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Abbey Road faz 50 anos hoje, mas internet mudou papel das capas de discos

Exposição em Hamburgo (Alemanha) mostra a foto que ilustrou o disco Abbey Road dos Beatles  - Getty Images
Exposição em Hamburgo (Alemanha) mostra a foto que ilustrou o disco Abbey Road dos Beatles Imagem: Getty Images

Kaluan Bernardo

Do TAB, em São Paulo

08/08/2019 18h27

Há exatos 50 anos, os Beatles atravessavam a faixa de pedestres da Abbey Road, transformando a rua em uma das mais famosas do mundo. Mais do que um ícone pop, a capa do disco que leva o mesmo nome da rua, é símbolo de uma época em que as imagens que estampavam os grandes encartes de vinil eram essenciais para o sucesso do álbum.

A era de ouro das capas de discos começa justamente com o Fab Four. Antes deles, as imagens eram apenas fotografias simples dos artistas. "É a partir de 'Sgt. Pepper Lonely Heart Club Band' que as capas se tornam um grande investimento artístico das gravadoras.", diz o crítico musical Marcelo Costa.

Mais do que icônica, a fotografia clicada pelo escocês Ian MacMillan, alimenta teorias de fãs até hoje. Há quem defenda que a capa de "Abbey Road" é cheia de alegorias a uma suposta morte de Paul McCartney, que teria sido substituído por um sósia.

Na capa, apesar de canhoto, o Paul segura um cigarro com a mão direita e é o único Beatle dando um passo com a perna destra. Ele ainda está de terno e descalço, simbolizando um defunto. John Lennon, todo de branco, é visto como um clérigo; Ringo Starr, com um terno completo, como agente funerário; e George Harrison, de jeans, como coveiro. O fusca ao fundo, com a placa "28 IF", ajuda na mitologia: fãs afirmam que é uma dica para idade que Paul teria quando morreu.

Tanto a banda quanto o fotógrafo sempre negaram as teorias conspiratórias. Mas elas marcam tempos em que, com grandes encartes nas mãos e sem internet, as pessoas passavam dias admirando a capa e refletindo sobre seus possíveis significados.

Capas em tempo de streaming

50 anos depois, quando a capa muitas vezes é apenas um pequeno pedaço da tela do smartphone ou do computador, entre várias informações no serviço de streaming, ela continua com esse poder? Mesmo que as vendas de vinis cresçam em alguns nichos, é possível pensar em novos encartes atraindo ouvintes e fãs por décadas, como os Beatles fizeram?

Para Ramiro Zwetsch, sócio da loja de discos Patuá, as capas continuam sendo importantes mesmo em plataformas digitais. "Funcionam como uma isca para a pessoa que está navegando. Ela para lá e quer ver saber mais sobre a música associada à imagem", comenta.

As capas perdem força com a chegada do CD, quando as imagens de encarte ficaram nove vezes menores. Ainda assim, isso não impediu que bandas dos anos 1990, como Nirvana, criassem artes icônicas como a de "Nevermind", que dialoga com a atmosfera criada pelas letras do disco. Para Marcelo Costa, na internet, as capas voltam a ganhar relevância: "É o que identifica o disco nas resenhas em blogs, nas redes sociais, nos comunicados de imprensa. A capa é o involucro que fecha o disco todo", diz.

O futuro das capas, na verdade, está mais relacionado ao futuro do conceito de álbum. "Vivemos uma grande era do questionamento do disco como um produto final e fechado. Diversos gêneros apostam cada vez mais no single, que historicamente valoriza menos a arte da capa", diz Costa.

Zwetsch reconhece que, em alguns gêneros, como o funk carioca, a capa já não tem mais tanto valor - justamente porque a lógica de produção e lançamento é mais voltado ao single. "Muitas vezes o artista solta a música direto no YouTube e já era. Mas, talvez, exista esse pensamento porque o gênero já é tão forte que se sustenta sozinho", diz.

A capa, enquanto arte conceitual, continua tendo seu valor em diversos nichos. Zwetsch cita como exemplo o último disco do Bixiga 70, Quebra-Cabeça, que foi batizado em função da capa. Ele comenta também o último de Elza Soares, "Deus é Mulher", que marca a identidade e a fase que a cantora vive.

