'Wall of Moms': ao longo da história, mães têm papel político em protestos
Desde que os protestos contra o racismo explodiram por diversas cidades norte-americanas, uma imagem chamou a atenção da imprensa: mulheres formando uma barreira para proteger os manifestantes de serem atacados pela polícia. O grupo foi batizado de "Wall of Moms" (barreira de mães, em português) e foi comparado a diversos movimentos de mães presentes na América Latina, como as Mães de Maio e as Mães pela Diversidade, no Brasil, e as Madres de Plaza de Mayo, na Argentina, além de outros movimentos semelhantes no Sri Lanka e na Armênia.
De Portland, no Oregon, a Tampa, na Flórida, de leste a oeste, o movimento político de mães se espalhou com força. Na América Latina, a organização de mães acontece também de norte a sul do continente, desde Buenos Aires até o México, há décadas. Apesar de diferentes contextos, o que todos esses movimentos têm em comum é a sede de justiça e o grito contra a violência cometida contra seus filhos, seja na forma de racismo, LGBTfobia ou qualquer outro tipo de injustiça ou preconceito.
"Nossa luta é política porque a morte dos nossos filhos foi política", afirma Débora Maria da Silva, 61, que participa do movimento Mães de Maio. "Não existe vida que segue para uma mãe que perdeu o filho, a nossa vida para ali. A mãe acaba indo para a luta porque não tem outro remédio, ou você luta por justiça ou você morre", diz.
O filho de Débora, o gari Edson Rogério da Silva Santos, foi morto em 2006 nos chamados "Crimes de Maio", assassinatos cometidos por grupos de extermínio em resposta a uma onda ataques do PCC por todo o estado de São Paulo. Foi na busca por justiça pela morte de seu filho que ela e outras mães assumiram um papel político. Assim, surgiu o movimento Mães de Maio, que reúne mães e familiares de vítimas da violência policial pelo Brasil. "Nossos filhos têm nome e sobrenome e nós lutamos pela memória deles."
Las madres 'hermanas'
Há 30 anos, outro movimento de mães no Brasil luta pelo mesmo objetivo, as Mães de Acariri. A chacina de Acariri aconteceu em uma favela no Rio de Janeiro, em 1990: onze jovens foram mortos e até hoje os familiares aguardam pela resolução dos crimes.
Na Argentina, o tempo de espera é ainda maior. As Madres de Plaza de Mayo e as Abuelas de Plaza de Mayo aguardam notícias de seus filhos e netos desaparecidos durante a ditadura argentina, que durou de 1976 a 1983. O movimento das mães e o das abuelas (avós) surgiram em 1977. Cerca de 500 crianças desapareceram e apenas 130 casos foram solucionados até hoje.
"A partir do momento que se organizaram, as madres e abuelas não estavam mais procurando apenas os seus próprios. Elas buscavam as vítimas da ditadura", explica Aline Lopes Murillo, doutoranda em Antropologia Social na USP (Universidade de São Paulo), que estuda o movimento das argentinas. "Elas transformaram o sentido de maternidade na Argentina. A maternidade deixou de ser o cuidado individual, doméstico e privado, e se transformou em algo coletivo, ganhou dimensão política", afirma.
Na época da ditadura argentina, as mães eram figuras centrais na organização social do país. À família, principalmente à mãe, cabia o papel de manter os filhos longe dos "movimentos de subversão". Seguindo uma tradição fortemente católica no âmbito privado e no discurso público, as mães tinham um lugar sagrado. "A maternidade se torna política a partir do momento em que o Estado tira daquelas mulheres o direito de serem mães. Ele rompe um laço primordial entre mães e filhos, e aí começa uma mobilização política para garantir o direito de ser mãe", diz Murillo.
Mães e avós do país vizinho inspiram movimentos de mães por todo o mundo. "O caso argentino não é um caso isolado. O acionamento da condição de mãe possui autoridade moral e afetiva em atos políticos em várias partes do mundo. A legitimidade da mobilização das mães tem a ver com o caráter excepcional dos laços entre mães e filhos, que despertam solidariedade intensa e são sustentados por sentimentos de afinidade e intuição imediatas", observa a pesquisadora.
Amor de mãe
A literatura e o cinema já narraram a formação política da figura materna. Em 1907, o escritor russo Máximo Gorki publica "Mãe", romance em que a protagonista e seu filho passam por tragédias e dificuldades e, no percurso, são transformados em militantes, passam a atuar politicamente. Na vida real de muitas mulheres, a maternidade é responsável por aprofundar debates e questionamentos.
