Topo

Com reprises, quarentena é gatilho para nostalgia. Vale a pena ver de novo?

Memórias desbotadas: reprise do primeiro prêmio de Ayrton Senna resgata "mística" dos domingos dos anos 1980 - Divulgação
Memórias desbotadas: reprise do primeiro prêmio de Ayrton Senna resgata "mística" dos domingos dos anos 1980 Imagem: Divulgação

Tiago Dias

Do TAB

03/05/2020 04h00

A quarentena se tornou um estado em que tempo e espaço parecem estar em suspenso. E, para evitar o pessimismo do presente e as incertezas do futuro, estamos cada vez mais voltando nosso olhar para o retrovisor.

A onda passadista está nos textões sobre como a vida era boa antes do novo coronavírus, no #tbt do Instagram e também na TV, que, com exceção do noticiário que não para, parece cada vez mais entregue à máxima do "vale a pena ver de novo".

Com a interrupção de eventos, campeonatos e gravações de novelas e séries, as emissoras apostam em uma tendência identificada há tempos na cultura pop para entreter essa grande massa cercada de reminiscências em casa: a nostalgia.

"Do ponto de vista da cultura, já há alguns anos se desenha um horizonte no qual muitas das produções que fazem sucesso são voltadas ao passado, como é o caso das séries 'Stranger Things' e 'Dark'", observa o psicanalista Pedro Ambra, professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e doutor em Psicologia Social pela USP. "O que está acontecendo com o coronavírus e a quarentena, seja no meio econômico ou no meio psíquico, é o aceleramento de processos que já estavam em marcha."

Por necessidade, muitos programas de auditório estão sendo reprisados e canais esportivos preenchem suas grades com disputas e partidas que fizeram história. Na TV Globo, versões editadas de novelas exibidas nos últimos anos entraram no ar. No horário mais nobre, "Fina Estampa", exibida entre 2011 e 2012, dá o tom dessa quarentena.

Fina Estampa: O Brasil de 2011 está no horário nobre da TV Globo - Reprodução Twitter - Reprodução Twitter
Fina Estampa: O Brasil de 2011 está no horário nobre da TV Globo
Imagem: Reprodução Twitter

Temporada de gatilhos

Nem faz tanto tempo assim, mas novela de Aguinaldo Silva é uma cápsula do tempo de um Brasil distante. Além da estética das novelas terem evoluído na última década, os personagens e situações parecem deslocados em pleno 2020.

E, se não há como torcer pelo seu time ou se orgulhar de feitos da seleção brasileira — há um tempo sem trazer grandes conquistas —, um novo ritual parece se impor aos domingos. A exibição das finais das Copas de 1994 e 2002, quando o Brasil foi tetra e pentacampeão, respectivamente, deu boa audiência e fez muitos voltarem no tempo.

Neste domingo (3), será a vez de relembrar o Grande Prêmio do Japão de 1988, que deu a Ayrton Senna o primeiro título mundial da Fórmula 1. Uma piscada para uma época em que os brasileiros se reuniam em frente à TV aos domingos de manhã para acompanhar o ídolo das corridas — algo que só quem nasceu entre os anos 1980 sabe como foi.

Ainda que a oferta de conteúdo inédito na internet e na Netflix pareça inesgotável, a busca pelo passado tem ditado nossa rotina. Uma pesquisa em desenvolvimento, feita pelo grupo Consumoteca, com 2 mil pessoas de todo o Brasil, tem jogado luz no comportamento do brasileiro durante a quarentena. Um dado prévio indica que 67% das pessoas ouvidas estão assistindo a reprises de filmes e programas de TV — ou disseram estar vendo coisas que já viram antes.

A mesma tendência se observa no consumo de música por streaming. Apesar da manutenção de lançamentos de singles e álbuns, o Spotify identificou, na primeira semana de abril, um aumento nos plays em músicas produzidas entre 1950 e 2000.

Por aqui, músicas como "Bohemian Rhapsody", do Queen (1975), "Tempo Perdido", da Legião Urbana (1986), "Sweet Child O´Mine" dos Guns N' Roses (1987), "Apenas Mais uma de Amor", de Lulu Santos (1992), e "Se?" de Djavan (1992) estão entre os hits que tiveram um aumento de plays nos últimos dias. Além disso, o número de usuários que criaram playlists nostálgicas cresceu 54%.

