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Quem foi Nancy Wake, a mulher mais caçada pelos nazistas na 2ª Guerra

Nancy Wake em 1945 - Australian War Memorial
Nancy Wake em 1945 Imagem: Australian War Memorial

Marília Marasciulo

Colaboração para o TAB

09/10/2020 04h00

Os mais de 150 mil soldados Aliados que desembarcaram na Normandia no Dia D não chegaram a um território totalmente sem cobertura. Em preparação para a Operação Netuno, que começou oficialmente em 6 de junho de 1944 para pôr fim à Segunda Guerra Mundial — e libertar a Europa da ocupação nazista —, grupos de guerrilha de resistência já vinham atuando para enfraquecer o regime. Entre eles, um com cerca de 7 mil homens, os maquis, que se escondiam em zonas montanhosas para atacar nazistas de surpresa. À frente deles, uma mulher: Nancy Wake.

Apelidada pela Gestapo de "Rato Branco", por sua capacidade de fugir e permanecer indetectada, Wake é considerada a maior heroína da Segunda Guerra Mundial por sua atuação na resistência francesa. No auge da ocupação nazista, era a pessoa mais procurada pela polícia alemã, que oferecia uma recompensa de 5 milhões de francos por sua cabeça (quase R$ 5 milhões, em valores atuais).

Nascida na Nova Zelândia, migrou para a Austrália ainda criança e, aos 16 anos, fugiu de casa para morar nos Estados Unidos. De lá, foi para Londres e então para Paris, onde trabalhou como jornalista em um jornal do Grupo Hearst. Foi como correspondente que conheceu o regime em ascensão e, indignada com a violência, prometeu a si mesma combater o nazismo se tivesse a oportunidade.

Não demorou para que ela aparecesse. Em 1939, pouco após a declaração da guerra, casou-se com Henri Fiocca, um rico industrial francês que havia conhecido três anos antes. Aproveitando a fortuna e as conexões do marido, financiou e participou da fuga de prisioneiros e refugiados da ocupação na França. Em 1943, porém, com os alemães já em seu encalço, fugiu para a Espanha e, de lá, para o Reino Unido. O marido foi capturado e executado.

Identidade falsa de Nancy - Divulgação - Divulgação
Identidade falsa de Nancy
Imagem: Divulgação

Pouco após chegar a Londres, Wake entrou para Executiva de Operações Especiais e, em 29 de abril de 1944, meses antes da chegada dos Aliados, foi lançada de paraquedas na França para liderar as guerrilhas maquis. Além de destruir pontes e quartéis da Gestapo — e de capturar soldados alemães —, um de seus maiores feitos foi pedalar por 500 quilômetros em território inimigo para restabelecer a comunicação entre a resistência e os Aliados.

Após a guerra, a espiã teve dificuldades de se adaptar à vida na Europa, e voltou para a Austrália. Chegou a tentar concorrer a cargos políticos, em vão. Em 2001, voltou para a Inglaterra, onde viveu até 2011, quando morreu aos 98 anos. Este ano, sua história ganhou novamente atenção, com o lançamento de dois livros a seu respeito. Um deles, "Libertação", assinado por Darby Kealey e Imogen Robertson, sob o pseudônimo Imogen Kealey, acaba de ser lançado no Brasil — e já está sendo adaptado para o cinema em uma produção com Anne Hathaway. Ao TAB, Robertson falou mais sobre o livro e a história de Nancy Wake.

Imogen Robertson - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imogen Robertson
Imagem: Arquivo pessoal

TAB: Nancy morreu há quase 10 anos e sua história foi bastante explorada na época, além de ela própria ter publicado uma autobiografia. Mesmo assim, dois livros sobre ela foram lançados em 2020, um deles é 'Libertação'. Por quê?

Imogen Robertson: Existe um interesse contínuo em histórias da Segunda Guerra Mundial, especialmente nas de combatentes mulheres ou simplesmente de mulheres que não tenham se comportado da maneira esperada em seus tempos. Também acho que, à medida que nosso entendimento sobre os papéis femininos e de gênero evoluem, é importante revisitar essas histórias. Sem falar que Nancy é uma personagem fascinante. Não me surpreende que nós não tenhamos sido os únicos escritores que quiseram falar dela.

TAB: Como você equilibrou a ficção com a realidade no livro?

