Topo

Turma do Dudão: como um gibi evangélico de 1990 viralizou agora nas redes

HQ Turma do Dudão - Reprodução
HQ Turma do Dudão Imagem: Reprodução

Henrique Santiago

Colaboração para o TAB

21/07/2020 04h01

Se você acessou qualquer rede social nos últimos dias, é provável que tenha visto algum meme com o desenho de um garoto com a barriga de fora, dizendo: "Deus está triste com tanta violência" ou, ainda, uma criança de cabelos loiros rindo e dizendo "Ah! Ah! Ah! Favelado!". Esses personagens fazem parte da Turma do Dudão, uma revista em quadrinhos evangélica, voltada ao público infantil, lançada em 1992. A internet a redescobriu em 2020.

Em 1992, o então pastor de uma igreja evangélica do Rio de Janeiro, Eduardo Samuel da Silva, pensou em um formato além da igreja para evangelizar crianças. A resposta veio na forma de um gibi. Ele se uniu ao irmão, o desenhista Jairo Alves da Silva, que tinha uma pequena empresa, e um funcionário, Joel Duarte, para levar o projeto adiante.

Aos 62 anos, o criador do Dudão conta ao TAB que a falta de recursos financeiros impossibilitou um trabalho "mais profissional" no começo, pois todas as ilustrações eram feitas à mão, sem auxílio de computador. O ex-pastor foi responsável pela concepção dos textos de todas as HQs publicadas em 18 volumes, até 2000.

Hoje, as mensagens podem impressionar por trazer elementos ligados a racismo, gordofobia, preconceito de classe etc. Mas Silva explica o que tinha em mente à época. "Para ensinar o lado bom, eu tenho que mostrar o lado ruim. Como eu vou fazer a história de alguém que mente? Ele tem que mentir e eu vou dizer que isso não deve ser feito. A ideia era o 'cara' fazer alguma coisa errada e o Dudão explicar que não era bem assim, que Jesus não gosta e que temos que amar Jesus", detalha.

As referências para os personagens, aliás, partiram de seu próprio convívio social. Dudão, como o nome sugere, era o próprio Eduardo; Paçoca foi inspirado em seu amigo Nilson Dantas, que adorava comer paçoca quando criança, daí o apelido; Lipe e Binho são seus filhos; Rebeca era da igreja; Zuca era outro amigo de infância.

Potencial para memes

A narrativa das histórias e os traços dos cartuns, com destaque para os olhos dos personagens, são dois ingredientes fundamentais para a criação de memes. Isso despertou a atenção do estudante Aleksander José, 17, que teve o primeiro contato com Dudão em um grupo de "shitpost" (publicações sem contexto, de cunho humorístico) da Turma da Mônica no Facebook, e decidiu reunir pessoas nesse mesmo site com os personagens do gibi evangélico.

Em menos de um mês, o grupo reuniu cerca de 35 mil participantes, entre eles o próprio Eduardo Samuel da Silva. A página, contudo, foi derrubada antes de completar 30 dias e motivou José a criar uma segunda versão, agora com pouco mais de seis mil membros. Os memes geralmente fazem piada com as contradições morais dos personagens, religião e até dublagens e animes com Dudão, Paçoca e cia.

"As histórias são cabulosas, mostram sempre uma lição de moral que falam que algo é errado, e só de ver a arte você sabe que dá para brincar. É uma combinação para fazer meme", diz o adolescente. "O tempo de vida é rápido na internet. Você vê que tem meme que dura um mês, dois meses, três meses. Provavelmente o grupo vai cair em acessos por conta de um declínio. E o incrível é que deu certo, um negócio completamente aleatório."

Douglas Calixto, jornalista e doutorando em comunicação pela USP (Universidade de São Paulo), explica por que os memes da Turma do Dudão fazem sucesso entre os mais jovens. Além do evidente propósito de rir, ele indica que essa linguagem é utilizada como forma de representar o mundo e dar sentido à vida.

"Damos risada hoje de uma revista de 1992, como algumas músicas dos Mamonas Assassinas ou a sensualização da Xuxa. São elementos da cultura infanto-juvenil socialmente aceitos nos anos 1990 e hoje geram certo espanto. O meme do Dudão engaja por trazer elementos de outra época que hoje se tornam motivo de riso, tanto em termos estéticos quanto narrativos", avalia.

Como disse Aleksander José, esse tipo de linguagem tem prazo de validade curto. E essa efemeridade, na avaliação de Calixto, está integrada ao cotidiano acelerado de jovens que vivem em um mundo de constantes transformações. "O meme é feito para durar pouco, tem que ser autoexplicativo. Você não faz o meme para durar seis meses. É para agora, porque amanhã você tem que fazer outro. Sendo o meme uma linguagem que atende a uma demanda comunicativa de pressa, são esses pontos que fazem sucesso. Não é só porque é engraçado", complementa o estudioso.