No Instagram, os #tbts regrediram ainda mais no tempo e, não raro, mostram imagens de épocas analógicas e fotografias desbotadas. "Acho que a situação do isolamento faz a gente recorrer às lembranças muito mais do que antes. A gente pensa mais em quem está longe — e muitas lembranças afetivas estão ligadas a tempos passados, à infância, a outros momentos da vida", diz a pesquisadora de tendências Rebeca de Moraes, da Consumoteca.

Galvão Bueno grita "É tetra!" com Pelé na final da Copa do Mundo de 1994 - Reprodução/TV Globo - Reprodução/TV Globo
Galvão Bueno grita "É tetra!" com Pelé na final da Copa do Mundo de 1994
Imagem: Reprodução/TV Globo

Vale a pena ver de novo?

O resgate do passado ganhou um sentido positivo no século 21, atingindo em cheio muitas áreas da arte e do entretenimento, mas a palavra nostalgia surgiu no século 17 para descrever um estado melancólico de saudade irreal e idealizada.

A nostalgia aparece quando nossa relação com o prazer, por alguma razão, não consegue se articular a um desejo, o desejo como uma instância radicalmente negativa, um desejo de desejar.
Pedro Ambra, psicanalista

O momento de hiato e dúvidas, forçado pela pandemia de Covid-19, é um gatilho maior para as reminiscências. "É quando a gente não tem esse espaço para o futuro, para as inspirações, para as utopias. Quando a gente não sabe quando vai vir e, pior que isso, a gente não sabe o que a gente quer que venha. Nesse limbo, a infiltração do passado vai tomando espaço", observa Ambra.

Esse olhar acaba sendo um refúgio, ainda que o passado não seja necessariamente prazeroso. Assim é com as bandas que você não gostava na adolescência, mas que ao serem ouvidas hoje, trazem certo prazer. Ou até mesmo a final da Copa do Mundo de 1994, em que a bola entrou no gol só nos pênaltis.

"Foi um jogo horrível, chato, nada acontecia, só valia pelo pênalti no final e o Galvão [Bueno] gritando 'é tetra!'. Mesmo assim, ele é revestido dessa potência. Não quero saber do meu presente, não consigo conceber um desejo com o presente e o futuro, então me volto ao passado e pinto isso com tonalidades positivas", observa o psicanalista.

Para Moraes, essa demanda parece atender também ao desejo de ver o Brasil dando certo. "O oposto do que a gente está vendo aqui, desse trem descarrilado", observa. "Acho que tem um viés de escapar da realidade mesmo estando nela. É o caso das novelas antigas: são um escape à realidade, mas, ainda assim, sobre o Brasil. Tem nosso jeito, personagens em que conseguimos nos encontrar."

A nostalgia também gera efeitos no espectro político, que ganha outros contornos na pandemia, com a polarização se dando agora entre janelas e varandas. "A gente tem dificuldade de imaginar novidades do ponto de vista das transformações sociais, acabamos recorrendo ao passado, seja o da extrema-direita, como é o caso de Bolsonaro em relação à ditadura, seja da centro-esquerda, com o estado de bem-estar social lulista, meio neoliberal. Essa polaridade se institui a partir de duas tentativas de retorno, com pouca construção para o futuro, portanto, nostálgicas", opina Ambra.

A questão, na visão do psicanalista, é como estabelecer esse contato com o passado durante a quarentena. Se essa relação será de fixação ou de conservação ou superação, o que, na filosofia, é chamado de suprassunção.

"Uma das teorias freudianas diz que o histérico sofre de reminiscências, ou seja, ele é alguém que remói o passado, é alguém com dificuldade de elaborar um determinado trauma, uma vivência difícil ou a impossibilidade de uma certa satisfação. Então, fica remoendo", explica. "Partes dos nossos sofrimentos são incapacidades de elaborar o passado. Nesse sentido, uma fixação extremamente nostálgica pode ter um certo traço de histeria."