entender o que eles acham das mudanças, e como convivem entre si.

Os "santa ceciliers"

Diego Leporati mora no bairro há menos de dois anos, mas já pode ser considerado um perfeito "santa cecilier", como algumas piadas na internet nomearam os novos moradores. Publicitário, gay, criador do bloco de Carnaval "Cecílias e Buarques", ele mora em um apartamento de um quarto próximo ao Minhocão.

Tecnicamente, Leporati mora na Vila Buarque, o que não é um problema, pois as fronteiras ali são um tanto confusas. Na prática, a região faz parte do que se pode chamar de "Grande Santa Cecília". "Gostei muito de mudar para cá. Tem essa coisa de ser centro, ter o metrô perto, mas com uma carinha de bairro ainda", diz o publicitário. "Você sai na rua e tem costureira, marceneiro, chaveiro, alfaiate, farmácia com aquelas balanças gigantes de mil novecentos e bolinha."

Um bar modernoso, cheio de barbudos e cortes de cabelo estilosos, funciona no térreo do prédio do publicitário. Ocupou o lugar de um prosaico restaurante "quilão". "Hoje, o prédio está dividido. Metade é a galera mais nova, a outra é dos velhos moradores", conta Leporati. Ele diz que já foi atormentado por uma vizinha não muito feliz com a mudança de perfil dos condôminos, mas acredita que hoje o embate entre gerações está sob controle.

Fora um ou outro atrito pontual, o pessoal jovem, de esquerda e liberal tem convivido bem com a velha geração do bairro, mais preocupada com a criminalidade e os mendigos debaixo do Minhocão do que no desmonte do audiovisual brasileiro. A disposição dos "santa ceciliers" para a militância, porém, mudou em alguns aspectos a dinâmica de relações no bairro.

A política do cancelamento, conta Leporati, fez com que uma rede de botecos muito conhecida deixasse de ser bem vista pelos membros do grupo do Facebook Cecílias e Buarques. Funcionários foram flagrados maltratando moradores de rua. Outro bar, este antigo e famoso mesmo fora da Santa Cecília, definitivamente não é frequentado pelos "santa ceciliers" por seu viés mais à direita e incidentes com frequentadores.

70 anos de bairro

Elza Adissi mora em um prédio quase em frente à Banca Tatuí desde 1978. Até pouco tempo atrás ela praticamente não via jovens morando no edifício, muito menos sozinhos. Agora, só no período em que durou a entrevista, pelo menos três legítimos "santa ceciliers" cruzaram o saguão.

"Agora, os jovens querem vir todos para Santa Cecília. Antigamente não tinha isso", diz Adissi, fã dos bloquinhos de Carnaval que passaram a cortar o bairro e síndica do prédio. "Fico boba, mas acho ótimo. Por enquanto, não tem bagunça", diz. "Não é como na Vila Madalena ou na [rua] Frei Caneca, que tem aquela multidão na rua."

Para Elza, além de jovens, os novos moradores são também gente com maior poder aquisitivo. "Antigamente tinha muita pensão aqui na rua. Agora caiu tudo, só restou uma."

No meio da conversa aparece seu amigo Luiz Antônio. Se ela é uma valiosa testemunha das mudanças dos últimos 40 anos, ele é um guia certificado. Morador da rua Barão de Tatuí há 70 anos, Luiz tem toda uma vida orbitando ao redor da pequena rua de três quarteirões (ou quatro, a depender do lado). Por lá passaram uma grande parte de seus amigos, parentes, amores e desafetos.

Sentado ao lado da síndica na escada do saguão do prédio, o aposentado lembra das muitas pensões que um dia foram a marca do bairro. Tocadas por imigrantes portugueses e espanhóis, acolhiam compatriotas e também migrantes nordestinos. O bairro, lembra Luiz Antônio, também teve cortiços ao melhor estilo "centrão de São Paulo", com famílias muito pobres morando nos porões de casas que hoje já não existem mais.

Os pequenos comércios e mercearias abasteciam as famílias locais antes de as grandes redes de supermercados chegarem. Uma destas mercearias era a de um japonês que abria muito cedo e que por volta das 13h já estava bêbado, porque insistia em acompanhar na bebida todo cliente que passava por lá e pedia uma dose de cachaça para "começar o dia".

Com duas grandes igrejas, a Santa Cecília foi por muito tempo também um bairro muito religioso. A ponto de, lembra Luiz Antônio, os vizinhos organizarem pequenas procissões, carregando imagens de santos entre os poucos metros que separavam as residências.

