Sem xampu nem desodorante: professor de Yale contesta obsessão por limpeza
O médico James Hamblin estava com seu segundo livro pronto para o lançamento em maio. "Clean: The New Science of Skin" (sem edição em português) havia sido revisado, editado e aguardava a publicação.
Só tinha um problema: o livro, fruto de uma pesquisa de quatro anos e meio, critica a obsessão da humanidade por rituais de limpeza e produtos como sabão, cremes hidratantes, xampus, esfoliantes e todos os demais passos que inventamos de incluir na rotina de "higiene".
Seria razoável colocar tudo isso em questão enquanto rolava uma pandemia, na qual aprendemos que lavar bem as mãos pode literalmente salvar vidas? Para quem lê o livro, a resposta é bem clara: sim. O autor decidiu incluir uma página no início do livro, explicando que o trabalho foi finalizado antes da pandemia do novo coronavírus, mas nenhuma outra explicação se fez necessária.
Hamblin, que é professor na Universidade de Yale (EUA) e jornalista na revista norte-americana The Atlantic, não coloca em xeque as práticas que realmente matam bactérias, vírus e nos ajudam a prevenir doenças, mas sim aquelas sem as quais podemos viver tranquilamente. Xampu? Pode cair fora. Hidratante? Só serve para repor os óleos que você mesmo tirou da sua pele com o sabonete abrasivo que usou no banho. Skincare, então? Uma grande lista de produtos caros e, na maioria das vezes, sem eficácia comprovada.
Hamblin conta que passou por um longo período de adaptação e não usa mais esses produtos há cinco anos, mas garante que não julga quem prefere manter sua rotina de beleza e perfumes. Pode ser uma atividade prazerosa, que envolve autoestima e relaxamento. TAB conversou com o médico em uma chamada de vídeo para saber o que ele entende por higiene e como nossas noções sobre saúde podem mudar depois da pandemia.
TAB: Desculpe perguntar, mas como você toma banho?
James Hamblin: Eu mudei para sempre, me converti (risos). Só uso água, menos nas mãos, porque lavo bem as mãos e quero que isso fique bem claro para todo mundo. Durante o processo de pesquisa e escrita do livro, tentei diversas coisas, então me familiarizei com vários produtos, mas prefiro ficar sem elas. E respeito quem tem rotinas completamente diferentes.
TAB: Qual foi o processo de publicar esse livro durante a pandemia?
JH: Foi esquisito lançar agora. Eu estava um pouco preocupado, achando que as pessoas confundiriam — algumas pessoas acham que eu estou dizendo que sabão é ruim, e eu não estou, não questiono lavar as mãos. O sabão é uma ferramenta, como um remédio ou um martelo: tem usos específicos, é muito importante em algumas circunstâncias, mas não significa que mais é melhor. Um martelo é útil, cinco martelos não são melhores do que um. A gente deveria pensar em sabão da mesma forma. Muita gente está trabalhando em casa agora e está encontrando liberdade de experimentar com sua rotina de higiene de uma forma que não conseguia em tempos normais. Então [o livro] está se encaixando bem a isso.
TAB: O que você considera boa higiene?
JH: Higiene consiste em comportamento para prevenir doenças. Lavar as mãos, ter cuidado com suas gotículas respiratórias, não tocar no rosto e os olhos, não colocar o dedo no nariz. Coisas nas quais as pessoas estão prestando mais atenção agora. E o óbvio também, como não andar por aí com sangue, vômito ou fezes em você. Para além disso, começamos a falar das preferências por coisas como a aparência do nosso cabelo, dentes brancos, nosso cheiro. Isso é talvez associado a higiene, mas na verdade você pode não cheirar bem e mesmo assim não transmitir nenhuma doença às outras pessoas. Nós precisamos nos concentrar nas coisas que estão ajudando a manter nossas comunidades e famílias seguras e saudáveis, e perceber que o resto é importante social, cultural e talvez pessoalmente. E tudo bem. Mas, se você quiser abrir mão, não há motivos de saúde para te impedir.
TAB: Alguns dos hábitos que adquirimos na quarentena, como lavar as mãos corretamente e usar máscaras, vão se manter?