Silva diz gostar dos memes publicados nas redes sociais. "Todo meme que fazem eu vou aceitar muito bem, porque foi assim que o Dudão ressurgiu. O que eu condeno são palavrões. E imoralidades também."

Sucesso não vem de hoje

Quem vê hoje a repercussão da Turma do Dudão nas redes sociais pode se surpreender com o impacto que os personagens tiveram no meio evangélico nos anos 1990, em um mundo sem acesso à internet. O ponto de mudança aconteceu com a troca de editoras, passando da Louvor para a Vida, que possibilitou um maior alcance de público com vendas de exemplares em bancas de jornais, lojas evangélicas e nas próprias igrejas.

Segundo Eduardo Samuel da Silva, cerca de um milhão de gibis foram impressos entre 1992 e 2000 —edições em inglês eram vendidas nos Estados Unidos. Além das revistinhas, Dudão investiu também na música, com um EP gravado por uma ainda desconhecida cantora Aline Barros, jogos e shows pelo país. Ele conta ter feito apresentações em lugares como Maracanãzinho e para mais de três mil crianças no Acre, sempre acompanhado de dois dos seus filhos.

Apesar da "febre religiosa", diz não ter feito fortunas com Dudão. "O nosso objetivo era evangelizar crianças, e não ganhar dinheiro. Pedíamos uma oferta de um salário mínimo para as igrejas para fazer as apresentações, mas nos apresentávamos mesmo se não recebêssemos", recorda.


Controvérsias religiosas?

Os ensinamentos cristãos da revista em quadrinhos eram acompanhados por mensagens politicamente incorretas: era comum ver nas historinhas ofensas contra negros, gordos e pobres. Questionado pelo TAB, Silva afirma ter uma visão diferente dos constantes xingamentos nas historinhas, mas diz respeitar as opiniões.

"Há 30 anos, a tônica da vida era outra. O Zuca, que é meu amigo Romualdo na vida real, eu chamava de 'neguinho', 'negão', 'preto'. Aliás, meus melhores amigos são negros. Isso aqui no Rio de Janeiro sempre foi normal, mas agora, se eu falo isso, sou racista e não sei o que mais. Vivi em favela fazendo a obra de Deus, nunca tive preconceito contra nada", argumenta o ex-pastor.

Se fosse escrever uma nova história hoje, Silva seria mais sutil na escolha das palavras, só que sem "perder a essência". "Atualmente, a convivência da garotada é outra. Hoje é videogame, celular e computador, o que as crianças vivem agora é totalmente diferente daquela época. Eu botava a agressividade para mostrar o erro. Eu falava 'negão', 'favelado' para chocar e para que o Dudão pudesse repreender."

A pedido do TAB, Iuri Andréas Reblin, professor e doutor em teologia pelas Faculdades EST do Rio Grande do Sul, analisou o papel da religião na construção dos textos e imagens da Turma do Dudão.

"As histórias trazem uma teologia focada na ideia de moralidade cristã, que traduz a ideia de que se tu for um crente fiel, tu vai ser recompensado por Deus. Se é forte na fé, bênçãos serão concedidas. Essa dualidade de bem e mal é muito perceptível nas teologias evangélicas", opina o especialista.

Diferentemente de outros gibis, em que o vilão é bem definido, na Turma do Dudão o antagonista é qualquer um que esteja em descompasso com os ensinamentos da Bíblia. "Um ponto predominante no gibi é uma ênfase maior no Antigo Testamento, de um Deus de juízo e punitivo. É recorrente o Dudão dizer que Deus está triste com tal coisa. Para determinadas teologias que trabalham com a ideia de prosperidade, há essa perspectiva de recompensa também", assinala.

Eduardo Samuel da Silva, o criador do Dudão, se apresentava para crianças com seus filhos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Eduardo Samuel da Silva, o criador do Dudão, se apresentava para crianças com seus filhos
Imagem: Arquivo pessoal

A volta de Dudão

Com ou sem controvérsias, o fato é que o gibi deixou de ser produzido em 2000, quando a editora estrangeira Zondervan comprou a Editora Vida e interrompeu a impressão dos exemplares. Eduardo até chegou a lançar uma edição independente, mas os altos custos impediram de seguir em frente com a publicação. Entretanto, ele continuou a se apresentar como Dudão até 2015 quando, por causa da idade, preferiu aposentar o personagem. Só que esse cenário está prestes a mudar.

A repercussão dos memes da Turma do Dudão motivou Eduardo Samuel da Silva, hoje aposentado e dono de uma loja de acabamentos em vidro, a "ressuscitar" o Dudão. Um perfil foi criado no Facebook para compartilhar os gibis na íntegra e conta com mais de quatro mil curtidas. As interações dos seguidores vão na linha de brincar com as falas e ações de cada um dos personagens.

"Já que o pessoal está animado, vamos fazer um trabalho mais digital. Tenho três números inéditos que estão guardados, de repente vou lançar digitalmente. De repente, se pegar...", diz ele, sobre o futuro do gibi evangélico que criou há quase 30 anos.