IR: Esse livro foi muito interessante, porque veio de um roteiro para um filme. E filmes de Hollywood sobre personagens históricas reais frequentemente divergem muito da verdade para conseguir um ritmo cinematográfico. Com os romances históricos, a tradição é tentar ser bem mais preciso, seguindo a linha dos acontecimentos. Neste caso, porém, acho que a história ganhou muito com os elementos que foram ficcionalizados, no sentido de realmente dar aos leitores a experiência de estar no centro da ação. Mas o que mais me surpreendeu é que sempre as coisas que parecem mais absurdas é que são verdade.

TAB: Enquanto estava viva, Nancy reclamou bastante de alguns livros e séries de TV que foram feitas baseadas em sua vida. Como acha que ela reagiria ao seu livro?

IR: Espero que ela considerasse muito divertido! Vi uma entrevista com ela em que ela reclamou principalmente dos elementos de romance que foram acrescentados. Alguns disseram que ela teve relacionamentos com os maquis nas florestas, ou que cozinhasse café da manhã para eles. Ela reclamou que estava muito ocupada treinando-os e liderando as operações para perder tempo cozinhando para eles. Então, busquei ficcionalizar de um modo que acredito que ela teria aprovado. Foi também muito importante para nós poder incluir uma nota histórica no final do livro, especificando o que era verdade e o que não era, para garantir que estávamos tratando com o devido respeito a herança e a luta dela e das pessoas com quem ela trabalhou.

TAB: Teve algo muito curioso que descobriu sobre ela e teve que deixar fora da história?

IR: Toda a vida dela antes da guerra é também fascinante, e permanece pouco conhecida. Ela viajou para os Estados Unidos muito jovem, foi até casada e chegou a fazer gin em banheiras durante a Lei Seca! Ela passou pela Espanha, por Paris? Uma das minhas curiosidades favoritas é que ela tinha um Terrier desde antes de casar com Henri Fiocca, e teve que abandoná-lo quando fugiu para lutar com a Resistência. Mas um de seus vizinhos de Marselha o adotou e, quando ela voltou da guerra, ele ainda estava vivo, e eles voltaram a ficar juntos. Achei adorável, mas optamos por deixar de fora por parecer um final muito hollywoodiano, ainda que seja verdadeiro.

TAB: Nancy poderia facilmente ter fugido da guerra e ignorado tudo, graças à fortuna do marido e suas conexões. Quais foram suas motivações para lutar e se envolver tanto com a Resistência?

IR: Acredito que ela simplesmente decidiu que faria algo, e fez. Um ponto muito importante é que quando trabalhava como jornalista para os jornais do grupo Hearst em Paris, ela chegou a viajar para Viena e viu o que os nazistas já estavam fazendo por lá. Ela foi a Berlim também, onde assistiu a um comício de Hitler. Embora não entendesse alemão, ficou impressionada e enojada com o efeito que ele tinha no público. Também via que a população de judeus estava sendo maltratada, e ela odiava isso, passou a enxergar os nazistas como sendo assassinos tirânicos. E aí, é claro, a Gestapo capturou o seu marido. O fato de ela testemunhar tudo isso a fez querer fazer de tudo para tentar freá-los.

Nancy na resistência maquis - Divulgação - Divulgação
Nancy na resistência maquis
Imagem: Divulgação

TAB: Ela não foi a única mulher trabalhando como espiã para os Aliados, embora seja a mais condecorada. O que a tornou tão distinta?

IR: Havia muitas mulheres trabalhando para os Aliados, e muitas no combate também. Mas a maioria delas trabalhava como operadora de rádio ou transportadora de mensagens, por exemplo. Nancy se distinguiu por estar realmente organizando as tropas e planejando operações militares, era um papel bastante ativo na luta.

TAB: E ela conseguiu o respeito de milhares de homens no front, algo bem raro para aqueles tempos, e até mesmo para os dias de hoje. De que maneiras ela pode nos inspirar?

IR: Ela nunca pedia desculpa nem permissão por ser mulher. Nunca pediu permissão para se tornar correspondente internacional em Paris ou para ir aos cantos mais obscuros de Marselha e fazer amizade com contrabandistas, mesmo antes da ocupação da França. Ela simplesmente fazia o que sabia que podia fazer, e vivia como queria viver. Se as pessoas não gostassem, era problema delas, não dela. Acho que isso é inspirador e é muito importante que as mulheres saibam que não precisam pedir permissão para respirar o oxigênio que respiramos, e que ficar esperando essa permissão chegar pode demorar muito.