Relatos sobre o envolvimento de mães em lutas políticas são comuns. Às vezes, até literalmente: mães costumavam acompanhar os filhos durante a Guerra do Paraguai. Na Espanha, o regime do ditador Francisco Franco foi acusado de roubo e sequestro de crianças, ao longo de décadas, e o movimento das mães foi responsável pela abertura de inquéritos contra os médicos — o primeiro foi a julgamento em 2018.
Para Francilene Gomes Fernandes, assistente social, pesquisadora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e militante do movimento Mães de Maio, o fato de mulheres terem gerado, amamentado, criado e zelado por seus filhos faz com que elas tenham um papel ativo de proteção e autoridade. "Existe isso na maternidade. Não se trata de um reforço do papel de gênero, mas da potência e da politização para lutar por algo que foi gerado e cuidado com muito amor a vida toda", afirma.
Débora Maria da Silva opina que a luta faz parte do instinto materno. "Não se cria um filho para o Estado levar embora como se não fosse ninguém. As mães vão parir uma nova sociedade."
"A gente não tem um filho para ele sofrer violência", diz Maju Giorgi, 54, presidente e fundadora do movimento Mães pela Diversidade, que defende a causa LGBTQ+. "A violência é nossa maior preocupação, nós somos unidas pelo medo. O mundo é muito hostil com os nossos filhos, então resolvemos lutar por justiça", afirma.
O filho de Giorgi, André, se assumiu aos 14 anos. "Eu já sabia, mas ele estava sofrendo demais na hora de contar, então eu o abracei, beijei e falei que estava tudo bem. No minuto seguinte, quando fiquei sozinha, o chão se abriu, por saber a violência e o preconceito que ele ia sofrer. Ele já foi espancado duas vezes, então fui para a militância", conta. O papel das mães nessa luta é de levar informação e adentrar espaços onde seus filhos são marginalizados para garantir direitos a eles.
O próprio movimento das Mães pela Diversidade começou no Orkut e migrou para o Facebook. Hoje, elas são linha de frente na Parada LGBTQ+ de São Paulo. "Estamos mostrando para a sociedade que eles têm mãe e pai, não são filhos de chocadeira", diz Giorgi.
A associação tem cerca de 2 mil membros pelo Brasil, 700 em São Paulo — e apenas 20 pais na capital paulista. "A mãe é mais propensa a aceitar, geralmente é mais livre do machismo. Pais escutam que é xingamento ser 'viado' ou ter um filho 'viado'. Aquilo tem um peso, uma vergonha. E na luta, quem assusta e é respeitada é a mãe", analisa Giorgi. "A mãe é sempre o segundo alvo da LGBTfobia. É uma escolha de Sofia: ela tem de escolher entre o filho hétero e o gay, tomar o partido do filho gay ou do pai da criança, e vê a vida toda desmoronar, o casamento acabar. A família toda sofre uma violência."
O sentimento de indignação é comum a todas as mães cujos filhos sofreram violência e é o que move a presença delas nas ruas. Na América Latina, berço de ditaduras violentas, os movimentos ganham mais expressão. Além do Brasil e da Argentina, as mães mexicanas também marcham anualmente em memória dos 40 mil desaparecidos desde 2006 por causa da guerra às drogas.
"Nossa formação histórica e o fato de essas ditaduras serem inconclusas, terem terminado sem justiça para muitos, faz com que a gente ainda viva a realidade da perda, mesmo na democracia", afirma Fernandes. "A violência é tão visceral que essas mulheres não têm outra opção, senão a militância." Entre as mulheres negras, os movimentos são ainda mais expressivos por conta do racismo. Nos protestos recentes, mães brancas marcharam em apoio à causa do Black Lives Matter, mas as mães negras se organizam por meio do coletivo Mothers of The Movement. São mães cujos filhos foram mortos por tiros de armas, sejam em confronto com a polícia ou não, que estão organizadas desde 2016.
No Brasil, o movimento Mães de Maio reúne muitas mães negras. "É o que a gente vê empiricamente na militância, maioria de mulheres negras e mães de crianças negras. Entre elas, existe essa potência maior e essa sede de justiça, que tem relação com a expressão do racismo e a forma como esse racismo se materializa na morte dos filhos", analisa Fernandes.
Fernandes entrou para o movimento das Mães de Maio quando seu irmão, Paulo Alexandre Gomes, também se tornou uma vítima dos Crimes de Maio. "É muito incipiente a presença de outros familiares nesses movimentos, às vezes aparecem alguns pais, mas são poucos. Acho que com as mães existe uma conexão tão visceral que não tem comparação", afirma. E elas ganham força graças ao sentimento de solidariedade e de identificação. "Elas vivem todas as mesmas dores. Apesar da barreira da língua, quando as Mães de Maio visitam outros países, é impressionante a conexão. O que as une é o sentimento de dor, infelizmente, e as conexões se tornam ainda mais possíveis com as redes sociais."
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