"Também tinha um oficial da polícia francesa que veio morar aqui na rua para prestar um serviço à polícia brasileira. Ele sempre andava de uniforme, com o bigodinho e o quepe típicos franceses. A figura dele marcou minha infância", conta ele, para quem o restaurante Conceição Discos é o grande responsável pela modernização do lugar. "Ela mudou o comportamento do bairro. E eu gostei", diz.

Pinheiros "hypado" e gentrificado

Pinheiros sempre foi um bairro de classe média, em alguns pontos até de classe média baixa, ao longo da história. Seu perfil começou a mudar com o "boom" dos bares da Vila Madalena nos anos 1990, mas, até meados dos anos 2000, não havia tantos bares, restaurantes e outros estabelecimentos chiques.

Hoje, o bairro é um festival de cafés, bistrôs, vários tipos de restaurantes, bares que em nada lembram os pés-sujos de outrora e sofisticados empreendimentos voltados a quem pode gastar muito dinheiro. O preço do metro quadrado dos lançamentos passou de R$ 8.702 em 2010 para R$ 15.779 em outubro de 2019, de acordo com a Secovi (Sindicato da Habitação) de São Paulo.

É gentrificação a todo vapor. Na Santa Cecília, por exemplo, mesmo com a invasão dos moderninhos, o valor passou de R$ 5.578 em 2010 para R$ 7.350 em 2018.

Moderninhos e pedreiros juntos

A chef Helena Mil-Homens escolheu a última fronteira da gentrificação no bairro para abrir a padaria artesanal St. Chico. O chamado "Baixo Pinheiros", entre o Largo da Batata e a Marginal Pinheiros, era o pedaço menos glamouroso do distrito até a revitalização do largo e a transformação da pequena rua Guaicuí em novo point boêmio da Zona Oeste.

"Morava na Vila Madalena. Quando o aluguel subiu muito e resolvi sair de lá, escolhi Pinheiros por ser um bairro 'normal`. Não era chique que nem os Jardins, universitário que nem Perdizes ou descolado que nem a Vila", diz Mil-Homens. Ela trabalhou em vários restaurantes, estudou panificação e, após um mochilão pela Europa, voltou ao Brasil decidida em abrir algo bom, mas acessível.

A chef Helena Mil-Homens, que saiu da Vila Madalena em direção à rua Guaicuí, em Pinheiros - Daniel Lisboa/UOL - Daniel Lisboa/UOL
A chef Helena Mil-Homens, que saiu da Vila Madalena em direção à rua Guaicuí, em Pinheiros
Imagem: Daniel Lisboa/UOL

"Na Europa, este tipo de lugar, com vitrine na rua, voltado ao público pedestre, é comum e barato", explica Helena. Depois de uma longa procura, ela achou o pequeno imóvel na rua Fernão Dias que satisfazia suas necessidades: não estava decrépito como outros que visitara, tinha espaço suficiente para o maquinário e era perto de sua casa, um pré-requisito para quem precisa acordar às quatro da manhã para fazer os pães.

"O pai do meu sócio, que é francês, veio ver o lugar e achou super europeu: calçadas largas, as pessoas se conhecem, tem muito comércio local", conta ela. "O que eu acho legal é que aqui atendemos todos os públicos. Os do Largo da Batata e do Baixo Pinheiros. Tem um salão de beleza e todas as manicures de lá vêm comprar pão aqui, e também os diretores chiques de empresas, gente que acabou de chegar a São Paulo. O moderninho descolado divide a fila com o pedreiro, o chaveiro."

"Nunca achei que veria Pinheiros chique"

Quanto mais próximo da Marginal Pinheiros, mais reminiscências de um Pinheiros rústico e interiorano é possível encontrar. Empreendimentos gigantes com ameaçadoras varandas gourmets já estão logo ali, querendo engolir o que resta da história do bairro. Ela resiste, porém, em relatos de pessoas como Ilydio Teixeira.

"Essa rua aqui era residencial, agora é tudo comércio. Várias casas foram derrubadas, os apartamentos estão tomando conta da região. Mas ainda é um lugar gostoso para viver, com acesso a qualquer lugar, tudo perto", diz Teixeira, encostado no muro da casa onde vive há 65 anos.

