Curso a distância, encontros virtuais: a quarentena tem que ser produtiva?
Um anúncio de curso de artes marciais a distância, no Instagram, conclama o leitor a transformar o confinamento imposto pela crise da Covid-19 em motivação. "Se não foi possível agir antes, aproveite o segundo melhor momento: AGORA! Movimente-se para as novas possibilidades que este momento nos traz!". Outra professora convida, menos enfática, "quem aí gostaria de aprender violino na quarentena?"
As propostas são voltadas aos milhões de trabalhadores e estudantes que foram temporariamente dispensados, ou tiveram jornada reduzida pelas primeiras medidas de distanciamento social. Ao mesmo tempo, proliferam nos sites de notícias artigos sobre como se exercitar, estudar ou manter o ritmo de trabalho dentro de casa.
Em um ensaio para a revista americana The New Republic, o jornalista Rick Martin resume a mensagem da seguinte maneira: "sim, essa pandemia é ruim, mas de que formas você pode se aperfeiçoar com toda essa solidão? Além disso, de que maneira pode continuar a provar seu valor como alguém capaz de trabalhar duro?".
A professora de história Cibele Camargo, 35, teve seu trabalho na rede municipal paulistana suspenso em 20 de março, e se deparou com vários convites a se aperfeiçoar. "Foi um bombardeio de informações virtuais, de cursos e atividades, bateu uma ansiedade, aquela ideia de que daria para fazer muita coisa."
Não só a oferta, mas as buscas por cursos online no Google, no país, aumentaram 127% na comparação entre a última semana de fevereiro e a última de março. A Fundação Getulio Vargas divulgou incremento de 400% na adesão em seus cursos virtuais gratuitos na comparação com janeiro e fevereiro.
Para a cientista social Juliana Kabad, do grupo de trabalho em saúde mental e atenção psicossocial na Covid-19, ligado à Fiocruz, esse movimento é a manifestação de um impulso de transformar qualquer tempo liberado pela crise em tempo produtivo.
"No caso daqueles que já têm renda garantida, a produtividade está associada à busca por manter uma sensação de normalidade provisória", diz.
Camargo conta que viu entre seus amigos um movimento de "transferir tudo, aulas e encontros para o virtual, e seguir a vida normalmente". Ela mesma procurou novas formas de ocupar o tempo liberado. "Comecei crochê, comecei a fazer máscaras, comecei jogos, que estão parados, comecei livros, comecei faxinas que não foram para a frente. Rapidamente desisti, não é um momento produtivo, não é um sabático, não são férias", conta.
Produzir pode retirar o foco sobre a crise
A pesquisadora Fernanda Serpeloni, do Departamento de Estudos Sobre Violência e Saúde da Fiocruz, diz que o impulso por se ocupar rapidamente durante o período de mudança "pode ser uma forma de não se conectar com o que está acontecendo agora, de buscar uma sensação de controle frente às incertezas".
Para certas pessoas a reação é oposta, "de letargia". "O que é importante entender é que a dificuldade de se concentrar e produzir não é uma falha, e não se cobrar. Não estamos vivendo uma continuação do que acontecia antes, e não necessariamente vamos manter o mesmo ritmo."
Em um artigo publicado no site do jornal focado em ensino superior The Chronicle of Higher Education, o professor de ciências políticas da Universidade de Toronto, Aisha S. Ahmad, faz um apelo para que pesquisadores deixem de lado a busca por produtividade a qualquer custo, nesse momento inicial de uma crise sem data para acabar.
"Apesar de poder trazer um sentimento bom na hora, é ingênuo mergulhar em um frenesi de atividade, ou ficar obcecado com sua produtividade acadêmica nesse momento. Isso é negação e ilusão. A resposta, emocional e espiritualmente sã, é se preparar para ser mudado para sempre."
Traço da sociedade contemporânea
Kabad avalia que a pressão por se manter produtivo não vem só em momentos de crise, como forma de ocupar o pensamento. Essa pressão é uma continuidade de algo que já vinha ocorrendo no Brasil e em outros países.
