O rock está vivo, mas por que se tornou clássico e com fama de conservador?
"Que país é este" foi escrita em 1978, quando Renato Russo queria ser punk e o Brasil, ainda vivendo sob o regime militar, iniciava o processo de reabertura política. A canção, no entanto, só seria lançada quase uma década depois, no auge da popularidade do rock brasileiro, porque o compositor acreditava que aquele Brasil, enfim, podia melhorar. No encarte do disco homônimo da Legião Urbana, em 1987, Russo analisava aqueles versos guardados: "'Nas favelas, no Senado, sujeira pra todo lado' é de certa forma adolescente e ingênuo demais, mas a temática continua atual".
A indignação com a corrupção e o sentimento de impunidade atravessam gerações e muitas fases da política. Isso explica por que a música se manteve viva nas caixas de som das mais diversas manifestações, sendo trilha do movimento que pediu o impeachment de Dilma Rousseff, pós-2014, e também o grito dos protestos antidemocráticos — sendo cantada, inclusive, por quem impunha cartazes pedindo um novo AI-5 — embora Russo sempre tenha se posicionado contra o regime e o fascismo. "Brasil", de Cazuza, também tem sido cantada por grupos de direita que pedem o fechamento do STF e do Congresso — Lucinha Araújo, mãe do cantor morto em 1990, afirmou que o uso da canção nesse contexto é "inaceitável".
De espírito subversivo e raíz contracultural, o rock chega a 2020 "domesticado", bem distante do estrago que fazia há 70 anos: anacrônico, longe das paradas e dos jovens e com pecha de ter virado "som conservador". Não à toa, clássicos "épicos", que emanam, na letra ou no instrumental, um senso de força e otimismo, são os favoritos do presidente norte-americano Donald Trump, desde sua primeira campanha eleitoral. "Sweet Child O'Mine", de Guns N' Roses, "You Can't Always Get What You Want", dos Rolling Stones, e até "Rockin' in the Free World", de Neil Young, tocaram em comícios e eventos de Trump, apesar de os artistas terem desautorizado o uso das canções.
No Brasil, a fama conservadora chegou em 2016, quando Lobão e Roger Moreira, da banda Ultraje a Rigor, dois protagonistas da era de ouro do rock brasileiro, passaram a apoiar candidatos e pautas conservadoras. A guinada à direita foi recebida com surpresa por uma parte dos fãs, que não via lógica na atitude dos dois roqueiros, mas também fez ressoar sentimentos semelhantes de quem os ouvia há trinta anos.
Essa contradição ficou ainda mais evidente em 2018, quando, em plena campanha presidencial no Brasil, Roger Waters desembarcou por aqui com uma turnê repleta de críticas políticas. No telão, o músico fez questão em aderir à campanha #elenão e incluir Jair Bolsonaro na lista de líderes mundiais "neofascistas". Ainda que toda a sua obra no Pink Floyd, calcada em mensagens antifascistas e antibélicas, justificasse tal posicionamento, uma parte dos fãs vaiou o artista nas apresentações.
"É um pouco desconfortável para quem cresceu com a ideia de que o rock, por si, era sinônimo de contestação e de inadequação, sempre associado a um discurso mais à esquerda", observa ao TAB o jornalista e pesquisador Ricardo Alexandre. "Mas o rock é um estilo de música dos anos 1950. É natural que pessoas mais conservadoras tenham algum tipo de memória afetiva com esses artistas, seja porque dançavam nos anos 1980 ou ouviram o disco do Pink Floyd."
Alexandre não enxerga nenhuma tendência majoritária da direita no rock, mas não nega que um filão se abriu entre a música e seu público, com o avanço da onda conservadora no Brasil. "Creio que houve uma saturação do modelo de governo de esquerda, evidentemente, que transcende classe artística; é um sentimento nacional. Nem que seja estética, mas houve essa saturação", explica.
A questão, na visão de Alexandre, não é a posição ideológica dos roqueiros — e há inúmeros exemplos na história, de Dave Mustaine e Johnny Ramone a Roberto Carlos. A contradição está na ideia de aliar pautas conservadoras à arte.