JH: Acho que sim. Algumas pessoas nunca mais vão se sentir confortáveis sem máscara em aglomerações. E espero que todos nós já estejamos melhores em lavar as mãos, além de o básico de não ir ao trabalho quando você está tossindo ou com uma gripe. Por outro lado, imagino que, com os lugares reabrindo, estar com o cabelo penteado, pele lisinha e cheirar bem tendem a ser símbolos de cuidado com a higiene. Talvez comecemos a colocar ainda mais valor nessas coisas, porque estamos com medo de sair e pensamos que, se uma pessoa parece estar bem arrumada, é uma pessoa mais segura para se estar perto. Historicamente, depois de pandemias, tendemos a nos importar bastante com símbolos superficiais e triviais de limpeza, mas prever o futuro é difícil agora.
TAB: Você diria que esses símbolos acabam sendo mais importantes do que a higiene em si? Antes da pandemia, muitos de nós nem sabiam como lavar as mãos, mas estávamos sempre perfumados ou com os cabelos penteados.
JH: Se alguém tem dentes brancos e retinhos, está perfumado e o cabelo está bonito, presumimos que aquela pessoa tem mais chances de estar com as mãos limpas. Mas não tem como saber isso. Essas duas coisas se misturam, e não sei se isso vai mudar. Eu me preocupo com o fato de que a gente pode voltar a reforçar padrões bem rigorosos de aparência, recaindo em questões de dinheiro e classe — quem tem condições de aderir a esses padrões e quem, por diversas razões, não tem a mesma facilidade. Eu adoraria se a gente pudesse manter a mente mais aberta, mas temo que não vamos.
TAB: É interessante, porque aqui no Brasil vemos como esses símbolos de limpeza e aparência são importantes. Recentemente escrevi sobre como os perfumes são mais valorizados nas regiões em que a renda da população é menor. Quando você estava pesquisando skincare e outros produtos caros, o que mais te chamou atenção?
JH: Uma das primeiras coisas nas quais as pessoas vão gastar tempo e dinheiro, mesmo em países subdesenvolvidos onde muitas vezes não há água corrente em casa, é ter água, sabonete, xampu para poder tomar banho e tentar estar em conformidade com os padrões de aparência. O mesmo acontece com o cheiro, porque ainda usamos essas coisas para discriminar as pessoas. Eu mesmo não enxergava isso, mas em diversas culturas progressistas abrimos bastante nossas cabeças em relação a políticas sexuais, ambientais, raciais, mas ao mesmo tempo nos sentimos muito tranquilos em dizer que certas pessoas são nojentas. São termos de julgamento que não usamos mais contra pessoas com deficiência, que estão acima do peso, e ainda usamos contra pessoas que cheiram mal ou que não parecem ter acesso a água, sabão ou perfume.
TAB: O que as pessoas estão deixando passar batido e que talvez devêssemos explicar melhor ou ensinar nas escolas?
JH: Se tem algo que podemos ensinar melhor — e falo pelos Estados Unidos, ao menos — são habilidades de raciocínio crítico. Ler um artigo e entender de onde vem aquilo, quais as motivações do autor; o básico de um estudo científico... Acho que as pessoas não costumam pensar em coisas como tamanho das amostras (nas pesquisas), metodologia básica, quais tipos de estudos existem. Mas, na maior parte do tempo, tem sido incrível perceber como as pessoas pegam a linguagem da epidemiologia, virologia e desenvolvimento de vacinas. O quão rápido as pessoas se tornaram quase experts nesses campos que, um ano atrás, eram desconhecidos.
TAB: Esse conhecimento sobre saúde e pesquisa pode nos ajudar a entender melhor o que estamos passando na nossa pele — cremes, sabonetes e outros produtos que você menciona no livro?
JH: Talvez sim. Muitas pessoas usam produtos e determinados ingredientes porque são culturalmente importantes, porque alguém da família ou um amigo recomendou, porque elas curtem. E tudo bem. Mas se você é uma das pessoas que usa produtos porque a embalagem diz "estudos comprovam" ou "clinicamente provado", aí eu acho que tem espaço para perguntar: qual é esse estudo? O que ele significa? Com muita frequência não existe estudo, ou o estudo não era cientificamente válido. Eu vejo as rotinas de skincare, cuidados pessoais e higiene de uma forma similar à dieta ou à religião de uma pessoa, no sentido de que aquilo é muito pessoal para cada um, e traz um valor que não pode ser explicado simplesmente por fatos, de uma maneira empírica. Precisamos valorizar e aceitar isso. Então, no livro, estou tentando falar com pessoas que estão interessadas em examinar a história e cultura por trás do porque a gente acredita no que acredita.
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