"Mesmo com todas as evidências de risco de contágio e sobrecarga do sistema de saúde, foram poucos os países que decretaram uma quarentena de meses logo no começo. Foram decretadas quarentenas de duas ou três semanas, que depois vão se prolongando. Isso porque vivemos em uma sociedade de economia liberal, em que a pressão por produtividade é econômica e social", diz.
No livro "Sociedade do Cansaço" (ed. Vozes, 2015), o filósofo sul-coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han faz uma análise sobre o lugar da produtividade na sociedade contemporânea. Han diz que essa sociedade deixou de ser marcada pela negatividade, ou seja, pela disciplina, por aquilo que é proibido e reprimido. Passou a ser marcada pela positividade, com a valorização de iniciativas e projetos individuais. Cada um se torna um "empreendedor de si mesmo", e busca criar uma performance de felicidade, que é apresentada por meio do auto-aperfeiçoamento, do sucesso.
O indivíduo se submete ao trabalho, sem que haja necessidade de pressão externa contínua para tanto. Esse impulso por ser produtivo é incorporado por cada um, na forma como deseja ser encarado pelos outros. Nas palavras de Han, o trabalhador contemporâneo se auto-explora.
Hoje, "a pessoa não quer ser vista como 'vagabunda' ou preguiçosa, quer ser vista como ativa, inventiva, empreendedora", diz Kabad.
Ela adiciona que "não basta ser produtivo, tem que mostrar que é produtivo, em uma vitrine. As pessoas têm publicado imagens de si mesmas no Instagram enquanto fazem altas atividades físicas, se alimentam bem, veem muitos filmes. Mostram que estão em casa, mas se tornando melhores".
Essa é uma forma de o indivíduo dizer que, "mesmo com o isolamento, sua rotina continua, é uma pessoa valorosa, uma fortaleza. Não ser produtivo é ser fraco diante do que está acontecendo".
Nos Estados Unidos, esse impulso por transformar cada momento livre em uma oportunidade para produzir, se autoaperfeiçoar e postar nas redes sociais vem sendo chamado de "hustle culture". Em inglês, "hustle" pode significar atividade, ou então apressar, forçar, apertar, andar rápido, acotovelar.
O psiquiatra David Sender, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, diz que a sociedade atual é marcada por "essa pressão por ser produtivo o tempo todo", e "a quarentena não fugiu à regra".
"Não estamos acostumados à disponibilidade de tempo, e a cultura ocidental tem hoje a ideia de que para descansar é preciso antes trabalhar, senão é vadiagem. O tempo parado parece indigno, ilegítimo. Tem pessoas angustiadas pelo fato de que, uma vez que trabalham menos, sentem que não têm o direito de descansar." Ele ressalta que "a questão é sempre sobre as crenças que nós temos sobre o que estamos fazendo, como nos compreendemos, e o que reforça nosso senso de identidade, sobre a pessoa que sou por trabalhar ou não".
A necessidade de produzir
Kabad pondera, no entanto, que essa leitura não pode ser aplicada a todos da mesma forma. Para a parcela mais pobre da população, que trabalha em bicos ou empregos precários e mal remunerados, buscar produtividade em um momento de crise não é só uma questão de autoimagem. "Para os mais pobres, ou dão um jeito de trabalhar, ou passam necessidade", diz.
Uma reportagem publicada no início de abril pelo jornal Folha de S. Paulo mostra como, em regiões periféricas de São Paulo, a suspensão das aulas significou mais crianças em casa, sem a merenda escolar. A necessidade de gastos aumentou, ao mesmo tempo em que os pais ficaram sem fontes de renda.
Em entrevista ao jornal, o pedreiro Márcio Pereira da Silva, pai de seis filhos, afirmou: "Parou tudo, fecharam os depósitos. A gente que trabalha de pedreiro depende do material do depósito. As pessoas também não querem mais que a gente entre na casa delas. Quem trabalha que nem eu, por conta, fica difícil. Se eu não sair um dia para trabalhar, não vou ter um real."