"Roberto Carlos em 1965, com 'Quero que Tudo Vá para o Inferno', não era conservador. Arte é risco, o [artista britânico] Banksy diz que não é arte se não tiver potencial para o desastre. O que não consigo imaginar é quantos discos de arte conservadora mudaram a vida do Roger Moreira, por exemplo", observa Alexandre. "Não conheço arte conservadora. É uma coisa contraditória. Arte conservadora, pra mim, é sertanejo universitário, que quer que as coisas continuem como está. A definição honesta do conservador é a da prudência."
No entanto, não é o sertanejo que toca nas manifestações da direita no país. "Lutar contra o aparelhamento do Estado, contra a corrupção, contra os abusos dos diversos poderes, contra a hegemonia ideológica, essas coisas unem muitas pessoas. E elas se apropriam de algum repertório que tenha um discurso de contestação. 'Que país é este' tem um discurso adolescente. Não é muito profundo, então cabe em qualquer situação", observa o jornalista.
Nasce um clássico
A música brasileira está repleta de canções políticas. De "Apesar de Você", de Chico Buarque, a "Para Não Dizer que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré, muito dessa produção está profundamente ligada ao período militar.
Com um governo civil onde há quase tantos militares quanto no próprio regime militar, e com a onda conservadora dando voz também a quem defende a volta da ditadura, apenas um repertório parece se encaixar nessa ressignificação de mensagens — e elas datam de quando o rock dominou as paradas do país, fazendo o disco da Legião Urbana com "Que País É Este" vender mais de 1 milhão de cópias em 1987. "Essa geração realmente chegou a um nível de sucesso onde você perde completamente o controle estético e do público", observa Alexandre.
Em seu livro "Dias de luta: O rock e o Brasil dos anos 80", Alexandre se debruçou justamente sobre o momento em que o rock criava um verdadeiro ecossistema mercadológico, com revistas, rádios, festivais e produtos. "A moda do rock coincide com a descoberta do público jovem. Se você quisesse vender uma calça jeans para esse público, você tinha que associá-la ao rock. É aí que vem o Rock in Rio, a 'rádio rock'."
Nesse processo, a palavra — e o gênero — passaram por um processo de dilatação de entendimento. "Qualquer tentativa de associar a produção musical ou estética à palavra rock tem um passivo de comparação ou de adequação a alguma coisa de trinta anos atrás", ele observa.
Essa reverência ao passado está presente ainda hoje, quando as ditas "rádios rock" dedicam boa parte da sua programação a clássicos que vão dos anos 1950 aos 1990. "Virou um clássico. Se você ligar na 89 [uma das pioneiras rádios de rock do país] agora, vai estar tocando "Light My Fire", uma música com 50 anos de idade. Se, quando surgiu, em 1986, a rádio tocasse músicas com 50 anos, ia tocar canções dos anos 1930, ia tocar Gleen Miller — e faz todo o sentido que quem ouvisse Glenn Miller naquela época fosse conservador", analisa o jornalista.
Isso dá uma pista para uma questão que assombra os roqueiros — que estão à espera, assim como Dinho Ouro Preto uma vez disse nas redes sociais, de um novo Nirvana, "para unir todas as tribos". O erro de digitação ajudou a transformar aquele desejo em meme.
"O Brasil transformou o rock em um tipo de música, tipo bossa nova. Quando você vai a um show de bossa nova, você não quer ouvir a música nova, você quer ouvir 'O Barquinho', 'Garota de Ipanema'. Quando alguém vai abrir um bar de rock, já está pressuposto que você vai ter o Doors cover, Deep Purple cover. Se O Terno tocar lá, vão atirar coisas neles. Rola um desinteresse grande no novo", observa.
"Por isso o roqueiro de hoje tem uma tendência a ser conservador. E é natural que ele fique contrariado, quando exposto ao contraditório, de saber que o repertório não tem nada de conservador."
