Em performance póstuma, artista quer doar o corpo para necrofilia
A artista de Guaratinguetá (SP) Hifa Cybe tem apenas 31 anos, mas já sabe o que quer após a morte: doar seu corpo oficialmente para um necrófilo. Na performance póstuma "O Estado do Corpo", feita junto com Isabella Lauermann, estudante de Direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) de 23 anos, o objetivo principal é criticar a interferência do Estado nos corpos até depois da morte.
Para oficializar a doação do corpo, foi feito um certificado nos mesmos moldes de uma doação de órgãos. A artista quer lavrar o documento em cartório para sacramentar sua vontade final. "A performance é o documento em si, mas para isso acontecer, dependerá de fatores externos que muito provavelmente não serão favoráveis às minhas vontades. A crítica está aí: isso nunca vai se concretizar, mesmo sendo minha vontade explícita", diz Cybe ao TAB.
O elemento de choque trazido pela performance pretende abrir a discussão sobre a interferência do Estado, da religião e da vontade da família nos corpos. Esta também é soma de elementos que Cybe tangencia em seu trabalho, mergulhando em temas como violência, sexualidade, corpo e o grotesco feminino.
"Trabalho com o corpo e exploro muito a parte grotesca do feminino. O grotesco quebra a arte tradicional, aquela cadeia de pinturas clássicas que retratam as mulheres. A ideia dessa performance é concretizar todo o trabalho que fiz que, querendo ou não, é uma crítica ao Estado e ao controle do corpo", explica a artista.
A ideia de praticar uma última performance artística sempre esteve na mente da artista. Segundo ela, uma das hipóteses consideradas foi cometer suicídio em uma galeria de arte, quando já estiver velha. No entanto, segundo ela, o ato de suicídio não seria o bastante, porque ainda restaria o corpo.
Abuso de uns e outros
A necrofilia é uma parafilia que se caracteriza pela excitação sexual decorrente de observação ou prática de um ato sexual com um cadáver. Na literatura médica, é considerada uma doença, classificada como transtorno parafílico não especificado, ao lado da zoofilia e da coprofilia. No âmbito jurídico, é considerado crime de vilipêndio ao cadáver — apesar de alguns doutrinadores discutirem se a prática pode ou não ser criminalizada de fato, caso não seja cometida com o intuito real de ferir a memória e dignidade da família do morto.
Cybe escolhe um necrófilo como último destino de seu corpo como forma de relacionar a figura abusadora ao Estado, que pretende interferir diretamente nas escolhas pessoais de alguém, do nascimento à morte. Para a artista, não haveria qualquer problema caso seu corpo, de fato, fosse destinado a um necrófilo. "Eu não ligaria, porque já sinto que isso aconteceu durante toda a minha vida. O Estado sempre interferiu nas minhas escolhas. Se o pedido fosse atendido, pelo menos seria a realização de algo que eu consenti", afirma.
Isabella Lauermann, a estudante de Direito da UFRJ com quem Cybe desenvolve o trabalho, estuda necrocidadania, que tem como objeto de análise o direito dos corpos e das restrições legais a certos ritos funerários. "Hifa já queria fazer uma performance pós-morte e começamos a pensar no que poderia funcionar. Decidimos usar a figura do necrófilo não como o 'outro' fetichista, mas para trazer uma realidade mais palpável, que é o Estado como esse agente perverso que, no limite, controla nossos corpos. Ele cerceia as vontades do indivíduo pós-morte. Nunca temos liberdade com o nosso corpo", diz ao TAB. "A necrocidadania é pouco discutida no Brasil, e acho necessário falar disso para começar a pensar em outras formas de lidar com a morte e com o morto em si. Precisamos discutir a possibilidade de se ter um enterro natural, sem tanto impacto ambiental."
O direito do cadáver
A performance de Cybe e Lauermann levanta, também, questões sobre quais direitos temos sobre nosso corpo e quanto da nossa vontade própria poderá prevalecer, mesmo quando restar só a matéria. Outras questões abordadas na performance são a imposição da moral religiosa cristã a todos e a vontade da família sobre as decisões de indivíduo.
Os temas abordados na obra artística já foram objeto de um julgamento inédito no Superior Tribunal de Justiça em março de 2019, no qual a Terceira Turma reconheceu o direito de preservação do corpo de um brasileiro em procedimento de criogenia nos EUA.