Apenas na sexta-feira (17), cerca de um mês após o início das medidas de isolamento físico, o governo federal começou a pagar o auxílio emergencial de R$ 600 para a população, como forma de mitigar o impacto do Covid-19. O governo espera gastar R$ 98,2 bilhões com o programa.
Trabalho em marcha lenta
Apesar do contexto, Kabad acredita que, para alguns, a rotina de produtividade pode também "ajudar a manter a pessoa centrada, com algum foco". Além disso, a crise não tem data para acabar, e atingir algum nível de produtividade pode fazer parte da adaptação prática à nova realidade.
A bibliotecária paulistana Cíntia Mendes, de 33 anos, continuou trabalhando, mas em esquema de home office. Ela afirma que se manteve produtiva, mas precisou se adequar. "Na primeira semana, tentei reproduzir a rotina de trabalho que tinha antes, mas acabei muito frustrada. Mantive a mesma quantidade de horas, mas produzi muito menos e me senti muito mais cansada", diz.
Ela buscou diminuir o consumo de notícias sobre a crise da Covid-19 e organizar uma nova rotina, em que lista as tarefas que pretende cumprir para o trabalho e para a casa no dia, sem se ater a uma jornada fixa. Isso tem funcionado melhor até agora.
A advogada Marina Ruzzi também continuou trabalhando, mas sob esquema de home office. Ela está poupando tempo que gastava com o deslocamento até o escritório. E o trabalho desacelerou, já que as audiências estão suspensas. Ruzzi tem buscado manter uma rotina em que começa o dia tomando café da manhã, meditando e restringindo a quantidade de notícias que lê.
Ela conta que fez cursos online focados em temas que já desejava estudar, mas toma cuidado para "pegar leve". "Às vezes sou conservadora, me planejo para gastar quatro horas numa peça jurídica em que gasto uma, para não me sentir sobrecarregada ou insatisfeita. Estamos vivendo tempos muito atípicos, olho com maus olhos a busca por muita produtividade", diz.
Por que não tomar um tempo?
A historiadora Cibele Camargo diz que se sente "profundamente irritada" ao ouvir recomendações de regras como "'organize uma rotina, hora a hora". "Tem muitas coisas acontecendo no mundo, na economia, com anúncios do presidente que te desestabilizam. Manter uma rotina programada acaba sendo mais uma cobrança. Nós estamos vivendo um momento de luto, e não adianta se ocupar, fazer lives na internet achando que assim voltamos para a vida normal", diz.
A psicóloga Fernanda Scarpeloni afirma que "é normal se sentir perdido, confuso". "Na verdade, é bom que a pessoa não esteja em negação. Nenhuma pessoa se sente bem em uma crise mundial".
Em um ensaio publicado no site The Outline, o jornalista americano Drew Millard critica a profusão de artigos jornalísticos com dicas sobre como se manter produtivo. "Se não é um artigo do The New York Times falando sobre coronavírus, é um artigo do The New York Times falando sobre trabalhar de casa. A promessa é encorajar o leitor a maximizar seu tempo, para que se sinta mais ativo quando está preso dentro de casa", escreve.
Millard aconselha: "se você tiver sorte de continuar com um emprego, não coloque pressão excessiva sobre si mesmo para manter a mesma produtividade que tinha no escritório".
"A questão principal é se a procrastinação está realmente incomodando. Porque, se não tem um chefe ou filhos exigindo, esse pode ser sim um momento para parar", diz a psicóloga Fernanda Scarpeloni.
O psiquiatra David Sender diz que a maioria de seus pacientes se adaptou tanto à falta de disponibilidade de tempo que a palavra hobby saiu do vocabulário. "Ninguém tem tempo disponível para fazer algo abertamente prazeroso", afirma. "É como um músculo que atrofia: se não estamos acostumados a lidar com tempo disponível, não sabemos o que fazer quando temos tempo."
"Se eu posso deixar uma sugestão, é de tentar introduzir no dia a dia atividades que simplesmente dão prazer. As circunstâncias nos convidam a isso."
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