"O transporte era de tração animal. A gente nadava, pescava no Rio Pinheiros, que dava no fundo da minha casa. Na época ainda não tinha sido retificado", lembra Teixeira. Difícil imaginar essa cena olhando para o prédio de escritórios espelhado atrás da casa dele, uma construção de aparência tão simples e antiga que poderíamos imaginá-la em alguma pequena e semi-rural cidade do interior.

Ilydio Teixeira, morador de Pinheiros há 65 anos - Daniel Lisboa/UOL - Daniel Lisboa/UOL
Ilydio Teixeira, morador de Pinheiros há 65 anos
Imagem: Daniel Lisboa/UOL

O pinheirense das antigas, entretanto, não reclama das mudanças. Só da criminalidade, que segundo ele aumentou muito, e da bagunça no Largo da Batata, especialmente durante o Carnaval.

"Nunca imaginei que veria Pinheiros se transformar em um bairro chique, de classe média alta", diz Teixeira. "Várias construtoras já vieram aqui querendo comprar a casa. Mas não é hora de vender."

Das casinhas de vila aos "faria limers"

O Itaim Bibi, onde está a região agora conhecida pelos "faria limers", passou talvez pela mais agressiva das mudanças. Relativamente pacato até 1995, o bairro cheio de vilas com casinhas foi cortado ao meio pelo ampliação da Avenida Faria Lima.

A obra do então prefeito Paulo Maluf, batizada de "Operação Urbana Faria Lima", deslocou para a região o centro empresarial paulistano, que até então se concentrava na Avenida Paulista. O resultado foram torres e mais torres gigantescas, especulação imobiliária, bares, restaurantes, casas de prostituição, baladas, trânsito muito mais pesado e, claro, problemas.

Para quem ainda não foi apresentado ao termo, "faria limers" são os funcionários das empresas de finanças e tecnologia, entre outras, que invadiram a região e têm um código todo próprio de vestimenta, locomoção e visão de mundo. Um bom resumo seria o seguinte: são "playboys" (para usar um termo da época da expansão da Faria Lima), mas "playboys" conscientes e com um senso estético mais apurado. Nada de camisas com cavalos enormes no peito ou SUVs devoradoras de petróleo.

Pandemônio de bikes e patinetes

É bem possível que muita gente não tenha gostado do estereótipo, mas há quem tenha levado numa boa e se identifique com ele. É o caso da advogada Jessica Filka, que trabalha em um escritório no coração do chamado "condado", como os próprios "faria limers" apelidaram a região que concentra em torno de 1% do PIB brasileiro.

"Ser 'faria limer' significa ser um pouco coxinha. E eu sou, mesmo", diz a advogada. "A Faria Lima me lembra a Europa, super arborizada, com prédios bonitos e gente bonita e bem vestida."

Presidente da Sociedade Amigos do Itaim Bibi, criada em 1995, Marco Antonio Castello Branco acompanha de perto os entreveros que vieram com a "Operação Urbana Faria Lima". À frente da entidade, ele já arranjou briga para desalojar os moradores que ocupavam (segundo ele, ilegalmente) o terreno do atual Parque do Povo e conseguiu o fechamento de famosas casa de prostituição, como o Café Photo (o que, conta ele, rendeu o apedrejamento da sede da sociedade).

"O Itaim era pacato, de casas e ruas estreitas. Se transformou totalmente com a expansão da Faria Lima. Passou de um bairro de famílias, tranquilo, para um bairro misto, com muitos edifícios comerciais e residenciais e um trânsito intenso", diz Castelo Branco, morador do Itaim Bibi há 40 anos.

Ele diz que os "faria limers" são interessantes. Elogia a suposta propensão deles a se preocupar com problemas contemporâneos, mas logo deixa claras todas as dores de cabeça que, queiram eles ou não, a transformação da região trouxe para o Itaim Bibi.

"As bicicletas e patinetes deixadas na calçada se transformaram em um dos maiores problemas do bairro hoje. Já tivemos vários casos de pessoas atropeladas, com braços quebrados, arrebentadas", reclama. "Trafegam na calçada em alta velocidade, em total desrespeito ao pedestre. Já tem prédio que até colocou um aviso na porta 'cuidado: bicicletas e patinetes."

E o diretor da sociedade alerta: caminhar pelo bairro durante o horário de almoço é um convite ainda maior às fraturas e equimoses. Com os "faria limers" entocados no escritório pedindo comida pelos aplicativos, as ruas e calçadas viram o pandemônio dos entregadores.