Costa, no entanto, acredita que a valorização da capa e do álbum ainda acontecem porque os músicos atuais cresceram com os CDs e vinis como referência de objeto de arte. Agora, começamos a ter uma geração que já cresceu com a internet e que pode mudar o cenário. "Com os singles, a indústria tenta ditar uma nova moda. A capa ainda é um arquétipo de arte na música pop e sempre vai ser importante, mas ela está sendo atacada - e resistindo - dentro desta lógica de mercado".

Como nasce uma capa

Eleita como a segunda melhor capa de um disco brasileiro em enquete da Folha de S. Paulo, a arte de "Todos os Olhos", disco de Tom Zé é emblemática até hoje. O disco tem uma capa tão ambígua quanto seu título. Por muito tempo, fãs discutiram se a bolinha de gude da imagem abaixo estava inserida em um ânus ou em uma boca.

Todos os olhos - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Reinaldo Moraes, escritor e o fotógrafo da capa, fala sobre o mistério. "A ideia original era fotografar um cu e dar o tratamento para deixar ambíguo. Eu tinha uma máquina bem vagabunda e uma namorada conivente com minhas ideias estapafúrdias, que topou ser modelo da sessão anal", diz. A ideia do trocadilho com ânus foi do poeta Décio Pignatari, que tinha uma agência de publicidade na qual Moraes era assistente.

Moraes, que no disco é creditado como o autor da imagem, diz que, em um quarto de hotel para caminhoneiros, fez "uma série de fotos escatológicas e meio patéticas com as bolinhas de gude". No final, concluíram que a foto não havia ficado ambígua o suficiente. "Então tive a ideia de usar a boca da modelo, que era muito carnuda, com a bolinha", conta.

A história, no entanto, é controversa. Chico Andrade, publicitário e sócio de Pignatari, disse à TV que a modelo era uma prostituta. Em seu blog, mais tarde, ele inclusive divulgou a foto completa com uma modelo com a bolinha no ânus. O mistério permanece, mas a ambiguidade ficou para a história e a capa, de 1973, foi uma das artes gráficas mais subversivas lançadas durante a ditadura militar no Brasil.

Outra artista que também brinca com o imaginário anal é a rapper Linn da Quebrada. Em seu disco de estreia, "Pajubá", de 2017, o CD estampa a bunda da artista e o buraco do CD está posicionado justamente sobre o ânus.

Tanto a foto do CD quanto a do encarte são de Nub Abe, mas o conceito visual do disco foi criado coletivamente, conta o designer gráfico e performer Kako Arancibia. Financiado por crowdfunding, o encarte estampa uma travesti negra alisando uma peruca com o ferro de passar roupa. "Aquilo é Pajubá acontecendo", diz Aranciba. Pajubá é uma espécie de dialeto adotado pela população LGBT.

"Fizemos uma série de fotos na Casa Nem [espaço de acolhimento de trans e travestis, no Rio de Janeiro] e quando vimos esse registro, que não foi posado nem nada, tivemos uma epifania", diz Aranciba. "A capa funciona como um meme: para quem é daquele universo, se conecta com aquela linguagem, ela faz todo sentido - não precisa explicar, defende.

Aranciba conta que a ideia de lançar um disco em 2017 soava tão "anos 1990", que eles fizeram questão de buscar referências no passado. "As fotos foram feitas com um cybershot, com flash estourado. Era uma brincadeira", conta. "Achávamos importante a música e a arte gráfica existir não só na internet, mas em todos os lugares. A própria música da Linn diz isso: nossos corpos não podem ser invisíveis, precisam existir em vários espaços", defende.

De "Abbey Road" a "Pajubá", a música se transformou bastante, mas as capas de disco continuam relevantes - mesmo que ocupando diferentes espaços e cumprindo diferentes funções. Seja como for, em tempos conservadores, Moraes acredita que toda a cultura volta a levantar bandeiras de contestação. "É importante fazer tudo do avesso e ponta-cabeça. É preciso voltar uma contracultura", defende Moraes.

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