Todos contra o status quo
"Parece conflitos de gerações", observa Raffael Sena, especialista em neuropsicopedagogia e mestre em ciências sociais. "No começo dos anos 2000 o pensamento coletivo era diferente. Era um pensamento contra o status quo, contra as políticas neoliberais. A geração que veio depois da era Lula, de modo geral, se tornou contra aquele governo e passou a aderir às ideias que havia antes."
Ele acredita que essa mudança de pensamento atingiu a sociedade como um todo — e não foi diferente com o rock. Músico e fã do gênero desde os 12 anos, Sena foi atrás da história para entender a onda conservadora dentro do metal, em sua dissertação de mestrado, defendida em 2019.
"Conheço pessoas que participaram do movimento hippie e que hoje reproduzem ideias conservadoras. Isso é muito mais um movimento cultural, a cultura no sentido da visão de mundo. O mesmo acontece com o metal. Justamente um movimento que tem raízes contraculturais, que se expressa contra os valores morais da sociedade, agora reproduz discursos totalmente conservadores. Antes era velado, agora está tudo mais aberto", diz.
Parte da sua pesquisa é dedicada ao Black Metal Nacional-Socialista (na sigla em inglês, NSBM), subgênero do black metal que promove, por meio de trabalhos musicais e visuais, crenças neonazistas, paganismo europeu e o ódio contra algumas religiões.
A cena controversa foi fundada pelo músico e escritor norueguês Varg Vikernes, da banda de um homem só Burzum, mas suas ideias chegaram às Américas, inclusive ao Brasil.
"Comecei a prestar atenção pelas redes sociais, porque as questões políticas não eram muito debatidas no metal. E são discursos que se aproximam bastante das alas mais conservadoras brasileiras, como por exemplo das igrejas protestantes, com a valorização da família tradicional, a valorização de um passado romântico, como se fosse uma época melhor", diz Sena.
O apresentador e vocalista do Ratos de Porão, João Gordo, afirmou em 2019, em entrevista à rádio Frei Caneca de Recife, que o metal, em sua essência, sempre foi contra tudo isso. "Esses metaleiros fascistas vão todos se arrepender. Como esses caras se dizem satanistas, escutam black metal, falam que são fãs do capeta e tal, mas apoiam cristão fundamentalista?", observou.
Rock com regras
Para Sena, a cobrança e as regras dentro do metal fizeram com que o gênero se tornasse terreno fértil para que ideias conservadoras penetrassem no movimento.
"Existe uma cobrança muito grande dentro da própria cena, uma cobrança de postura, de como você se apresenta, suas roupas, o que você escuta. Através da pesquisa, percebi que existiam raízes conservadoras, como por exemplo o machismo, a valorização do mais forte", observa.
Para Ricardo Alexandre, a quantidade de regras é a primeira coisa que vai contra o espírito do rock em sua essência. O que pode ser um indicativo para a ausência de impopularidade do gênero hoje entre os mais jovens, que hoje ouvem suas inquietações ao som do rap e do pop.
"No Brasil, no século 21, se o artista se define como rock, já não é rock. Um artista que se define como rock, dentro do cenário de rock que se impôs no Brasil, ele tem que ser conservador. Se não politicamente, esteticamente. Banda de rock no Brasil precisa se vestir, tocar guitarra de determinado jeito. E não tem nada menos rock do que precisar fazer coisas", explica.
O rock, na sua visão, está vivo e bem, sim, obrigado. A questão é onde procurá-lo. Certamente, não numa rádio rock ou numa manifestação política. "Se você pensar o rock como postura, ele pode ser encontrado em muita gente. A maior banda de rock hoje, sem ironia, é o BaianaSystem. É uma banda de rock brasileira", observa.
"O rock como linguagem alienígena no Brasil não foi incorporado à cultura brasileira, como poderia ter sido. Ele continua alienígena até hoje. O rock brasileiro é Novos Baianos, Os Mutantes, Caetano Veloso, BaianaSystem, também é a Legião Urbana, mas é justamente a falta de regra. Ele está justamente onde menos se espera."
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