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Ellen DeGeneres e 'Succession': a cultura tóxica em ambientes de trabalho

Ellen DeGeneres - Getty Images
Ellen DeGeneres Imagem: Getty Images

Arthur H. Herdy

Colaboração para o TAB, de Brasília

22/09/2020 04h01

À frente de um programa de entrevistas com sucesso estrondoso, Ellen DeGeneres também é ícone da comunidade LGBTQIA+ e amiga das celebridades. Mas a fama da apresentadora mudou: denúncias que circularam nas redes sociais dão conta de que ela seria uma chefe abusiva e negligente com o assédio moral na equipe que comanda. Será que a mesma mulher que pede gentileza aos telespectadores vira uma megera quando as câmeras estão desligadas?

A polêmica parece ter começado com um tuíte. Em março, o apresentador de podcast Kevin T. Porter publicou uma mensagem na rede social, alegando que Ellen era "uma das pessoas mais malvadas vivas". O post viralizou. Durante os primeiros dias de isolamento por causa da pandemia, Ellen também gravou um vídeo comparando o isolamento em sua mansão com uma prisão. Pegou mal.

A comediante retornou ao programa nesta segunda-feira (21). Perante uma plateia virtual, ela se responsabilizou. "Conversamos muito nas últimas semanas sobre o programa, nosso ambiente de trabalho e o que queremos para o futuro. Fizemos as mudanças necessárias e hoje começamos um novo capítulo", disse. "A verdade é que eu sou a pessoa que você vê na TV. Também sou muitas outras coisas. Às vezes fico triste, brava, ansiosa, frustrada, impaciente. E estou trabalhando nisso tudo."

O caso descortinou denúncias de abusos e a suposta formação de um ambiente de trabalho tóxico nos bastidores. Ao que parece, a TV norte-americana está cercada deles, inclusive na ficção. Um bom exemplo é a série "Succession", da HBO, vencedora de sete prêmios Emmy na noite de domingo (20), incluindo melhor drama. O mote é a história da bilionária família Roy, dona de um conglomerado de mídia que vive um jogo de poder entre um patriarca implacável e seus filhos. No programa, há espaço para discutir as relações abusivas entre chefes e funcionários.

Elenco da série 'Succession' - Reprodução - Reprodução
Elenco da série 'Succession'
Imagem: Reprodução

Os Roy parecem ser um retrato dos Murdoch, família australiana dona da Fox News. O canal a cabo, comandado por Roger Ailes, é tema de outras duas produções recentes: "O Escândalo", filme de 2019, e a minissérie "The Loudest Voice". Em ambas, o tema é assédio sexual. Gretchen Carlson, jornalista da Fox News, chegou a processá-lo. O caso levou à derrocada do figurão em 2016, que morreu no ano seguinte. Outra série de sucesso, "The Morning Show", da Apple TV+, com Jennifer Aniston e Reese Witherspoon, mostra os bastidores de um programa matutino depois da saída de um dos âncoras, acusado de assédio sexual.

O inferno são os outros

"Essa indústria dos sonhos seduz as pessoas e elas, homens ou mulheres, acabam se sujeitando a relações abusivas para garantir o cargo. Quando comecei a trabalhar na área, há 25 anos, ainda estagiária, era considerado normal que o diretor e o produtor berrassem. A gente tinha que se sujeitar, afinal de contas tivemos a oportunidade de estar num set de filmagens", relembra Anna Karina de Carvalho, produtora de cinema e diretora do Brasília International Film Festival (BIFF).

Nos anos 2000, os chefes tiranos, pelo menos no entretenimento, não geravam tanta controvérsia assim. Foi nesse período que Lauren Weisberger lançou o best-seller "O Diabo Veste Prada", mais tarde adaptado para os cinemas. A autora foi assistente de Anna Wintour, poderosa editora-chefe da revista Vogue, e muitas situações descritas no livro seriam baseadas em fatos reais.

"Na cultura norte-americana, para você ser admirado, tem que passar por tortura. No Brasil, essa tortura é o salário, já que a cultura sempre foi tratada de maneira cruel", explica Anna Karina, cuja experiência no audiovisual inclui o cargo de curadora do Festival Internacional de Cinema de Estocolmo, na Suécia.

Recentemente, uma reportagem sobre a Vogue nacional reuniu denúncias de assédio moral. "Acredito que as denúncias trabalhistas contra a Ellen DeGeneres repercutiram muito porque ela é um nome gigante da TV norte-americana, mas também porque a carreira dela é construída em cima do pilar da gentileza. A Ellen termina todo programa pedindo que as pessoas sejam gentis umas com as outras, logo o público dela vai pensar que ela é uma pessoa gentil com todo mundo, inclusive com seus funcionários. No caso de uma editora de moda como a Anna Wintour, acho que o imaginário popular vai no caminho oposto: as pessoas já esperam um clichê de crueldade e de vaidade —afinal, a gente leu livros e viu filmes com histórias nesse tom", opina o jornalista Chico Felliti, autor da reportagem sobre a Vogue.

Vida real

De acordo com Renata Queiroz Dutra, professora adjunta de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília), no ordenamento jurídico brasileiro não há um conceito legal sobre assédio moral, embora as discussões sobre o assunto estejam presentes nas doutrinas e literaturas jurídicas, sendo devidamente reconhecidas atualmente pelos tribunais. O que é previsto em lei é o dano moral, ou seja, quando é ferido o direito à dignidade humana por práticas e condutas.

Esse tipo de dano não vem apenas de cima para baixo, ou seja, de chefe a subordinado: ele pode ser paralelo, de colega a colega e, mais raramente, de baixo para cima. "Trata-se de um comportamento continuado, reiterado no ambiente de trabalho", explica Renata.

Já o assédio sexual é considerado crime, consta no artigo 216 A do Código Penal, e tem regras claras: constranger alguém esperando alguma espécie de favor sexual, prática executada por profissionais hierarquicamente superiores. Para que não haja nenhum engano, hoje no Brasil se entende que a paquera, o flerte, pode ocorrer — se as investidas forem negadas e o respeito continuar imperando, sem qualquer tipo de represália, a prática é algo dentro da normalidade. Mas insistência, importunação e até mesmo o uso de linguagem inapropriada são posturas assediadoras.

O primeiro passo em ambas as situações de assédio é procurar um superior e manifestar o descontentamento. Se medidas cabíveis não forem tomadas, a empresa poderá até ser responsabilizada. "São admitidas mensagens de celular, de e-mail, comunicações de qualquer natureza. Se há uma conduta que viole a dignidade do empregador, algumas outras evidências são aceitas, por exemplo gravações, mesmo que a outra parte, o assediador, não tenha, obviamente, autorizado", esclarece.

Para a professora, hoje se discute uma prática reiterada de abusos chamada de assédio moral organizacional. Se antes as violações de dignidade partiam de uma figura perversa, personificada em um nome ou cargo, agora as práticas de gestão empresarial e estratégias como a busca por performances extraordinárias, por exemplo, também são responsáveis por gerar mal-estar e sofrimento ao empregado. Outra má notícia é a de que o Brasil não assinou e nem ratificou a Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o assunto.

"É importante rever algo. Que a submissão do contrato, algo inerente à relação de trabalho, não se confunda com sujeição à violência. O trabalhador é um cidadão, tem dignidade. Uma maneira de mudar é fazer com que as empresas abram canais de comunicação para que as pessoas denunciem os casos, até anonimamente, se preferirem. Também vale um debate mais amplo sobre o tema com a participação dos sindicatos e dos próprios funcionários", afirma.