No caso específico, uma das filhas do brasileiro quis congelar o corpo do pai, na esperança de ele ser ressuscitado no futuro. Além disso, a filha afirmou que esse destino nada convencional foi expresso pelo próprio pai, em vida. No julgamento, foi levada em consideração a manifestação de vontade do homem em vida, a possibilidade de essa vontade ser reivindicada por familiares e o fato de a criogenia não ser crime.
O acórdão foi inédito no Brasil porque discutiu justamente o direito de um cadáver no país. Também definiu limites sobre o que pode ser feito com o corpo, após a morte. Na visão do ministro da Terceira Turma do STJ, Marco Aurélio Bellizze, há certa liberdade para que a pessoa defina o que poderá ser feito com seu corpo, mas esse desejo não poderá ir contra a moral e os bons costumes, além dos princípios básicos definidos pela Constituição Federal de 1988.
Se a pessoa quer ser cremada, doar todos os seus órgãos, doar seu corpo para ciência ou apenas seguir um rito funerário que não seja o mesmo da família, é possível ser atendida. No entanto, é necessário expressar essa vontade em vida e registrar esse desejo de alguma forma.
"Os direitos da personalidade e o direito à autodeterminação da pessoa humana não cessam com a morte. Desse modo, o corpo da pessoa falecida deve seguir o destino por ela estabelecido, não cabendo ao Estado ou à família essa determinação", explica ao TAB Gabriella Fregni, doutora em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e relatora do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP. "Não se admite, entretanto, que a destinação do cadáver possa servir à prática de atos ilícitos. E a necrofilia pode ser considerada uma prática criminosa, vedada pelo artigo 212 do Código Penal. Assim, a destinação do corpo após a morte deve seguir a determinação do seu titular, desde que compatível com nossos valores constitucionais. Como a necrofilia não se encontra tutelada em nosso ordenamento constitucional, destinar o próprio corpo para fins de necrofilia não pode ser considerado lícito", diz Fregni.
A posição da jurista vai ao encontro do entendimento de Danielle Portugal de Biazi, doutoranda em Direito Civil pela PUC-SP e advogada civilista. "Necrofilia é uma manifestação que ofende a ordem constitucional, mesmo após a morte. Quando o legislador diz que há limites em relação ao nosso próprio corpo, é para evitar que nós nos tratássemos como objetos", explica.
A jurista também rebate uma das críticas da performer, que é a suposta ausência do direito de autodeterminação conferida após a morte. "O direito de personalidade existe mesmo após a morte, mas há uma ordem muito clara a respeito da autodeterminação: ela deve respeitar a norma vigente", diz.
No entendimento da civilista, existem muitas intervenções estatais pautadas pela moral religiosa presente no Direito. A lei já chegou a proibir relações homoafetivas, e ainda hoje não admite completamente relações poliafetivas. "Nesse caso é diferente, porque a consequência prática do pedido de Hifa envolve ofensa clara aos direitos fundamentais e um pedido de prática de crime que, aliás, vai produzir efeitos em terceiros."
O corpo como objeto
A obra de Cybe se inspira em um longa linhagem de performances artísticas que fizeram uso da transgressão e da violência para questionar valores estéticos e morais. Nos anos 1960, o grupo de artistas conhecido como Acionistas Vienenses causou furor ao apresentar, em série, performances que envolviam desde automutilação à violência gratuita para expurgar os traumas da Segunda Guerra Mundial.
Uma das referências citadas por Cybe é Cosey Fanni Tutti, uma das principais artistas que fez uso do próprio corpo como objeto em diversas performances durante os anos 1960 e 1970 na Inglaterra, quando fez parte do coletivo COUM.
A artista afirma que colocar o corpo como um objeto de arte é o que sempre norteou sua trajetória artística. "O corpo do artista é o objeto do ato. Eu não me importaria em me machucar em uma performance, e quando olho esse cenário, considero meu corpo como um objeto de fato. Meu desejo é fazer uma performance pós-morte de doação, e o que me interessa mais é a discussão e a confusão que poderia causar. Qual seria a procedência disso? Que tipo de confusão daria? Isso, para mim, é muito importante — e tem a ver com a reação à performance, que é sempre imprevisível."
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