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Como funciona o processo de repatriação de brasileiros ainda no exterior

O avião que trouxe brasileiros da Arábia Saudita e fez quatro escalas em voo de repatriação - Arquivo pessoal
O avião que trouxe brasileiros da Arábia Saudita e fez quatro escalas em voo de repatriação Imagem: Arquivo pessoal

Letícia Naísa

Do TAB

14/05/2020 04h00

O plano da jornalista Beatriz Campilongo, 26, era ficar um mês na Itália e voltar para a Austrália, onde um trabalho em uma empresa de marketing de eventos a esperava. A passagem estava comprada para dia 25 de março. Os planos mudaram quando a pandemia de Covid-19 estourou de forma devastadora na Europa. Campilongo passou um mês além do previsto na Itália e retornou ao Brasil R$ 15 mil mais pobre — por conta dos gastos com hospedagem e três passagens canceladas.

Apesar de ter buscado ajuda na Embaixada brasileira, a jornalista arriscou a compra de uma última passagem para voltar para casa e conseguiu retornar. Até hoje, o voo de repatriação prometido não decolou. "Na época, estavam morrendo mil pessoas por dia na Itália, parecia que estavam ignorando a gente lá. Pensamos que não queriam nos resgatar por medo de que a gente trouxesse a doença. Mas depois de um tempo e muitos formulários, não tinha mais condições de esperar, comprei passagem sem saber se ia conseguir embarcar", conta.

Assim como Campilongo, a atriz Roberta Gonzalez, 47, aguarda um voo para voltar para casa. Gonzalez visita os pais todos os anos no Brasil e tinha uma passagem comprada de Madri até São Paulo para o dia 30 de maio. O voo foi cancelado e não há previsão de retorno. "Eles oferecem voos a partir de junho, pedem para você remarcar a passagem ou comprar outra, mas a gente não tem coragem", diz. A atriz trabalha com turismo na capital espanhola e viu sua renda desaparecer com a crise do novo coronavírus. "Minha situação vai começar a ficar precária, porque eu não vou ter trabalho tão cedo, só estou gastando."

Nesse contexto, ela aguarda por um voo de repatriação. Seu primeiro contato com a embaixada brasileira foi no dia 9 de abril. Até agora, Gonzalez não recebeu nenhuma previsão sobre quando o voo deve acontecer. Em uma busca pela internet, ela encontrou voos de 600 a 2 mil euros — um dinheiro que ela não tem.

O drama vivido por Campilongo e Gonzalez é o mesmo dos cerca de 4.500 brasileiros que ainda estão vivendo no exterior neste momento, à espera de uma passagem para retornar ao Brasil. Segundo o Itamaraty, mais de 20 mil já foram trazidos para casa em voos fretados pelo governo ou remanejados com ajuda consular, mas ainda há gente aguardando ajuda pelo mundo todo.

O histórico de repatriações feitas pelo Itamaraty não é muito extenso, mas essa é uma situação nova para todas as embaixadas e serviços consulares mundo afora. De repente, todas as emergências foram concentradas em apenas dois meses. Todo o mundo queria voltar para casa. Para atender a demanda, o Itamaraty ampliou seus canais de comunicação por telefone, mensagens e redes sociais que atendem 24 horas por dia — e acionou 100 diplomatas e estudantes do Instituto Rio Branco, escola diplomática do Brasil, para ajudar nas gestões.

Outra medida tomada pelo Itamaraty foi ampliar os gastos para lidar com a crise. "O orçamento de pelo menos cinco anos do Itamaraty está comprometido", afirma uma fonte do governo. Além das contratações, o governo está fazendo algo inédito: fretamento de voos para trazer brasileiros de volta. Até agora, foram 17 subsidiados pelo governo.

"O governo brasileiro tem tido relativo sucesso no processo de repatriação. Acho que entendeu, até por uma questão de imagem, que era importante investir nisso", afirma Guilherme Casarões, professor de ciência política da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Segundo o especialista, a iniciativa de fretar voos e pagar passagens não é comum entre outros países. "Obviamente, houve uma tentativa de capitalizar em cima disso, deram a repatriação como o grande feito dos últimos tempos. Em parte, é para minimizar o desastre político que foi a cadeia de decisões que aconteceram nos últimos meses."