TAB: Ao mesmo tempo, ela usava os estereótipos sociais sobre as mulheres como estratégia de guerra.

IR: Isso é muito curioso, porque ela amava roupas incríveis e tinha um estilo de vida bem luxuoso. É interessante que ela costuma ser descrita como uma mulher muito feminina, em contraponto a suas capacidades marciais. Mas eu gostaria de pensar que, na modernidade, as mulheres podem conseguir o que querem sem precisar manipular ninguém com batons e roupas bonitas. Embora, no fim das contas, caiba a cada mulher decidir o quanto elas querem usar a própria feminilidade para conseguir o que querem.

TAB: Nancy viu que teria de sujar as mãos e matar pessoas, se quisesse frear os nazistas. O que a fez perceber isso?

IR: Ela provavelmente sempre soube que essa seria uma das consequências do que fazia, embora haja uma diferença imensa entre pensar sobre algo e de fato fazer. Acho que ela estava disposta a pagar esse preço, ainda que não tenha sido fácil. Uma das coisas que tentamos mostrar no livro são as consequências da violência, não só para as vítimas, mas também para quem a perpetua.

Uma das muitas condecorações de Nancy - Divulgação - Divulgação
Uma das muitas condecorações de Nancy
Imagem: Divulgação

TAB: Ainda que ela tenha dito no passado que teria matado mais alemães se pudesse... Não é um pouco extremo?

IR: Acredito que seja só um reflexo do quanto ela odiava os nazistas e do compromisso que tinha com o propósito de acabar com eles. Não é algo que eu consiga imaginar dizer, mas também não consigo me imaginar entrando num quartel da Gestapo com uma granada na mão. Testemunhar todos os horrores da ocupação criou uma raiva assassina nela e, pessoalmente, sou muito grata por nunca ter tido uma experiência que me despertou um sentimento semelhante.

TAB: Em muitos países temos visto a ascensão de governos populistas e de extrema-direita, muitos dos quais comparados ao fascismo. Você considera que a democracia está ameaçada?

IR: Sim. Agora que a geração que vivenciou o nazismo está diminuindo, acho que é muito fácil esquecermos quão frágil a democracia é e como o ódio a outras pessoas pode se tornar uma força extremamente potente. Estudei a história da Alemanha e da Rússia na universidade e, para mim, havia sempre essa questão no ar, sobre o que havia de errado com a sociedade alemã que a fez permitir que os nazistas tenham chegado ao poder e todas as atrocidades que seguiram. E percebi que, infelizmente, isso é simplesmente parte da natureza humana.

Mas uma minoria significativa de pessoas pode ser maltratada pelo ódio violento de outras. E é necessário um esforço combinado de todos para manter a lei nessas circunstâncias. Então, não penso que temos que olhar para o mundo agora e, mais uma vez, nos perguntar "o que havia de errado com os alemães?". A pergunta deveria ser "o que há de errado com as pessoas?". E, na minha visão, um dos maiores problemas é memória. Não acho que chegamos a esse ponto, mas espero que não estejamos longe demais para ter esquecido o quão horrível essas forças podem ser quando são liberadas.

TAB: Há semelhanças entre a situação atual e as que levaram à Segunda Guerra Mundial?

IR: Sim e não, pois há muitas diferenças, e ao mesmo tempo os seres humanos permanecem os mesmos. Nós vivemos uma vida muito mais conectada, com mais oportunidades de aprender e entender uns aos outros. Também considero que estamos vivendo em tempos nos quais o racismo e intolerâncias de todos os tipos têm sido mais questionadas. Mas há semelhanças, como grandes desigualdades sociais e a pressão das mudanças climáticas, que tendem a nos dividir, além de colapsos financeiros parecidos com os que levaram os nazistas ao poder. Isso não significa que nosso destino é o mesmo. Ao menos no Reino Unido e nos Estados Unidos, vimos que quando os populistas chegam ao poder, eles na verdade não são bons governando. Então, talvez a gente tenha mais sorte dessa vez.

TAB: O que podemos aprender com a história da Nancy?

IR: O mais importante é a confirmação da máxima de que tempos extraordinários fazem aparecer pessoas extraordinárias. É um história que nos ensina que precisamos de pessoas com comprometimento e convicções para atravessar tempos obscuros. E que a humanidade já passou por situações ruins no passado, mas conseguiu superar.