Os critérios para viajar com tudo pago são tecnicamente simples: estar em situação de vulnerabilidade no exterior. No passado recente, as embaixadas brasileiras atuaram em processos de repatriação quando houve um terremoto no Chile, em 2010, e após a devastação provocada pelo Furacão Irma, em 2017, no Caribe. Nas duas ocasiões, aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) foram enviados para buscar os brasileiros, assim como aconteceu em fevereiro deste ano com a repatriação de 30 famílias que estavam em Wuhan, na China.

"Não há nada que obrigue o governo a pagar passagem de brasileiros que por ventura não conseguiram voltar para o Brasil durante a crise. Agora, é uma questão de zelo, de imagem, estender a mão para essas pessoas que estão passando por situações difíceis", diz Casarões. Do ponto de vista moral, o especialista afirma que há uma expectativa de que a chancelaria tome uma atitude, mas a maior função das embaixadas e consulados é oferecer apoio e auxílio aos cidadãos no exterior.

"É analisado caso a caso, envolve aviação comercial, envolve custos com que a maioria desses brasileiros já não tem mais condição de arcar. Desconheço efetivamente algum caso, mas só consigo imaginar que seja desesperador", diz Cláudio Finkelstein, professor de direito internacional da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

De fato, Gonzalez relata que a situação é extrema. "Quero muito ir embora. É um acúmulo de estresse, as pessoas chegam aos seus limites", diz. "Esse é um momento em que a gente quer estar com a família. Começa a dar um aperto no coração, a distância causa um sofrimento ainda maior."

Contratos

Na briga entre quem está exilado e quem deve se responsabilizar por trazer os brasileiros de volta, muitos pedem ajuda às companhias aéreas. A relação entre viajante e empresa, no entanto, é contratual. "A empresa é quem tem a obrigação de trazer o cliente de volta, é uma relação de consumo", afirma Finkelstein.

A dentista Nicol Magdalena Diaz, 32, resolveu fazer barulho nas redes sociais de uma companhia aérea depois de ter seu voo cancelado. Diaz desembarcou no Chile com a filha de dez anos no dia 16 de março e planejava voltar no dia 30. Sem resposta da companhia aérea, entrou em contato com a embaixada, que fez contato algumas vezes para saber se ela e a filha passavam bem, mas não pôde garantir um voo. "Acho que eles queriam ajudar a gente a voltar, foram muito educados, mas não tinha o que fazer", conta. Entre as conversas com o consulado e com a companhia aérea, a dentista passou um mês além do planejado em uma cidade no interior do Chile, onde a quarentena foi rígida, contando com a hospitalidade de parentes distantes e amigos. Conseguiu voltar para casa, no Rio de Janeiro, no dia 1° de maio — depois de muita negociação para ser encaixada em outro voo da mesma empresa.

Nenhuma autoridade do mundo estava preparada para o que veio. O maior desafio do processo de repatriação tem sido a logística: na nova rotina dos funcionários do Itamaraty, foi incluída a negociação para fretamento de voos com companhias aéreas — tanto brasileiras quanto estrangeiras — e para a liberação do espaço aéreo de cada país onde os aviões devem pousar. Em alguns casos, o governo brasileiro tem aproveitado a "carona" para trazer de volta brasileiros em voos que estão vindo buscar estrangeiros. Com o bloqueio total (lockdown) em alguns países, aeroportos, rodoviárias, estradas e portos foram fechados. Ninguém entra e ninguém sai. Conseguir uma autorização para pousar um avião é uma grande odisseia, e envolve também conseguir autorização para levar até a capital quem está em outras cidades e regiões de determinado país.

Em sua jornada de tentativas de regresso, a impressão de Campilongo era de que os funcionários do consulado estavam de mãos atadas. A jornalista foi uma das brasileiras que precisou enfrentar uma viagem de trem na Itália para chegar até a capital, Roma, e conseguir pegar um avião de volta. "Foram sete horas de viagem. Tive que apresentar uma certificação e a passagem para poder me locomover, tinha um controle muito rigoroso. O avião tinha dois andares e estava lotado de brasileiros, com passageiros alocados a uma poltrona de distância uns dos outros", conta. Campilongo desembarcou em Guarulhos no dia 23 de abril.

"O que estamos enfrentando agora já é uma possibilidade enfática, ou seja, não existe mais voo comercial. O tráfego aéreo, hoje, é restrito ao transporte de mercadorias ou de médicos para dar assistência durante a crise", aponta Finkelstein.